Transformação digital em um mundo polarizado
A verdadeira soberania digital exigirá não apenas infraestrutura, mas também a capacidade de negociar em um tabuleiro global onde tecnologia e poder são indivisíveis
Ivan da Costa Marques, Lucas Buosi, Fabrício Neves e Caroline Pereira, A terra é redonda, 24 de setembro de 2025
Apresentamos um extrato resumido de uma parte específica de um estudo comissionado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE)[i] sobre os planos e ações de um grupo previamente selecionado de países – África do Sul, Austrália, Colômbia, Hungria, Índia, México, Turquia e Vietnã – frente à “transformação digital” como fenômeno mundial em curso de mudança no modo de vida no planeta, pelo menos para uma grande parte da população.
Colocar todos os textos e imagens que circulam em forma digital e incorporá-los em uma infraestrutura digital que requer desenvolvimento e, ao mesmo tempo, se modifica com frequência, a “transformação digital” é uma tarefa hercúlea. Executá-la com alto grau de sucesso é um desafio imenso.
A “transformação digital” requer, além do desenvolvimento / aquisição de software e hardware, a criação de novos trabalhadores, novos empresários, novos consumidores, novos intelectuais, em suma, novas cidadãs e novos cidadãos, pela adoção de novas práticas sociais, pela reeducação e pelo retreinamento continuados.
O estudo completo está baseado em documentos sancionados pelos governos voltados para o planejamento da “transformação digital” ou “passagem para um mundo digitalizado”. Não obstante a grande diversidade, verificamos que todos os países estudados consideram que (1) levar adiante a “transformação digital” é inevitável e exige alianças e parcerias, e (2) todos destacam e sugerem alianças e parcerias com os Estados Unidos.
Assumindo que uma aliança entre países não pode deixar de ser uma via de mão dupla, propomos a noção de “Gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA” para situar parcialmente cada um dos países selecionados. E buscamos avaliar a reciprocidade cooperativa de cada país esperada pelos EUA a partir da imagem de cada um deles publicizada no site do Departamento de Estado dos EUA.[ii]
O extrato reflete o quadro geopolítico tal como polarizado em meados de 2024, antes de Donald Trump ser eleito. O texto oferece, portanto, uma aproximação para uma base comparativa para um outro quadro geopolítico que poderá, ou não, se estabilizar durante o segundo governo de Donald Trump.
Gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA
Propomos a noção de um “gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA” para situar cada um dos países estudados. A linguagem diplomática faz com que todos os países em pauta sejam apresentados pelo Departamento de Estado (dos EUA) como “parceiros” (“partners”), mas não deixa de revelar uma forte graduação nas “parcerias”.
A capacidade de um país mobilizar a reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA envolve um complexo de fatores. A importância da dimensão econômica é inegável, mas as alianças geopolíticas com “parceiros” ultrapassam as relações econômicas, que podem ser modificadas e justapostas a relações culturais, políticas e militares. O gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA diz respeito a pergunta: o que os EUA avaliam que um país possa oferecer em troca de um tratamento privilegiado?
O que publiciza o Departamento de Estado dos EUA?
Nesta sessão estão extratos do site do Departamento de Estado consultados durante o mês junho de 2024 sobre cada um dos países estudados, seguidos de breves reações. Não obstante a complexidade, aferir o que o Departamento de Estado diz sobre cada país com a régua do gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA carrega uma sugestão do que está ou poderá vir a estar presente nas almejadas parcerias ou alianças com os EUA.
África do Sul
Em 1986 o Congresso dos EUA aprovou o Comprehensive Anti-Apartheid Act, que impôs sanções ao governo sul-africano do apartheid. O país enfrenta muitos desafios, incluindo crescimento econômico lento, altas taxas de criminalidade e desemprego, corrupção persistente e uma epidemia persistente de HIV/AIDS. A assistência dos EUA se concentra em melhorar a assistência médica, aumentar os padrões de educação e treinamento de professores, desenvolver capacidade na agricultura para abordar a segurança alimentar regional e mitigar e se adaptar às mudanças climáticas. (https://www.state.gov/countries-areas/south-africa/)
Senão por outros motivos, por sua escala e seus difíceis conflitos internos, a África do Sul, não reúne elementos para oferecer uma base atraente para uma parceria geopolítica com os EUA em torno às questões da “transformação digital”.
