TFFF: uma aposta de que o capitalismo pode salvar o planeta
Principal projeto do governo brasileiro na COP30, o TFFF prevê repasse direto a povos indígenas e tradicionais e escapa da controversa lógica do mercado de carbono, mas depende da disposição dos países investidores e dos humores do mercado financeiro
Claudia Antunes, Sumauma, 18 de setembro de 2025
O governo brasileiro investiu dois anos de muito esforço técnico, político e diplomático para sua maior contribuição à COP30, o Fundo Florestas Tropicais para Sempre. Mais conhecida por TFFF, na sigla em inglês, a iniciativa prevê buscar dinheiro no mercado financeiro internacional para remunerar os países que abrigam florestas úmidas. No Brasil, seria o caso da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. Essa remuneração funcionaria como pagamento pelos chamados “serviços ecossistêmicos” que esses biomas desempenham – na captura de gás carbônico da atmosfera, na regulação das chuvas e na conservação da biodiversidade. Basicamente, os rendimentos do fundo pagariam quem protege as florestas estratégicas para o controle do aquecimento global. O plano do governo brasileiro é lançar o TFFF durante a COP, em Belém, como uma contribuição para o compromisso firmado por todos os países há dois anos, na COP28: acabar com o desmatamento e a degradação florestal até 2030.
Para driblar a divisão rígida entre as nações classificadas como financiadoras das ações climáticas e as nações classificadas como recebedoras dessas verbas, e assim arrecadar mais recursos, o fundo está sendo negociado fora do guarda-chuva dos tratados sobre clima e Meio Ambiente das Nações Unidas. Se conseguir superar os impasses geopolíticos que ainda restam, o mecanismo trará inovações avaliadas como positivas por organizações ambientalistas, mas enfrentará os mesmos riscos que qualquer negócio no capitalismo.
O Fundo Florestas Tropicais para Sempre é o primeiro fundo climático e ambiental internacional que prevê a obrigatoriedade do repasse direto de uma parte do dinheiro para povos Indígenas e comunidades florestais. Esses grupos ficarão com ao menos 20% dos recursos obtidos e vão administrá-los por meio de contas exclusivas, separadas das contas dos Tesouros nacionais das nações beneficiadas. Ao pagar aos países por hectare de floresta em pé, a iniciativa também foge da lógica do mercado de carbono, que permite aos compradores de créditos usá-los para compensar os gases de efeito estufa que continuam lançando na atmosfera. Ou seja, eles estão autorizados a poluir porque pagam por compensação em outro lugar, por exemplo na Floresta Amazônica. Outra novidade relevante é que, enquanto os fundos tradicionais emprestam ou doam dinheiro mediante a apresentação de projetos que têm prazo para acabar, no TFFF os países beneficiados poderão usar o que receberem em programas e políticas públicas de longo prazo, como a criação de brigadas para combater incêndios florestais.
Como se trata de um mecanismo de mercado, o TFFF estará sujeito às incertezas das finanças globais, que vêm passando por turbulências desde a crise de 2008. Agora, enfrentam as flutuações de humor de Donald Trump, que em agosto não hesitou, por exemplo, em paralisar um projeto de energia eólica na costa leste dos Estados Unidos que estava 80% pronto. A política negacionista de Trump, que ecoa em forças políticas e econômicas de todo o mundo, vem desestimulando os investimentos de empresas e bancos em negócios considerados “verdes”.
O TFFF espera pagar, por ano, quatro dólares, ou 21,6 reais, por hectare de Floresta conservada. Para que isso seja possível, a proposta prevê arrecadar no mínimo 25 bilhões de dólares (135 bilhões de reais) com países e entidades filantrópicas, que serão os “patrocinadores” do fundo. O próprio Brasil, embora conte com o recebimento de pagamentos, estuda contribuir para esse capital inicial, de modo a estimular outras nações a fazer o mesmo.
