A desmedida de Marcos Dantas
Eleutério F. S. Prado [1], Economia e complexidade, 21 de setembro de 2025
“Tudo o que é humano – riqueza, honra, poder, mas também alegria, dor etc. – tem uma medida determinada, cuja transgressão leva à perdição e à ruina.”
Hegel, G. W. F. – A ciência da lógica.[2]
Marcos Dantas escreve torto por linhas certas, ou melhor, por linhas aparentemente certas. Eis que em suas incursões na teoria do valor de Karl Marx, ao pôr em arquivo digital e no papel ideias que antes ruminara, ele comete alguns desatinos conceituais dignos de nota. A propósito, ele colou em um seu escrito uma citação de um texto vintenário – logo se dirá qual –, que julgou corroborar as suas teses.
Por isso, aquele que aqui escreve se viu na obrigação de fazer um comentário crítico a fim de restabelecer um sentido que se perdeu nessa colação. Eis o que alinhavou, junto com outros autores, no livro O valor da informação:[3]
“Cada vez mais, ao longo da evolução histórica do capitalismo moderno, a mercadoria – aquela conforme definida e discutida por Marx – foi sendo esvaziada do próprio tempo de trabalho vivo nela diretamente contido. Anselm Jappe fala-nos da “desvalorização do valor”. Eleutério Prado discute a “desmedida do valor”. Guy Debord, Fredric Jameson, Isleide Fontenelle e David Harvey referem-se à “estetização da mercadoria”.
“Por muitos caminhos, diferentes autores que nos remetem a Marx perceberam que a economia mercantil, tal como Marx a descreveu e justo como ele estabeleceu sua possível lógica evolutiva, ultrapassou os limites da mercadoria e alcançou um estágio de desenvolvimento que nos desafia a interrogar porque, apesar disso, o capitalismo não desabou como Marx parecia prever.”
Nesse trecho, Dantas faz referência ao escrito Valor desmedido e desregramento do mundo, que foi publicado como um dos capítulos do livro Desmedida do valor – Crítica da Pós-grande indústria há cerca de vinte anos atrás.[4] Desde logo, é preciso então afirmar, peremptoriamente, que esse texto não autoriza a afirmação de que a “economia mercantil (…) ultrapassou os limites da mercadoria”; que ele, ademais, não permite afirmar que “a mercadoria (…) foi sendo esvaziada de (…) tempo de trabalho vivo”. Esse escrito, ademais, não se sente bem dando sustentação à afirmação incorreta de que Marx previu o desabamento do capitalismo, pois, como se sabe, ele julgou que esse sistema deveria ser derrubado pelos trabalhadores devidamente organizados.
Ao contrário, o escrito referido parte da tese de que a mercadoria, tal como está dito no primeiro parágrafo de O capital, é a forma elementar da riqueza tal como esta aparece no modo de produção capitalista. Assume, ademais, que a mercadoria é – e continua sendo – a unidade contraditória de valor de uso e valor e que o valor de troca é forma de aparecimento do valor.
Admite, outrossim, que o valor está constituído por trabalho abstrato – constituído por meio de uma redução que é feita pelo próprio processo objetivo da economia mercantil generalizada. E que ele é – e continua sendo – o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir a mercadoria. Ele não se alinha, para finalizar, com a tese de que o capitalismo vai colapsar de modo espontâneo, meramente por causa de suas contradições internas.
Posto isso, é preciso agora retomar o verdadeiro sentido do escrito vintenário acima aludido que, aliás, ainda não perdeu a atualidade. Nele se procura, em última análise, interpretar um trecho muito comentado dos Grundrisse em que Marx fala do capitalismo num momento futuro, certamente longínquo do ponto de vista de meados do século XIX, mas que permanece, no entanto, indefinido. Eis que, para ele, a produção valor e mais-valor se torna uma base miserável para a criação de riqueza material quando a própria ciência – e não mais o trabalho e o tempo de trabalho – torna-se o principal fator da produção social de valores de uso. Eis o trecho:
No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que – sua poderosa efetividade –, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção. (…) O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria.[5]
Ora, é preciso analisar esse trecho com cuidado. Marx não diz aí que o valor e o mais-valor deixam de existir ou que se tornam irrelevantes no desenvolvimento do próprio capitalismo. Ao contrário, ele mantém o suposto de que as mercadorias, saídas da produção e entrantes nos mercados são – e continua sendo – unidades de valor de uso e valor porque está é a forma elementar da riqueza no modo de produção capitalista.
Quando fala de “riqueza efetiva” e “riqueza atual” nesse trecho, ele está apontando para a riqueza mormente enquanto valor de uso, mesmo se riqueza no capitalismo, para ele, está constituída por uma enorme “coleção de mercadorias”, unidades contraditórias de valor de uso e valor. Eis que está referindo ao fato básico que o capitalismo se apresentou na história como um modo de produção que tem uma capacidade extraordinária de desenvolver as forças produtivas, ou seja, em particular, de aumentar a produtividade do trabalho, ou seja, a capacidade humana de produzir coisas úteis que atendem necessidades.