Austrália
A Austrália é um amigo, parceiro e aliado vital dos Estados Unidos. Os Estados Unidos e a Austrália mantêm uma relação robusta sustentada por valores democráticos partilhados, interesses comuns e afinidades culturais. Em 2017, os Estados Unidos e a Austrália assinalaram o 75º aniversário de várias batalhas importantes da Segunda Guerra Mundial, incluindo as Batalhas do Mar de Coral, Midway e Guadalcanal. Em 2018, os dois países assinalaram os 100 anos de amizade comemorando a Batalha de Hamel, na qual as forças dos EUA e da Austrália lutaram lado a lado pela primeira vez (https://www.state.gov/countries-areas/australia/).
Entre a Austrália e os EUA existe mais do que uma “parceria”, existe uma visível “irmandade” de interesses geopolíticos. Isso distingue a Austrália de todos os demais países deste estudo e tornaria ilusório analisar as relações EUA-Austrália nos mesmos termos em que se pode analisar as relações dos EUA com os demais países do estudo.
Colômbia
O governo dos EUA apoia os esforços colombianos para fazer a transição do conflito para a paz, trabalhando nas zonas rurais mais conflituosas e negligenciadas da Colômbia, onde a violência, a falta de presença governamental e a ausência de oportunidades económicas lícitas convergiram historicamente. (https://www.state.gov/countries-areas/colombia/).
A Colômbia poderia apresentar a proximidade geográfica como vantagem para fortalecer uma parceria mais intensa com os EUA. A longa história de conflitos internos, no entanto, não contribui para que a vantagem da localização geográfica da Colômbia seja suficiente para que ela seja considerada uma base onde construir um parceiro privilegiado pelos EUA, principalmente quando se leva em conta as credenciais do México para tal.
Hungria
Após 2004, com a entrada da Hungria para a União Europeia, os EUA gradativamente diminuíram a assistência bilateral para o desenvolvimento da Hungria. Mas ainda hoje os EUA proveem assistência no que diz respeito à segurança, através, dentre outros, do Programa de Reforma para Defesa Global, que aconselha as Forças de Defesa Húngaras no planejamento operacional conjunto. (https://www.state.gov/countries-areas/hungary/).
Apesar da Hungria reunir uma série de condições atraentes para a produção de hardware e software, como o nível educacional da população, elas não aparecem em quantidade e mesmo qualidade suficientes para concorrer e ser alternativa a outros países membros da União Europeia de maior porte, de fato os maiores aliados dos EUA na OTAN.
Índia
Os EUA apoiam a emergência da Índia como uma potência global líder e um parceiro fundamental nos nossos esforços para garantir que o Indo-Pacífico seja uma região de paz, estabilidade e prosperidade crescente. No ano passado, os estudantes indianos matriculados em faculdades e universidades dos EUA contribuíram com mais de US$8 bilhões para a economia dos EUA.
O número total de estudantes indianos nos Estados Unidos mais do que duplicou na última década, passando de 81 mil em 2008 para um recorde de 202 mil em 2019. Os fortes laços interpessoais entre os dois países, refletidos nos quatro milhões de pessoas indianas que vivem nos EUA, são uma espantosa fonte de força para a parceria.
A Índia e os Estados Unidos cooperam estreitamente em organizações multilaterais deram as boas-vindas à adesão da Índia ao Conselho de Segurança da ONU em 2021 e apoiam um Conselho de Segurança da ONU reformado que inclua a Índia como membro permanente. Juntamente com a Austrália e o Japão, os Estados Unidos e a Índia reúnem-se no Quad para promover um Indo-Pacífico livre e aberto e proporcionar benefícios tangíveis à região. (https://www.state.gov/countries-areas/india/)
Depreende-se claramente o fortalecimento de parcerias e alianças com a Índia, visto que o Departamento de Estado entende que a previsível emergência da Índia como uma terceira superpotência na Ásia pode modificar o quadro da polarização global a favor dos EUA, em competição com a outra superpotência asiática que é a China.