O dinheiro dos patrocinadores será um empréstimo, a ser remunerado com juros anuais e devolvido ao longo de 30 anos, depois de um período de carência de dez anos. Os 25 bilhões de dólares funcionarão como uma espécie de garantia para a emissão de títulos, no valor total de 100 bilhões de dólares (540 bilhões de reais), que serão comprados por grandes investidores privados, como fundos de pensão e bancos. O TFFF acumularia, assim, 125 bilhões de dólares (675 bilhões de reais), que seriam investidos em outros papéis, emitidos por empresas e países, preferencialmente aqueles classificados como “em desenvolvimento”.
O rendimento desses investimentos será distribuído na seguinte ordem de prioridade: primeiro, serão pagos os juros devidos aos investidores privados; depois, os juros devidos aos patrocinadores; e só então será entregue a parte que cabe aos países florestais que aderirem à iniciativa. Se ainda restar dinheiro, ele será incorporado ao capital do TFFF e ficará em nome das nações florestais. No caso extremo de uma forte crise financeira, poderá haver anos em que esses países não receberão nada. Os formuladores do fundo, porém, afirmam que eles jamais sairão como devedores do negócio. Isso significa que, se depois de 40 anos os patrocinadores não puderem recuperar o que investiram, terão, ao menos em tese, que assumir o prejuízo.
“Para os países beneficiários, as únicas hipóteses são receber pagamentos se cumprirem os critérios de elegibilidade, ou deixar de recebê-los caso não os cumpram. Os países beneficiários jamais perderão dinheiro ou terão algum custo”, afirma Patrick Luna, chefe da Divisão de Biodiversidade do Itamaraty, uma das pastas que lideram o projeto, junto com os ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Fazenda e dos Povos Indígenas.
O veterano ambientalista brasileiro Carlos Rittl, hoje diretor de política pública da Wildlife Conservation Society (Sociedade de Conservação da Vida Selvagem, ou WCS, na sigla em inglês), está envolvido nas discussões sobre o TFFF desde 2023, a convite da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. Como outras organizações, a dele tem feito contribuições para o modelo ambiental do mecanismo, que determinará quais Florestas serão elegíveis para pagamento e os descontos que serão aplicados quando houver desmatamento ou degradação desses biomas. Rittl é um entusiasta da iniciativa. “É um instrumento desenvolvido e proposto pelo Sul Global, e os outros países, que normalmente vêm com modelos prontos, foram levados a se engajar a partir do momento em que viram que a proposta era robusta”, diz. Mas faz a ressalva: “É um instrumento que não vai nascer perfeito, que precisa ser testado na parte financeira, na parte de governança e na parte ambiental”. O projeto do fundo prevê uma revisão depois de três anos e revisões subsequentes a cada cinco anos.
Em agosto, o governo brasileiro lançou a terceira nota conceitual sobre o TFFF, incorporando uma parte das sugestões feitas em consultas realizadas neste ano de 2025 a organizações da sociedade civil, das quais 30 enviaram comentários por escrito. Entre os pontos parcialmente acatados está a promessa de elaboração de uma lista negativa de investimentos, para excluir atividades danosas ao clima e à biodiversidade. Por enquanto, foram excluídos explicitamente investimentos em petróleo, gás e carvão. O projeto já vinha sendo assessorado por agências da ONU, consultorias de investimentos, como a britânica Lion’s Head Global Partners, e grandes ONGs nacionais e internacionais, como o Instituto Clima e Sociedade (iCS) e a WWF.
À espera do Banco Mundial e da China
Para que seja lançado na COP30, o TFFF ainda espera duas decisões de alta voltagem política. A primeira, que deve ser tomada em 21 de outubro, é que o Banco Mundial aceite hospedar o mecanismo dentro de sua estrutura, assumindo as funções de “administrador fiduciário” (que supervisiona os investimentos do fundo), “gestor de tesouraria” (que acompanha as entradas e saídas de dinheiro) e “secretariado” (que faz a ponte entre as diversas instâncias que compõem o TFFF, como conselhos e comitês). A ideia de um fundo para Florestas, aliás, surgiu inicialmente no próprio Banco Mundial. A negociação com os técnicos do banco está avançada, e fontes do governo brasileiro dizem não ter detectado indícios de que possa haver um não. Porém, não é possível excluir o risco de que os acertos sejam barrados por Trump, já que os Estados Unidos são o maior acionista do Banco Mundial.