E essa capacidade está fundada, por sua vez, na capacidade extraordinária que possui de desenvolver o conhecimento científico e, assim, as tecnologias e técnicas utilizáveis na produção de mercadorias. Em consequência, os trabalhadores passam a gerar uma quantidade crescente de mercadorias num dado tempo de trabalho. Como a ciência e a tecnologia atuam durante o tempo de trabalho, potencializando a capacidade produtiva do trabalho, Marx se refere ao “poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho”. Quando na história esse poder se torna formidável – diz ele – “o roubo de tempo de trabalho alheio” se torna um “fundamento miserável” para sustentar a civilização. Ou seja, o capitalismo se torna anacrônico.
Bom, nesse ponto é preciso explicar por que ocorre uma “desmedida do valor” no momento em que o sistema baseado na relação de capital envelhece? Note-se de modo preliminar que o valor é uma medida e que o valor de troca é a sua aparência, assim como o comprimento é uma medida e o metro é sua aparência. E que tanto o valor de troca quanto o metro só se configuram como representações de medida porque uma autoridade (um Estado e uma convenção de cientistas, respectivamente) definem unidades que servem como padrões de medida.
A medida, por isso mesmo, aparece na lógica de Hegel como uma categoria do ser-aí. Nesse livro, a medida em geral é pensada, enquanto determinação ou propriedade do ser em geral, como a unidade de qualidade e de quantidade; ademais, esse pensador explica aí que ao variar o quantum, ou seja, a quantidade determinada, a qualidade também muda, altera-se a medida. Eis o que diz:
“A medida, enquanto é a unidade da qualidade e da quantidade, é por isso, ao mesmo tempo, o ser completo”. [6]
“Tudo o que existe tem uma medida. Toda existência possui uma magnitude e ela pertence à natureza da coisa; constitui sua natureza determinada e o seu ser dentro de si”.[7]
“A identidade da quantidade e da qualidade, que está presente na medida, é somente em si; mas ainda não está posta. (…) Essas duas determinações [estando postas] (…) se fazem valer cada uma por si, de tal modo que as determinações quantitativas do ser-aí podem ser modificadas sem que isso afete a sua qualidade. Mas, por outro lado, esse aumentar e diminuir da quantidade tem o seu limite; eis que na transgressão desse limite, a qualidade é alterada”.[8]
O desmedido, “é, antes de tudo, esse ultrapassar de uma medida, por cima de sua determinidade qualitativa, mediante a sua natureza quantitativa”.[9]
“Assim, por exemplo, o grau de temperatura da água é, de início, indiferente ao seu estado líquido; mas, se ela continua a aumentar ou diminuir, apresenta-se um ponto que esse estado de coesão se altera qualitativamente, e água se transforma em vapor ou em gelo, respectivamente.[10]
A mudança da quantidade pode gerar, portanto, a partir de certo ponto, uma medida distorcida, imprópria e arbitrária. Assim, por exemplo, o mero volume se torna uma medida inadequada da quantidade de água quando ela está aquecida a mais 99º celsius. O mero comprimento pode se mostrar inadequado como medida de um fio embaraçado. A área plana – dando um outro exemplo – pode ser adequada para medir a superfície de um lago se há pouco ou nenhum vento; contudo, se sobrevém uma ventania, ela se torna inadequada porque se formam ondas significativas na superfície de lago.
Ora, foi por inspiração dessas passagens da Ciência da Lógica que se ousou falar em desmedida do valor. Julgou-se que essa desmedida vem ocorrer no estágio avançado da grande indústria, quando essa última foi já, de fato, transformada em pós-grande indústria. Ponderou-se desse modo que a revolução da comunicação e da informação, que passou a transformar os métodos de produção em uso no modo de produção capitalista, tornou o mero tempo de trabalho inadequado para medir a riqueza no capitalismo contemporâneo.
À medida que prossegue a ampliação e intensificação do emprego da ciência nos processos produtivos, materializada principalmente no capital fixo em geral, a importância do tempo de trabalho como princípio se reduz, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Na primeira dimensão, tal como se mencionou anteriormente, porque aumenta a produtividade do trabalho e, assim, pouco tempo de trabalho passa a originar uma grande quantidade de valores de uso.
Na segunda dimensão porque o tempo de trabalho se torna menos importante em relação à própria ciência na criação de riqueza. Nas palavras do próprio Marx, ele se torna “um momento, indispensável obviamente, mas subordinado, comparado ao trabalho científico geral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, de um lado, e da força produtiva geral que advém da combinação social na produção total, de outro lado – uma combinação que aparece como um fruto natural do trabalho social (embora seja seu produto histórico)”.[11]
Ou seja, ousando aqui falar na linguagem de Hegel, com o desenvolvimento do capitalismo, a medida valor da riqueza “está conforme apenas consigo mesma”.
[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog.
[2] Hegel, Georg W. F. – Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. A ciência da lógica. Vol. I, São Paulo: Loyola, 1995.
[3] Dantas, Marcos; Moura, Denise; Raulino, Gabriela; Ormay, Larissa – O valor da informação: De como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet. Boitempo Editorial, 2022, p. 69.
[4] Prado, Eleutério F. S. – Desmedida do valor – Crítica da Pós-grande indústria. Xamã, 2005.
[5] Marx, Karl – Grundrisse – Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboço da crítica da Economia Política. Boitempo Editorial, 2011, p. 587-588.
[6] Hegel, G. W. F. – Op. Cit., p. 214.
[7] Idem, p. 215.
[8] Idem, p. 216.
[9] Idem, p. 217.
[10] Idem, p. 216.
[11] Marx, Karl – Op. cit., p. 588.