México
O âmbito das relações EUA-México é amplo e vai além das relações diplomáticas e oficiais. Cerca de 1,5 milhões de cidadãos dos EUA vivem no México, e o México é o principal destino estrangeiro para os viajantes dos EUA. A região fronteiriça representa uma população combinada de aproximadamente 15 milhões de pessoas.
A cooperação entre os Estados Unidos e o México ao longo da fronteira inclui a coordenação com autoridades estaduais e locais em infraestruturas transfronteiriças, planejamento de transportes e segurança, bem como a colaboração com instituições que abordam questões de reforma econômica, intercâmbio educacional, segurança interna, controle do tráfico de drogas, migração, empreendedorismo e inovação, recursos naturais, energia, ambiente e saúde (https://www.state.gov/countries-areas/mexico/).
Pode-se dizer que o México é um território unilateralmente integrado aos EUA, dada a intensidade das relações entre os dois países, e dada também a assimetria entre eles. Especialmente na fronteira essa integração assimétrica envolve intensamente o cotidiano de milhões de pessoas. Depreende-se que as parcerias e alianças com o México são de importância ímpar para os EUA.
Turquia
A Turquia faz parte é um aliado da OTAN e um parceiro regional crítico. É do interesse dos EUA manter a Turquia ancorada na comunidade euro-atlântica. O acordo de Cooperação Económica e Técnica de 1947 com a Turquia implementou a Doutrina Truman e a sua política “para apoiar os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”.
Os EUA condenaram a tentativa de golpe de 15 de julho de 2016 e continuam a enfatizar a importância da aderência do Governo da Turquia a políticas e ações que construam a confiança nas instituições democráticas do país e no estado de direito, assim como sustentando os compromissos com os direitos humanos. (https://www.state.gov/countries-areas/turkey/)
O pequeno texto do Departamento de Estado não chega a esconder a falta de confiança na Turquia, uma nação de cultura não ocidental na periferia da União Europeia e um tanto rejeitada por ela. No desejo de ver a Turquia ancorada na comunidade euro-atlântica transparece a dúvida sobre o quanto a Turquia poderia ser convencida a ser uma aliada fiel.
Vietnã
Vinte e sete anos após o estabelecimento de relações bilaterais em 1995 os EUA apoiam um Vietnã independente, próspero e forte, que contribua para a segurança internacional; respeite os direitos humanos e o estado de direito; e seja resiliente face aos desafios relacionados ao clima e à energia.
As relações são orientadas pela Parceria Abrangente EUA-Vietnã de 2013 e pelas Declarações Conjuntas emitidas pelos líderes dos dois países em 2015, 2016 e em maio e novembro de 2017. O comércio bilateral EUA-Vietnã cresceu de US$451 milhões em 1995 para quase US$113 bilhões em 2021. As exportações de bens dos EUA para o Vietnã valeram mais de US$10 bilhões em 2020, e as importações de bens pelos EUA em 2020 valeram US$79,6 bilhões. (https://www.state.gov/countries-areas/vietnam/).
O texto do Departamento de Estado deixa transparecer o empenho dos EUA em fazer do Vietnã mais um aliado fiel na Ásia (além do Japão e da Coreia do Sul, e ainda Taiwan que a China se recusa a reconhecer como outra nação) em troca do apoio vigoroso no percurso do desenvolvimento econômico e do bem-estar da população. Ao longo duas primeiras décadas do século XXI, as parcerias e alianças entre os EUA e o Vietnã fortaleceram-se.