A segunda decisão fundamental é o anúncio dos países financeiramente mais ricos sinalizando que usarão seus fundos públicos para formar o capital inicial do TFFF, tornando-se “patrocinadores”.
Em todas as convenções que resultaram da Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992 – as do Clima, da Biodiversidade e de Combate à Desertificação –, a obrigação de financiar a ação climática e ambiental ficou com os países capitalistas “desenvolvidos”, que são também os poluidores históricos. É um grupo pequeno de 24 países, e é essa limitação que o Fundo Florestas Tropicais para Sempre pretende contornar.
Desse grupo, quatro — França, Alemanha, Reino Unido e Noruega – fazem parte do Comitê Diretor Interino, informal, de 11 países que vêm participando desde 2024 da elaboração do projeto do TFFF. Além dos quatro, o comitê inclui os Emirados Árabes Unidos como potencial patrocinador e seis países florestais: Brasil, Colômbia, República Democrática do Congo, Gana, Indonésia e Malásia. Nos bastidores, os financiadores tradicionais condicionam sua participação ao compromisso de outros países, como a China e os Emirados, de também pôr dinheiro no capital inicial do TFFF. As tratativas do governo brasileiro para conseguir a adesão chinesa têm sido intensas. Até agora, nenhum país declarou publicamente que vai fazer esse investimento, e a expectativa é que isso só aconteça na própria COP30.
Numa entrevista coletiva em 12 de setembro, a ministra Marina Silva disse já ter recebido “sinalizações” nesse sentido da Noruega, do Reino Unido e da Alemanha. Ela afirmou que o diálogo com “países em desenvolvimento de renda média alta” para também investirem está sendo feito “em outro trilho”. Marina indicou que o Brasil – que é um país classificado como de renda média alta – também deverá fazer um investimento: “O próprio Brasil faz questão de poder dar uma demonstração. Espero que possamos ser vitoriosos nesse caminho, de liderarmos pelo exemplo”. O embaixador Maurício Lyrio, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Itamaraty, acrescentou: “Estamos esperançosos de conseguir o apoio em recursos não só da China mas também de outros países em desenvolvimento, como os árabes”.
É muito dinheiro ou ainda é pouco?
Em um cálculo preliminar, caso o TFFF arrecade os 125 bilhões de dólares esperados, o documento estima que o dinheiro disponível para países com florestas úmidas chegue a 3,4 bilhões de dólares por ano, ou 18,36 bilhões de reais. É pouco quando se consideram as projeções, citadas na própria nota conceitual, de que esses países precisariam de ao menos 500 bilhões de dólares (2,7 trilhões de reais) por ano para “reorientar a economia [dos países com florestas úmidas] de forma a excluir o desmatamento”. É bastante, no entanto, se a comparação for com outros fundos climáticos. Criado na COP28 para ajudar os países financeiramente mais pobres a lidar com os prejuízos provocados pelo colapso do clima, o Fundo de Perdas e Danos recebeu até agora 788,8 milhões de dólares, ou 4,3 bilhões de reais, em promessas de doações. O Fundo de Adaptação, criado em 2001, tem hoje um caixa de 1,1 bilhão de dólares (5,9 bilhões de reais). O Fundo Verde para o Clima, o principal instrumento de financiamento climático da Convenção do Clima, comprometeu 18 bilhões de dólares (97,2 bilhões de reais) em recursos próprios em todos os projetos aprovados desde a sua criação, em 2010, o que equivale a 1,2 bilhão de dólares (6,48 bilhões de reais) por ano.
Quando comparado ao de esquemas de financiamento especificamente para florestas, o potencial do TFFF também seria maior. A nota conceitual cita a estimativa de que todos os fundos no modelo do Fundo Amazônia, formados por doações que equivalem a um pagamento pela redução do desmatamento, tenham arrecadado 6,4 bilhões de dólares (34,6 bilhões de reais) em 16 anos. Já o chamado mercado voluntário de carbono, que não é regulado pelos governos, teria movimentado 10,8 bilhões de dólares desde 2005.
Um estudo recente da Climate Policy Initiative (Iniciativa de Política Climática) contabilizou os investimentos internacionais em atividades no Brasil que contribuem para a redução de emissões de gases de efeito estufa ou para a adaptação à mudança do clima nos anos de 2021 e 2022. O estudo concluiu que o setor de uso da terra – que inclui agricultura e florestas – ficou com apenas 11% do dinheiro, sendo que as florestas em si ficaram com 2%, ou 600 milhões de reais por ano.
Os valores que o governo brasileiro projeta para o TFFF não impressionam os críticos do mecanismo. O boliviano Pablo Solón, um dos articuladores do Fórum Social Pan-Amazônico, é contrário a iniciativas que pretendam “mercantilizar” a Natureza. Ele argumenta que elas não questionam os “problemas estruturais” do capitalismo, que levam à destruição dos biomas. Mesmo sob a premissa de atribuir um valor aos serviços ecossistêmicos, Solón afirma, num artigo publicado em março, que seria possível conseguir muito mais dinheiro cobrando uma taxa por barril de petróleo produzido. A ideia de “fazer os poluidores pagar”, aplicando impostos extraordinários sobre os ganhos das atividades que mais emitem, é uma demanda antiga dos movimentos socioambientais, endossada em 2023 pelos países africanos. A proposta do TFFF diz que o fundo não pretende substituir outros tipos de financiamento, mas ser complementar a eles.
No fundo — sem trocadilhos —, o TFFF é uma aposta segundo a qual o sistema econômico atual ainda pode funcionar a favor do planeta. “O TFFF é uma oportunidade única de nos levar a uma economia que beneficie aqueles que protegem a Floresta, de aumentar o financiamento para diferentes atores e mudar o comportamento na direção da conservação”, disse André Aquino, chefe da assessoria especial de economia do Ministério do Meio Ambiente, na entrevista coletiva de 12 de setembro.
O que o Brasil prevê que poderá receber
A nota conceitual do TFFF lista 74 países aptos para ser remunerados, abrigando ao todo mais 1 bilhão de hectares de florestas, dos quais quase metade fica no Brasil. Mas nem todos poderão pedir acesso de imediato. Para receber o dinheiro, será preciso demonstrar uma taxa de desmatamento anual de no máximo 0,5%. A marca de 0,5% é uma média das taxas atuais nos 74 países.
O Fundo Florestas Tropicais para Sempre prevê não apenas remunerar a floresta em pé, mas onerar a destruição das florestas. Haverá descontos progressivos para taxas de desmatamento de até 0,3% e de 0,3% a 0,5%. No primeiro caso, para cada hectare desmatado, o país deixará de receber pagamento por 100 hectares de floresta em pé. No segundo, será descontado o pagamento de 200 hectares para cada hectare derrubado. Também haverá desconto do pagamento de 35 hectares para cada hectare de floresta degradada por incêndios florestais.
Além disso, para receber a remuneração, os países terão que demonstrar que não houve “transferência do desmatamento”, com o aumento da destruição em outros biomas, como o Cerrado, no caso do Brasil. Caso isso aconteça, será iniciada uma investigação que poderá levar à suspensão do pagamento enquanto o problema não for resolvido. O processo de prestação de contas será repetido a cada ano. O limite máximo de desmatamento das florestas úmidas será progressivamente reduzido, de modo que a taxa chegue a 0,2% em 15 anos. “A lógica é recompensar os países que já fizeram seu dever de casa”, resumiu Garo Batmanian, diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro, na entrevista de 12 de setembro.