À guisa de conclusões:
A Austrália destaca-se em primeiro lugar no gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA, revelando uma cumplicidade de país irmão que vai muito além das relações econômicas. É o único país ao qual o Departamento de Estado se refere como “amigo, parceiro e aliado vital” dos EUA, para logo a seguir ressaltar uma história militar conjunta e as comemorações das batalhas lutadas lado a lado. Para citar um dentre muitos exemplos, Austrália, Canadá e Nova Zelândia juntaram-se ao Reino Unido e aos Estados Unidos no UKUSA Agreement de 1946 para formar a Five Eyes, “uma das alianças de ampla espionagem mais eficazes e duradouras do mundo”.[iii]
A transformação digital da Austrália vem na esteira naturalizada da ideia ocidental de progresso que lhe é completamente familiar, como atestam os documentos oficiais (VISÃO 2025 e a “Estratégia de Economia Digital”). Apesar disso, a situação se torna uma incógnita quanto à ambição australiana de ter fábricas de semicondutores instaladas em seu território, apresentando-se como uma alternativa geopolítica, mesmo que parcial e não excludente, à Taiwan.
Os investimentos e a complexidade aumentam pelo menos uma ordem de grandeza, e as decisões tornam-se mais difíceis de serem equilibradas colocando uma pressão adicional sobre a comunidade de língua inglesa aglutinada no acordo Five Eyes.
Dentre os demais países incluídos no estudo, outros três se diferenciam nos documentos do Departamento de Estado vistos sob o prisma do gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA, embora por razões e a partir de histórias e condições muito diferentes. Além do México, são eles a Índia e o Vietnã, que tiveram suas relações reformuladas com e pelos EUA nas últimas décadas do século XX e intensificadas no século XXI.
Com uma população que suplantará a chinesa e a formação de uma significativa base tecnocientífica própria, a Índia tornou-se uma superpotência emergente. A população indiana nos EUA ultrapassa os sete dígitos, ocupando as mais diversas profissões, inclusive a de professores universitários e empresários. Além disso, a Índia pode desempenhar um papel importante no controle militar de toda a região do Oceano Índico, o que envolve também a Austrália.
Os documentos consultados apontam ações do Governo Indiano voltadas para a transformação digital desde o século passado. Na década de 1990 a “Política de Tecnologia da Informação de 1998” (IT Policy 1998) foi um dos primeiros documentos a delinear uma estratégia abrangente para o desenvolvimento de TI na Índia. O programa “Make in India“, lançado em 25 de setembro de 2014, pelo Primeiro-Ministro Narendra Modi, definiu como objetivo transformar a Índia em um centro (hub) global de manufatura, atraindo investimentos estrangeiros diretos (IED) e incentivando as indústrias locais a aumentarem a sua produção.
O “Make in India” tem sido acompanhado através de relatórios de progresso e avaliações periódicas, com iniciativas diversas que evoluíram ao longo do tempo para se adaptar a novas condições tecnológicas e econômicas. Na sequência, em 2015, o governo da Índia reformulou a ampliou muito suas ações publicando o programa “Digital India” concebido como um programa guarda-chuva que entrelaça de forma coordenada diversas iniciativas e programas.
O Digital India definiu nove “pilares”, coordenados pelo poderoso Department of Electronics and Information Technology (DeitY) – anunciado como “um programa para transformar a Índia em uma sociedade e uma economia do conhecimento digitalmente empoderada”.[iv] Desde seu lançamento, o Digital India tem sido monitorado e avaliado regularmente para garantir que os objetivos sejam alcançados. O governo indiano tem feito esforços para reformular e expandir as iniciativas sob o Digital India, adaptando-as às necessidades em evolução da população e às mudanças tecnológicas.
O progresso do programa é frequentemente revisado por meio de relatórios e análises, e várias iniciativas têm sido implementadas para melhorar a eficiência e a acessibilidade dos serviços digitais. De acordo com as informações fornecidas pelo governo, o orçamento de 2019-2020 a 2023-2024 alocou aproximadamente US$ 13 bilhões ao programa “Digital India”.
No século passado, o Vietnã, embora tenha sido vencedor no sentido de os EUA terem se vistos obrigados a retirar suas tropas de lá nos anos 1970, foi destruído pela guerra. Neste século, no entanto, o Vietnã está levando adiante sua reconstrução em inegável aliança com os EUA, especialmente a partir do acordo comercial em 2002, como mostra o balanço de pagamentos entre os dois países.