O governo brasileiro fez uma estimativa preliminar de quanto receberia em um ano, caso o capital do TFFF chegue a 125 bilhões de dólares. O cálculo foi baseado em dados de 2023, quando a taxa de desmatamento das florestas úmidas do país foi de 0,28% e a taxa de degradação por incêndios chegou a 0,47%. Nessa hipótese, o país receberia 4,3 bilhões de reais, valor próximo de todas as doações já recebidas pelo Fundo Amazônia, que somam 4,5 bilhões de reais. Dos 4,3 bilhões, 861 milhões de reais iriam para os povos indígenas e comunidades tradicionais.
Os países florestais terão bastante autonomia para usar o dinheiro, em atividades que, “direta ou indiretamente, apoiem a conservação florestal e seu uso sustentável”. As únicas condições são que apresentem uma lista das políticas e programas contemplados e que não haja substituição orçamentária. Isso quer dizer que, se um país gasta hoje 500 mil dólares (2,7 milhões de reais) para conservar suas florestas, esse dinheiro não poderá ser desviado para outra finalidade, e a verba recebida do TFFF terá que ser considerada como um adicional.
O que os Indígenas pediram e o que conseguiram
A terceira nota conceitual também trouxe como novidade a proposta de criação, no TFFF, de um Conselho Consultivo de Povos Indígenas e Comunidades Locais (que é como são chamadas na ONU as comunidades tradicionais) e de um Painel Consultivo Técnico e Científico, cada um com dez participantes. Também estabeleceu a exigência de que cada país beneficiário crie um Mecanismo de Reclamação e Reparação para canalizar queixas e denúncias sobre o mau uso do dinheiro do TFFF e falhas no monitoramento do desmatamento.
O Ministério dos Povos Indígenas se engajou na proposta do TFFF no fim de 2024 por causa da pressão do movimento Indígena pela participação direta nos recursos do fundo. Francisco Filippo, assessor internacional da pasta de Sonia Guajajara, coordenou a articulação com as organizações das populações originárias e tradicionais. A Aliança Global de Comunidades Territoriais foi a principal interlocutora dessas negociações. A Aliança é formada por cinco organizações que representam as comunidades de territórios florestais em 24 países da Ásia, da África, da América Central e da América do Sul, incluindo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, e a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica, a Coica.
Filippo é economista e funcionário de carreira do Ministério do Planejamento, mas afirma que sua experiência no MPI é “maior do que qualquer outra coisa” que já vivenciou em 20 anos de serviço público. Ele ressalta o ineditismo de um fundo que estabelece um repasse obrigatório de verbas para os representantes das pessoas que “estão na linha de frente de 54% dos territórios da biodiversidade mais protegidos”.
Filippo compara o TFFF com iniciativas anteriores. O Fundo-Quadro Global para Biodiversidade, criado em 2023 dentro da Convenção sobre Diversidade Biológica, estabeleceu uma “meta aspiracional” de 20% das verbas para projetos com participação Indígena, o que pode, por exemplo, incluir projetos de governos com essa característica. Antes, na COP26 – que aconteceu em Glasgow, na Escócia, em 2021 –, uma coalizão chamada Forest Tenure Funders Group (algo como Grupo de Financiadores de Guardiões da Floresta) fez a promessa de canalizar, até o fim de 2025, 1,7 bilhão de dólares (9,18 bilhões de reais) em apoio a povos Indígenas e comunidades tradicionais. Porém, segundo o último relatório do grupo, apenas 10,6% dos 521 milhões de dólares (2,8 bilhões de reais) desembolsados em 2023, ou 55 milhões de dólares (297 milhões de reais), chegaram diretamente a organizações representativas dessas populações. Nos anos anteriores, essa proporção foi ainda menor: 2,9% em 2021 e 2,1% em 2022.
O TFFF promete que pelo menos 20% do dinheiro que cada país florestal vai receber entrará numa conta gerenciada por representantes de pessoas que vivem nas florestas. “Não estamos falando de projetos com participação Indígena, mas de recursos destinados diretamente às organizações Indígenas, de projetos que elas vão construir, elaborar e conduzir. Então é um salto muito forte”, afirma Filippo. “Nesse processo de cocriação, a gente usou o conceito mais direto possível, e isso envolve duas variáveis fundamentais: o mínimo de burocracia necessária e o mínimo de ingerência dos países”, explica.
Não foi uma negociação fácil, como conta Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib. Uma das dificuldades foi a diferença de legislação entre os países que potencialmente serão beneficiários do TFFF. “Existem países que não têm nem legislação para povos Indígenas e comunidades locais; existem países que não têm instância de participação social. No caso do Brasil, temos o Conselho Nacional de Política Indigenista, temos o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, mas há países que não têm nada disso”, diz Kleber. Isso levou as organizações a propor duas formas possíveis de entregar os 20% destinados às populações da Floresta: por meio de uma agência global e por meio de agências nacionais. A opção de receber o dinheiro pela agência global, explica ele, visa a proteger as remessas que cabem aos povos da Floresta de governos que, hoje ou futuramente, não tenham boas relações com eles.
A terceira nota conceitual do Fundo Florestas Tropicais para Sempre prevê as duas possibilidades, mas com pequenas diferenças em relação ao que as organizações reivindicavam. O que foi estabelecido é que, no prazo de um ano após sua adesão ao mecanismo, um país deve criar um Comitê Diretor Nacional para Povos Indígenas e Comunidades Locais e transferir os 20% do dinheiro recebido para uma conta exclusiva. Esse dinheiro será administrado por uma Agência Nacional de Implementação selecionada pelo Comitê Diretor. Embora a proposta preveja que, se isso não acontecer, os recursos para o país sejam suspensos no ano seguinte, ela também abre uma brecha para os governos recorrerem. Eles podem pedir um período de isenção de um ano depois do primeiro pagamento que receberem. Só então, ao fim de dois anos, os governos terão que aceitar que a parcela para povos indígenas e tradicionais seja transferida para uma Agência Executora Global, sob pena de ter seu pagamento suspenso.
Haverá ainda a possibilidade de os países optarem por usar a Agência Global desde o início. Ela repassará o dinheiro para a Agência de Implementação Nacional. Caso surjam dificuldades para o estabelecimento da Agência Nacional, a Agência Global poderá repassar o dinheiro diretamente a fundos já existentes de povos indígenas e tradicionais.
Se o TFFF funcionar como planejado, o desafio das organizações de povos da Floresta na gestão do dinheiro não será pequeno. Hoje, no financiamento de projetos em geral – e não só para comunidades da Floresta – é habitual que uma parte importante das verbas seja gasta com custos administrativos e com o pagamento de assessorias. Kleber Karipuna lembra que, nos últimos anos, povos Indígenas e tradicionais lideraram uma onda de criação de fundos para a captação de financiamento direto. Só no Brasil, exemplifica, são mais de 20, entre eles o Podáali, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, a Coiab, e o Jaguatá, da Apib. Há fundos equivalentes na América Central, na Indonésia e na África.
É esperado que, na COP30, o mesmo grupo que lançou a promessa de financiamento para povos indígenas na COP26 a renove por mais cinco anos. Segundo Kleber, uma ideia é que parte desse dinheiro seja usada para a capacitação das organizações para o gerenciamento dos recursos que elas esperam receber com o TFFF. “O que a gente quer agora é protagonizar o fortalecimento desses mecanismos para a governança e gestão desses fundos para povos indígenas e comunidades locais”, afirma. Ele diz que seus companheiros de outros países viram a proposta do TFFF como uma oportunidade de que governos sejam obrigados a estabelecer uma relação mais democrática com os povos da Floresta. “Há um certo alinhamento em relação a isso, mas, claro, também uma certa preocupação. Tudo o que é novo, e com essa magnitude, provoca muitas desconfianças ainda”, avalia.