Não é difícil entender a importância, para os EUA, de mais um aliado forte no Leste Asiático, além do Japão, da Coreia do Sul e a problemática Taiwan, cujo status de nação nunca foi admitido pela China. O Comitê Nacional de Transformação Digital, presidido pelo Primeiro-Ministro, estabelece a estratégia e supervisiona a transformação digital no nível central mais alto da República Socialista do Vietnã.
As políticas e diretrizes definidas pelo Comitê Nacional de Transformação Digital são implementadas pela “Autoridade Nacional de Transformação Digital” (National Digital Transformation Authority), um órgão executivo que coordena o processo de transformação digital com diferentes ministérios e agências para promover a digitalização na administração pública, economia e sociedade. O Vietnã construiu uma Agenda de Transformação Digital para transformar o Vietnã em um país completamente digitalizado no prazo estimado de três décadas.
O processo é coordenado pela “Autoridade Nacional de Transformação Digital”. Os documentos do Vietnã sugerem um grande engajamento com a transformação digital, “promovida como a chave para desbloquear os dois principais objetivos de desenvolvimento do país: alcançar zero emissões de carbono até 2050 e se tornar um país de alta renda até 2045.” Com reconhecidas dificuldades e riscos, a Agenda de Transformação Digital do governo do Vietnã tem alavancado as tecnologias digitais, avançando nos padrões da Indústria 4.0 para “impulsionar o crescimento econômico, melhorar a governança e promover o desenvolvimento social.”
Excluído o Canadá, o México é o país de maior interpenetração com os EUA, com milhões de habitantes ao longo da fronteira que perfazem laços econômicos, sociais e políticos. O espanhol é a segunda língua dos EUA. A partir da década de 1960, uma sucessão de acordos incentivou a instalação de fábricas de montagem (maquiladoras) visando a exportação para os EUA, aproveitando os salários baixos vigentes no México.[v]
A indústria maquiladora se enquadra no processo de offshoring da fabricação das empresas e sua dimensão, além da proximidade geográfica, fez despertar o interesse pelo México no atual processo de reshoring decorrente da preocupação com a segurança das cadeias de suprimento e da disputa com a China.[vi]
Em 06 de setembro de 2021 o Diário Oficial do Governo Mexicano publicou a Estratégia Digital Nacional (EDN), como parte da Quarta Transformação do Governo do Presidente Andrés Manuel López Obrador. A Estratégia Nacional Digital é definida como o plano de ação do Executivo Federal para aproveitar o potencial das tecnologias de informação e comunicação, e emerge do Plano Nacional de Desenvolvimento 2019-2024 (PND).
Nos “considerandos” da lei que estabeleceu a END mexicana destacam-se “a independência tecnológica (definida) como a não-sujeição a compromissos e condições impostas arbitrariamente por fornecedores ou fabricantes de tecnologias, que permite evitar monopólios e dependências técnicas” e “a autonomia tecnológica (definida) como gerar soluções técnicas próprias e a aproveitar o talento técnico disponível na Administração Pública Federal.”
Apesar da END elencar elementos qualitativos, faltam-lhe os elementos quantitativos e orçamentários para torná-la um plano de governo, com objetivos parciais, metas, pontos de acompanhamento e orçamentos, origem e aplicação de recursos estimados para cada “ação”. Além disso, não obstante trazer chamadas para a “soberania tecnológica” e “autonomia tecnológica”, a ênfase da END é no uso (desconsiderando a criação, o domínio e a propriedade) das tecnologias digitais a partir do objetivo prioritário enfatizado de prover acesso generalizado à Internet.
A transformação digital, e as dificuldades e oportunidades que ela acarreta, parecem não ter sido consideradas em sua plenitude como uma prioridade para o governo López Obrador. Seu foco no setor aparenta ser limitado ao programa “Internet para Todos”, que busca melhorar a conectividade em áreas rurais; enquanto isso, parece que outros elementos necessários de uma estratégia nacional digital vêm em sendo negligenciados.
Uma ausência notável na END mexicana é a questão industrial. A END conta com a criação e expansão generalizada da infraestrutura digital, que envolve produtos de hardware e software, sem enunciar como, estrategicamente, o México poderá se prover desses produtos.[vii] É justamente nesta conjunção de acesso a produtos digitais necessários para levar adiante a transformação digital e os recursos necessários para adquiri-los que incidem as relações específicas entre o México e os EUA.
No quadro geopolítico polarizado pela disputa EUA x China na indústria de produtos digitais, os EUA elegeram o México como um dos locais privilegiados para incentivar a instalação de fábricas cuja finalidade primeira é exportar produtos para os EUA. Não só empresas norte-americanas estão investindo na mudança de fábricas, mas também empresas europeias e chinesas buscam se localizar no México para fazer o nearshoring e exportar para os EUA.
Dada a disparidade de capacidades tecno-políticas, é de se esperar que caiba ao México o papel de seguidor das iniciativas propostas pelos Estados Unidos. A definição e limitação do papel do México evidencia-se na contratação da Arizona State University (ASU) para fazer a avaliação abrangente do ecossistema de semicondutores e da estrutura regulatória existentes no México, bem como das necessidades de força de trabalho e infraestrutura.
É importante notar, no entanto, que este movimento de grandes dimensões na localização global da indústria acontece de forma bastante disjunta da END mexicana. Não é de se esperar, pelo menos a curto prazo, que a soberania e autonomia tecnológicas mencionadas na END mexicana consigam se afirmar significativamente face a desproporção entre os investimentos, financeiros e políticos, envolvidos, da parte do México e da parte das empresas alinhadas à política dos EUA.
Por outro lado, a quantidade de mão-de-obra (em sua maioria de baixa qualificação) empregada não é desprezível, assim como o superavit gerado com as exportações pode abrir outras possibilidades para o México. Assim, no mais longo prazo, permanece aberta a questão de como o México saberá ou não aproveitar a oportunidade surgida com o remanejamento global das fábricas para levar adiante a sua transformação digital em conformidade com os princípios e valores subjacentes à END.
Como vimos, o Departamento de Estado, mesmo atento à linguagem diplomática, mostra a distância entre os quatro países acima e os outros quatro países selecionados – África do Sul, Colômbia, Hungria e Turquia – no que tange um gradiente de reciprocidade cooperativa esperada pelos EUA, visando alianças industriais-econômicas-geopolíticas e militares no quadro geopolítico da “transformação digital”.
*Ivan da Costa Marques é professor do Programa de pós-graduação de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ. Autor do livro Brasil: abertura dos mercados (Contraponto). [https://amzn.to/3TFJnL5]
*Lucas Buosi é doutorando em sociologia na Universidade de Brasília (UnB).
*Fabrício Neves é professor do Departamento de sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
*Caroline Pereira é assessora técnica no Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).
Notas
[i] O CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos) é um organismo supervisionado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O CGEE realiza estudos visando definir estratégias e propor recomendações para subsidiar a formulação de políticas públicas.
[ii] Os links para os sites do Departamento de Estado estão após os resumos tópicos sobre cada um dos países.
[iii] Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Five_Eyes
[iv] A sigla DeitY nos documentos do governo da Índia significa “Department of Electronics and Information Technology“, que é o Departamento de Eletrônica e Tecnologia da Informação, Governo da Índia. Este órgão é responsável por formular políticas e estratégias relacionadas ao desenvolvimento da eletrônica e da transformação digital. É difícil resistir a observar que a palavra “deity” significa “divindade” em inglês, uma língua adotada por parte significativa da população indiana e, junto com o hindi, em muitos documentos oficiais do Governo Indiano.
[v] Muito simplificadamente, é usual associar a palavra “maquiladora” a uma operação industrial motivada unicamente pelos baixos salários do México, supostamente sem transferência de tecnologia.
[vi] A entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 acelerou o processo de offshoring da fabricação, tanto para a China como para outros países asiáticos.
[vii]Uma iniciativa digna de nota para desenvolvimento da área de software foi o PROSOFT, lançado com os detalhes de um programa ou plano governamental quantificado para execução a partir de 2017. Não conseguimos, no entanto, informações sobre a execução do programa. Creio ser seguro concluir que o PROSOFT teve escassa significação. Ver https://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5468222&fecha=30/12/2016#gsc.tab=0