Até a COP30 deverá ser divulgada mais uma nota conceitual. Uma das demandas ainda não atendidas dos povos da Floresta é que eles tenham uma representação permanente no conselho do Mecanismo. A outra, que não passou de discussão inicial, é que essas comunidades possam fazer um monitoramento próprio do desmatamento nas áreas sob sua responsabilidade. Isso evitaria que elas perdessem dinheiro caso fizessem a sua parte na conservação das florestas, mas o país como um todo não. “É uma janela que a gente abriu de discussão que talvez, futuramente, seja possível”, conta Kleber.
Como medir a integridade das florestas
Durante as consultas com as organizações ambientalistas, alguns dos debates versaram sobre os critérios de elegibilidade das florestas e sobre o uso do dinheiro pelos países beneficiados.
No documento que preparou com suas sugestões, por exemplo, o Greenpeace defendeu critérios mais rigorosos para monitorar o desmatamento e a degradação florestal do que os previstos no TFFF. A organização ambientalista propôs, por exemplo, que, para que uma área da Floresta seja considerada elegível, a densidade da imagem formada pela copa das árvores numa foto de satélite deve ser de 50%. O projeto do TFFF considera uma densidade de 20% a 30%, que é maior do que o padrão de ao menos 10% usado na definição da Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura, a FAO. Outra proposta é que sejam usados mais critérios além da área atingida por incêndios para medir a degradação florestal, incluindo, por exemplo, a redução da densidade da vegetação causada pela retirada de árvores. A terceira nota conceitual diz que há dificuldades técnicas para essa medição e manteve apenas o critério dos incêndios, mas prometeu uma revisão em três anos.
“É positivo o compromisso do Brasil e de outros governos em desenvolver um mecanismo de financiamento para combater o desmatamento que não esteja atrelado à lógica prejudicial dos mercados de carbono”, diz Camila Jardim, especialista em política internacional do Greenpeace Brasil, que também saúda o financiamento direto para Indígenas e comunidades tradicionais, “uma grande vitória que não estava nas primeiras propostas”. Porém, enfatiza, é importante que o TFFF remunere apenas florestas preservadas, com seu ecossistema equilibrado. “Caso a integridade ecossistêmica não seja garantida, corremos o risco de financiar áreas que deixaram de ser floresta”, alerta.
O Greenpeace propôs ainda que haja um monitoramento mais rígido do uso do dinheiro pelos países florestais, para impedir que ele seja aplicado, por exemplo, na agricultura convencional ou na extração e na infraestrutura de distribuição de combustíveis fósseis. A proposta também não foi incorporada à terceira nota conceitual. O governo brasileiro alega que a necessidade de provar a cada ano que o desmatamento não ultrapassou o limite fixado será uma pressão suficiente para orientar o uso do dinheiro para essa finalidade.
Questionamento do poder dos patrocinadores
A estrutura de comando do Fundo Florestas Tropicais para Sempre também foi objeto de reparos durante as consultas. A iniciativa será composta de duas entidades. Uma é o fundo propriamente dito, chamado de Fundo de Investimento em Florestas Tropicais, ou TFIF, na sigla em inglês, que vai fazer a gestão dos recursos financeiros. O conselho do TFIF será formado por sete profissionais, selecionados segundo critérios estabelecidos pelos países patrocinadores, aqueles que entrarão com o capital inicial do TFFF. A outra entidade, chamada de Mecanismo, vai supervisionar o sistema de pagamento dos países florestais, incluindo o cumprimento das regras relativas à conservação das florestas e ao uso do dinheiro. O conselho do Mecanismo terá 18 integrantes: nove indicados pelas nações com florestas e nove pelos patrocinadores. A ideia é que o secretariado – que poderá ser exercido pelo Banco Mundial – faça a coordenação entre os dois lados.
Houve sugestões da sociedade civil, que não foram aceitas, para que o conselho do Fundo de Investimento ficasse subordinado ao conselho do Mecanismo, aumentando o poder dos países florestais e reduzindo o poder dos países investidores. O Greenpeace sugeriu, em seu documento de avaliação, que o conselho da entidade que vai gerir o dinheiro deveria ser selecionado com a participação dos países florestais, e não apenas dos patrocinadores. Segundo a organização, o poder acumulado pelos patrocinadores no Fundo de Investimento é “uma relíquia desafortunada do modelo imposto pelos doadores que o TFFF promete evitar”.
Patrick Luna, do Itamaraty, diz que os integrantes do conselho do Fundo de Investimento serão escolhidos pelo seu conhecimento técnico na gestão e investimento de ativos financeiros. Ele argumenta que o mais relevante é a proporcionalidade que haverá no conselho do Mecanismo. “Os países que entram com dinheiro e os países que entram com floresta estão em pé de igualdade. Essa é a maior inovação do desenho de governança do TFFF”, afirma.
Quando investir pode tomar o lugar de doar
Uma preocupação dos movimentos socioambientais é que o Fundo Florestas Tropicais para Sempre acabe substituindo os fluxos de ajuda internacional, que já vêm diminuindo. O risco é que um investimento no TFFF reduza ainda mais o dinheiro que os países ricos têm que aportar para financiar as ações contra o colapso do clima nas nações com menos recursos financeiros. Vale lembrar que esses países, que são também os poluidores históricos, receberão de volta, com juros, o dinheiro que investirem no TFFF.
No ano passado, a COP29, no Azerbaijão, acabou em frustração e raiva porque a meta de financiamento climático ali estabelecida foi de 300 bilhões de dólares por ano, uma soma a ser alcançada até 2035. Muito aquém, portanto, do montante de 1,3 trilhão de dólares por ano estimado como necessário. Além disso, os países ricos conseguiram diluir sua obrigação de aportar fundos públicos para essa meta, pondo ênfase na “mobilização” de investimentos privados. O Brasil e o Azerbaijão ficaram encarregados de apresentar, na COP30, um “mapa do caminho” para que o financiamento chegue aos necessários 1,3 trilhão de dólares.
O Instituto Talanoa, especializado na avaliação de políticas para o clima, aponta que o dinheiro do TFFF precisa ser visto como “adicional” a outros recursos: “Se for encarado como substituto do compromisso de governos e do setor privado, não terá valido a pena”, diz o Talanoa. A possibilidade de um desvio das obrigações previstas em tratados internacionais é objeto de um alerta do Greenpeace. Como a imprevisibilidade é inerente ao modelo do TFFF, afirma a organização, “é vital que ele não retire a responsabilidade dos governos de países desenvolvidos de prover financiamento previsível para o clima e a biodiversidade”. Será uma “preocupação real”, continua o Greenpeace, se os países ricos decidirem reduzir as doações e os empréstimos em condições favoráveis para as nações que mais precisam a fim de “investir em fundos de investimento lucrativos como o TFFF, que dão prioridade ao pagamento do retorno dos investidores antes da alocação [dos rendimentos] nos esforços de proteção florestal”.
Carlos Rittl, que participou das discussões do TFFF desde o início, reconhece que essa é uma “preocupação legítima”, mas procura minimizar seu impacto. “Se o mundo for bem-sucedido e chegar a 1,3 trilhão por ano em financiamento, em 40 anos – que é o prazo de compromisso dos investidores no TFFF – serão 52 trilhões”, raciocina. “Os 125 bilhões chamam atenção porque é uma cifra grande. Mas, perante 52 trilhões, 125 bilhões representam somente 0,24%”, argumenta.
A conjunção “se”, indicativa de imprevisibilidade ou sorte, é afinal a palavra deste ano de COP30. Como anfitrião da conferência, o governo brasileiro aposta no Fundo Florestas Tropicais para Sempre como uma possibilidade de dar uma boa notícia diante das baixas expectativas em relação às negociações entre os mais de 190 países. Até este momento, porém, o TFFF também está ainda no campo do “se”.
Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Eliane Brum
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Célia Arruda
Tradução para o castelhano: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty e Maria Jacqueline Evans
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum