Trump, Lula e os BRICS: o Brasil e a desglobalização necessária

O ataque brutal de Trump ao Brasil exige respostas que devem escapar ao senso comum que a mídia constrói. Abriu-se uma janela, perigosa é verdade, mas de qualquer forma uma oportunidade para redirecionar o sentido da economia brasileira, cujo rumo permanece intocado a 35 anos. O que fazer? Aprofundar as relações com a Europa? Apoiar-se nos BRICS? Retaliar nas big techs? A resposta exige definirmos um norte estratégico. Ele deve ser de redução das vulnerabilidades do país, de fortalecimento da sua resiliencia econômica, social e ambiental.

José Correa Leite, Rupturas, 28 de julho de 2025

Trump anunciou, na segunda semana de julho, suas novas tarifas alfandegárias e abriu processos de negociação que já resultaram em tarifas definitivas e acordos de abertura de mercados e compromissos de compras: 10% para a Inglaterra, 15% para Japão e a União Europeia, 19% para a Indonésia, 20% para o Vietnã, uma trégua com tarifas de 30% para a China, negociações com Índia, Coréia do Sul e Argentina, além do México e do Canadá. Trump está, por outro lado, tentando enquadrar politicamente o Brasil com tarifas de 50%. Para além da drenagem de recursos de outros países para os EUA, parece inegável que Trump vê a parceria estratégica dos EUA com a China e os acordos de livre-comércio, até agora responsáveis pela globalização vigente, como um erro. Ele quer recentrar boa parte das cadeias produtivas dos EUA no mercado interno e reindustrializar sua economia. Trump busca reverter a vaga globalizadora deslanchada por Reagan e Thatcher em 1980 e consolidada com a formação da Organização Mundial do Comércio, em 1994. Ele trabalha, perante os demais países, com um capitalismo de rapina - e, considerando a crise climática, um capitalismo do fim do mundo. Tudo indica que estamos em um momento decisivo na (r)estruturação do capitalismo - como em 1929, 1945 ou 1994.

Coerente com isso, Trump impulsiona um nacionalismo político autoritário e intolerante, que pode ser considerado a forma atual do fascismo. O movimento MAGA (Make America Great Again) é uma retomada, radicalizada, do movimento America First dos anos 1930, com ênfase no autoritarismo schmitiano (a busca da divisão da sociedade entre amigos e inimigos), no supremacismo cristão branco, na xenofobia e na transfobia, e na perseguição de uma parcela fundamental da classe trabalhadora estadunidense, os imigrantes, responsáveis por boa parte das funções pior remuneradas da sociedade. Apoiado na corrosão da esfera pública liberal em todo o mundo pelas redes sociais das big techs, que empreenderam uma forte deriva política autoritária, Trump persegue uma mudança de regime nos EUA e também impulsiona a destruição dos regimes de liberdades democráticas pelo mundo afora. Ele parece ter colocado o Brasil como um alvo privilegiado dessa transformação do cenário político global. Busca transformar o mundo a sua imagem e semelhança, suprimindo tanto o liberalismo democrático que nasceu com o New Deal como o neoliberalismo econômico que substituiu o keynesianismo e, depois de 1980, erodiu os pactos sociais que sustentavam o liberalismo progressista (nos termos de Nancy Fraser). Se lembrarmos que estamos em um momento decisivo de aceleração das mudanças climáticas e da difusão das redes sociais e das tecnologias de inteligência artificial, o mínimo que podemos dizer é que a humanidade e a vida na Terra entraram em tempos perigosos.

Mas crises são inseparáveis das oportunidades e bifurcações. O estopim da crise da globalização neoliberal para os EUA foi, externamente, o avanço do capitalismo de estado chinês, e internamente, a escalada alucinante das desigualdades produzida pela globalização. A crise está sendo respondida nas relações comerciais dos velhos centros capitalistas com o retorno ao nacionalismo econômico e ao big stick imperialista, impulsionado antes de tudo por Trump, mas não só - basta ver a remilitarização europeia. Isso obriga as demais economias a se reorganizarem. Lembremo-nos que o Brasil pôde se industrializar no século XX porque a crise de 1929 inviabilizou a economia cafeeira e a resposta empírica que nosso país deu a ela foi a substituição das importações de produtos manufaturados - que levou, por mais de meio século, ao nacional-desenvolvimentismo. Temos pela frente, com a desorganização das cadeias produtivas globais, um momento forçado de desorganização e reorganização da globalização, que poderá ser discutido amplamente. Como o Brasil reagirá agora às agressões norte-americanas?

Essa é uma conjuntura que pode dar espaço para a retomada de projetos centrados em economias nacionais e/ou espaços regionais soberanos ou delimitados - os únicos com resiliência para enfrentar tanto uma economia mundial cada vez mais imprevisível, crispada de conflitos e instabilidades, quanto o horizonte de colapso ambiental. Soberania, autonomia, redução da dependência, resiliência, coesão da sociedade, autossuficiência são virtudes econômicas para qualquer projeto alternativo. A interdependência na economia globalizada envolve um nível de complexidade sistêmica que só pode ser gerido no âmbito das cadeias globais corporativas em detrimento dos estados nacionais, sob a supervisão de um sistema financeiro que alavanca o rentismo. Essa realidade tem que ser revertida com uma desglobalização relativa, que não deve ser concebida como autarquia, mas como encurtamento e manejo político das cadeias produtivas.

I - Trump, Lula e a globalização

Enfrentar positivamente a era do capitalismo do fim do mundo requer que amplos setores da nossa sociedade percebam que o livre-comércio é uma utopia regressiva e que temos muito mais a perder do que a ganhar com ela. O comércio baseado nas regras universais da OMC é hoje um morto-vivo que levará para o abismo todos que se agarrem a ele. Pressupunha que a economia global seria um todo orgânico que estruturaria uma sociedade global funcionando com base em cadeias globais de produção e na livre circulação de investimentos, mercadorias e pessoas - que, na teorização do neoliberalismo progressista e da “terceira via”, seria intrinsecamente democrático. Mas o livre-comércio só funciona em favor dos interesses das grandes corporações globais, as únicas capazes de operar com desenvoltura nesse espaço, e seus aliados internos nos países dependentes. 

Vivemos hoje o pesadelo distópico de desigualdades crescentes em um mundo regido pelas finanças globais e pelas big techs estadunidenses - que tem como alternativa as big techs do capitalismo de estado chinês. Como reação conservadora a isso, crescem projetosautoritários, nacionalistas e neofascistas, governos de negacionismo e anticiência que aceleram o colapso ambiental. A globalização neoliberal escalou não só suas “externalidades” sociais, mas igualmente as ambientais, produzindo uma crise climática e ecológica sem paralelos, que não terá solução em economias de mercado. O Brasil, localizado no coração dos trópicos, é muito vulnerável ao aquecimento global, em especial sua região central, coração da agricultura exportadora!

Um enorme bloqueio imaginativo paralisa a construção de alternativas progressistas frente ao tripé liberalismos livre cambistas, nacionalismos neofascistas e autoritarismo chinês. As relações comerciais entre os países e blocos de países precisariam se basear em pactos coletivos e cláusulas ambientais e sociais que preservem o tecido social dos diferentes estados e a biosfera do planeta. O livre-comércio continua sendo tratado como um paradigma inquestionável pela quase totalidade das classes dominantes brasileiras - refletindo o peso das finanças e dos setores primário-exportadores como os agrícolas, mineiros e do petróleo que, depois de 1989, controlaram firmemente o estado brasileiro e promoveram a desindustrialização do país (e tentam impor o “PL da devastação”). 

O mais problemático, contudo, é que esse paradigma aprisiona também, por convicção ou oportunismo, boa parte do partido que, na crise do nacional-desenvolvimentismo, foi construído para apresentar uma alternativa ao liberalismo, o Partido dos Trabalhadores, que hoje parece ver o liberalismo (econômico e político) como horizonte final da humanidade! O PT trabalhou nessa linha ao longo de mais de três décadas sob o lema de uma “inserção soberana na economia global”, que reprimarizou nossa economia.

A defesa do regime político de liberdades democráticas se tornou central frente ao avanço dos neofascismos. Sua defesa não pode ser deixada nas mãos dos liberais. Mas ela não é compatível com a manutenção da globalização neoliberal, exigindo um horizonte coerente de democracia social e ruptura com o livre-comércio. O paradigma liberal é, no Brasil, a expressão da cegueira das classes dominantes para qualquer compromisso com a maioria da sociedade, uma velha tradição das elites agrárias do país. É, como lembra Roberto Schwarz, uma “ideia fora do lugar”. 

Lula, o liberalismo e a ideologia da globalização multilateral

Encontramos essa adesão à ideologia liberal, em suas duas dimensões, em dois artigos assinados por Lula. Em uma matéria conjunta com Boric, Petro, Yamandú e Pedro Sanchez, intitulada Democracia sempre (Folha de S.Paulo, 20 de julho), Lula e seus pares progressistas chamam, corretamente, a “resolver os problemas da democracia com mais democracia, sempre”, a “defender a democracia como um bem comum”.

Esse documento contém uma defesa do que está no horizonte histórico possível da social-democracia: “Sabemos que as democracias não se constroem apenas a partir dos governos. Construir propostas conjuntas e eficazes que fortaleçam a coesão social, a participação cidadã e a confiança nas instituições é um trabalho que não pode se limitar a cartas de boas intenções ou recair apenas sobre os governos de turno e seus representantes. Por isso, essa iniciativa também convoca organizações sociais, centros de pensamento, juventudes e diversos atores da sociedade civil, porque sua participação e ação são fundamentais para que a democracia recupere sua capacidade transformadora”. 

O texto demarca, na sequência, do trumpismo e da extrema-direita: “Sabemos também que defender a democracia exige que sejamos capazes de condenar as derivas autoritárias e, ao mesmo tempo, falar de forma positiva, propondo reformas estruturais para enfrentar a desigualdade em nossos países e no mundo. A história nos demonstrou repetidamente que a democracia é o melhor caminho possível para garantir a paz e a coesão social, e as oportunidades para todos. Impulsionar estratégias comuns em favor do multilateralismo, do desenvolvimento sustentável, da justiça social e dos direitos humanos é um imperativo ético e político. Porque a democracia é frágil se não for cuidada”. 

Chama a atenção, nesse artigo dos chefes de estado progressistas, que a palavra capitalismo não seja mencionada, nem mesmo genericamente. Estamos lidando com “democracias” que devem “recuperar sua capacidade transformadora”, impulsionando o multilateralismo, o desenvolvimento sustentável, a justiça social e os direitos humanos!

A defesa do multilateralismo já tinha sido o centro de outro artigo que Lula publicou em um pool de jornais internacionais em 10 de julho, intitulado justamente Não há alternativas ao multilateralismo. Aí, ele afirma que 2025 “pode entrar para a história como o ano em que a ordem internacional construída a partir de 1945 desmoronou. As rachaduras já estavam visíveis (…). A lei do mais forte também ameaça o sistema multilateral de comércio. Tarifaços desorganizam cadeias de valor e lançam a economia mundial em uma espiral de preços altos e estagnação. A Organização Mundial do Comércio foi esvaziada e ninguém se recorda da Rodada de Desenvolvimento de Doha. O colapso financeiro de 2008 evidenciou o fracasso da globalização neoliberal, mas o mundo permaneceu preso ao receituário da austeridade (…). Os ataques às instituições internacionais ignoram os benefícios concretos trazidos pelo sistema multilateral à vida das pessoas (...). 

“Em tempos de crescente polarização, expressões como “desglobalização” se tornaram corriqueiras. Mas é impossível “desplanetizar” nossa vida em comum. Não existem muros altos o bastante para manter ilhas de paz e prosperidade cercadas de violência e miséria (...). Se as organizações internacionais parecem ineficazes, é porque sua estrutura não reflete a atualidade. Ações unilaterais e excludentes são agravadas pelo vácuo de liderança coletiva. A solução para a crise do multilateralismo não é abandoná-lo, mas refundá-lo sob bases mais justas e inclusivas. É este entendimento que o Brasil (...) mostrou na presidência no G20, no ano passado, e segue mostrando nas presidências do BRICS e da COP30, neste ano: o de que é possível encontrar convergências mesmo em cenários adversos. É urgente insistir na diplomacia e refundar as estruturas de um verdadeiro multilateralismo (...). Apenas assim deixaremos de assistir, passivos, ao aumento da desigualdade, à insensatez das guerras e à própria destruição de nosso planeta” (veja aqui a declaração de Lula na integra).

Sabemos que esse artigo expressa as convicções de Lula. Ele tem se batido incansavelmente pela ratificação do Tratado de Livre-Comércio União Europeia-Mercosul, que reforça a condição primário-exportadora da economia brasileira. Também tem defendido ferreamente a exploração de petróleo na Foz do Amazonas e parece contente com a meta de que o Brasil se torne, até o final dessa década, o quarto maior exportador de petróleo do mundo. É possível que Lula, oriundo do sindicalismo das montadoras do auge do desenvolvimentismo, não veja contradição entre defender picanha e carro para todos e exportar soja e minério de ferro para a China, de um lado, e defender desenvolvimento social e meio-ambiente, de outro. Ela, contudo, existe para qualquer analista objetivo.

Mas temos agora Trump procurando construir uma política global de contenção da China, de longe o maior parceiro comercial do Brasil e de seus vizinhos sul-americanos. E temos uma grande agressão política de Trump contra o governo brasileiro e as instituições de seu estado, visando livrar Bolsonaro dos crimes que cometeu contra o estado democrático de direito, em julgamento pelo STF. As tarifas de 50% sobre as exportações brasileiras para os EUA mostram que o livre-comércio, que estava estruturado ao redor da hegemonia norte-americana no mercado mundial, naufraga perante a volta do uso arbitrário da força nas relações econômicas internacionais. Trump quer garantir que o Brasil e a América do Sul sejam quintais dos EUA. Mas o Brasil não é um país insignificante no cenário internacional; ele tem uma economia que, se romper com o paradigma neoliberal imposto por Washington nos anos 1990, tem enormes potencialidades alternativas. 

Brasil-China: o vínculo fundamental para o agronegócio

A diplomacia brasileira cultivou, nesse século, uma aproximação cuidadosa com a China. Esse país ultrapassou, em 2009, os EUA como principal parceiro comercial do Brasil. A política dos BRICS atende diretamente aos setores mais vinculados às exportações de matérias primas e commodities agrícolas do Brasil. E, embora Xi Jinping e Vladimir Putin não tenham comparecido à recente Cúpula do Rio de Janeiro, o encontro marcou mais um esforço da diplomacia lulista para construir um percurso fora do controle de Washington - o que provavelmente provocou ainda mais Trump. Em maio de 2025 Lula tinha se reunido pela terceira vez com Xi Jinping, durante o Fórum China-CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Lula estava acompanhado de Petro e Boric, sendo acolhido na Praça Tiananmen com um desfile militar e uma salva de 21 tiros de canhão. Ele foi um dos poucos líderes mundiais a receber um abraço efusivo do normalmente distante Xi. E lembremos que Lula até agora não foi aos humilhantes beija-mãos de Trump em Washington!

A China tem intensificado suas relações econômicas com a América Latina em geral e com o Brasil em particular. A balança comercial brasileira em 2024 foi de exportações de US$ 337 bilhões e importações de US$ 262,5 bilhões (com um superávit de US$ 74,6 bilhões, o segundo maior da série histórica, atrás apenas do registrado em 2023, que foi de US$ 98,9 bilhões). As exportações para a China representaram US$ 94,4 bilhões (contra 40,3 bilhões para os Estados Unidos e 13,7 bilhões para a Argentina). Já as importações brasileiras da China somaram US$ 63.57 (contra 40,5 bilhões para os EUA, 13,73 para a Alemanha e 13,57 para a Argentina). A China importa agora do Brasil 70% da soja que consome, essencialmente em detrimento dos fazendeiros estadunidenses. Entre 2004 e 2024, o saldo da balança comercial entre Brasil e China foi de US$ 315 bilhões. Isso ajudou tanto a acumular boa parte das reservas brasileiras, que somavam US$ 336,2 bilhões em março de 2025, como a pagar o déficit do Brasil com os EUA (um déficit total de US$ 436 bilhões entre 2007 e 2024, sendo US$ 166 bilhões na balança comercial). Trump tem razões para se preocupar com a relação do Brasil com a China.

Os jornais frequentemente apresentam a relação do Brasil com a China como a constituição de um projeto comum, os BRICS, em oposição ao tradicional alinhamento do Brasil com os EUA; especulam também sobre os BRICS ser o caminho para uma desdolarização do comércio internacional. Essa visão tornou-se dominante também na esquerda. Um mundo multilateral com os BRICS contendo o imperialismo estadunidense é o horizonte da imaginação estratégica dos petistas. Dessa forma, pensar hoje o lugar do Brasil no mundo tornou-se inseparável da análise do que representam os BRICS e de seu lugar na nova desordem em que o mundo mergulhou com a chegada de Trump em Washington. De outro lado, prossegue, quase sem contestação, a reprimarização da economia brasileira, que, no final do século passado, era um pólo industrial no mundo!

II - Os BRICS: rede de interesses nacionais e projeção de poder chinesa

Entre 2001 e 2003, no auge da globalização neoliberal, quando a hegemonia da burguesia norte-americana era tal que organizava ao redor de si o conjunto das classes dominantes do planeta, Jim O'Neill e Roopa Purushothaman cunharam o termo BRIC. Referiam-se ao Brasil, à Rússia, Índia e China, países que registravam então elevadas taxas de crescimento. Estes países, até então chamados de emergentes, reuniram-se pela primeira vez em 2006. O fato de não integrarem a Tríade (EUA, UE e Japão) e buscarem reduzir suas vulnerabilidades frente a eles parecia criar interesses comuns; eles passaram a se reunir anualmente para debater a agenda econômica. Em 2011, a África do Sul foi adicionada ao grupo, formando o BRICS.

Desde então, o BRICS, que hoje inclui cinco das dez maiores economias do mundo (China, Índia, Rússia, Brasil e Indonésia - ver tabela abaixo), tem registado um desenvolvimento institucional lento, mas constante: o Novo Banco de Desenvolvimento foi fundado em 2014; seguiram-se esforços de alinhamento estatístico; surgiram planos para um sistema de cabos submarinos; e começou o comércio internacional em moedas nacionais. Nos últimos dois anos, o Egito, os Emirados Árabes Unidos, a Etiópia, o Irã e a Indonésia aderiram como membros de pleno direito. 

No entanto, embora os países BRICS partilhassem interesses comuns na crítica ao sistema de dominação liderado pelos EUA, também faziam parte desse sistema de maneira não conflitiva enquanto a hegemonia estadunidense incorporava as burguesias das demais potências. A Rússia e a China detêm poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. A participação da Rússia transformou o G7, de 1998 a 2014, em G8, até ela ser expulsa do grupo por ocasião da invasão da Criméia. A China foi,  com os EUA, simultaneamente arquiteta da estruturação das cadeias globais de produção e a principal beneficiária da globalização neoliberal após a década de 1980. No início do século, a Índia era uma economia em rápida industrialização, enquanto o Brasil se tornava um grande exportador de matérias-primas. Eram e continuam sendo, em aspectos importantes, países subimperialistas, cujas burguesias exploram também as populações dos países vizinhos.

Assim, os BRICS designavam, no apogeu do neoliberalismo, um local privilegiado para a expansão econômica capitalista global no seu conjunto. Mas, no imaginário de uma certa esquerda que tinha perdido a sua identidade em 1991, o que para o capital financeiro eram os mercados emergentes, passava a simbolizar um lugar de posições anti-ocidentais, anti-atlantistas e “anti-imperialistas” (mesmo tendo outros traços imperialistas). Para esse progressismo que trocou o socialismo pelo nacionalismo, os BRICS parecia representar o potencial do Sul Global - com ecos do terceiro mundismo da Conferência de Bandung (1955), que assentou as bases para o movimento dos países não-alinhados (lançado em 1961) -, misturando desejos de representação de classe populares e afirmação geopolítica nacionalista.

Mas não devemos confundir desejo com realidade. Os BRICS nunca foram nada disso. Fortaleceram-se como uma rede difusa de interesses nacionais pragmáticos, impulsionados por classes capitalistas que vem crescendo mais rapidamente do que as do velho núcleo EUA-Europa-Japão coordenado por Washington. Essa é a razão da enorme hostilidade de Trump para os BRICS.

Evolução dos BRICS

Os BRICS mudaram com a reorganização do mercado mundial e a trajetória dos seus membros nas últimas duas décadas. Todos foram profundamente afetados pela crise de 2008, pela pandemia da Covid-19 e pela crise global que ela desencadeou.

A Rússia, que se reorganizou como país produtor de combustíveis fósseis sob a liderança política autoritária de Putin e buscou sua integração à Europa, enfrentando a oposição dos EUA, rompeu a sua cooperação com o sistema atlantista - em uma grande derrota do projeto perseguido há décadas pela Alemanha. Isto aconteceu inicialmente em 2014, mas de forma abrangente após 2022, com a sua ampla reivindicação territorial sobre a Ucrânia. Enquanto a Europa era reenquadrada sob a tutela dos EUA, a Rússia voltou-se para o comércio com a China e a Índia. 

A Índia tem mantido uma trajetória de crescimento econômico notável - uma média anual de 6% ao ano entre 1951 e 2024 - focado em seu enorme mercado interno e cada vez mais um pólo industrial; é hoje a quarta economia do mundo. Apesar de ter aderido ao neoliberalismo em 1991, o país manteve um forte setor público na economia. A Índia está, desde 2014 sob o governo de Modi, que afirma uma posição autoritária nacionalista hindu e anti-muçulmana, considerando a China - e o Paquistão, seu aliado - como os seus principais inimigos.

O Brasil continuou avançando em sua desindustrialização relativa, deflagrada em 1990, e reorganizou a sua economia como um importante fornecedor mundial de produtos agrícolas e minerais. Celso Furtado tinha diagnosticado esse processo como a interrupção da construção nacional, Chico de Oliveira como a constituição de um metafórico ornitorrinco econômico, um beco sem saída evolucionário, e Eliane Brum chamou esse Brasil de construtor de ruínas. O processo lançado no governo Collor e vertebrado no governo Fernando Henrique Cardoso, continuou avançando nos Lula I e II e no Dilma I. 2013 foi um protesto contra um país que estava rifando seu futuro e desde então o Brasil viveu uma década de estagnação e instabilidade política, com o impeachment do segundo governo de Dilma e os governos Temer e Bolsonaro e a eleição do governo Lula III em 2022.

A decolagem da China

No entanto, a grande mudança ocorreu com os avanços econômicos e as alterações geopolíticas provocadas pela China, cujo capitalismo de estado move-se internamente em uma lógica distinta da neoliberal - embora externamente tenha se transformado no principal baluarte da defesa do neoliberalismo no mercado mundial. Após 2012, Xi Jinping tornou-se o líder incontestado da China e estabeleceu um plano ambicioso para o fortalecimento econômico do país. A “Iniciativa Cinturão e Rota” - a chamada Nova Rota da Seda -, multiplicou a presença da China na Eurásia e no Sul Global, através de projetos de extração e de infra-estruturas, principalmente no setor dos transportes. Estes projetos impulsionaram as exportações e importações chinesas e substituíram iniciativas dos EUA e da Europa.

Dois anos mais tarde, o governo chinês lançou o ambicioso e estrategicamente mais importante projeto “Made in China 2025”. Tratava-se de um programa de políticas industriais destinado a internalizar o desenvolvimento de setores tecnológicos de ponta da revolução digital e a transformar o país numa superpotência industrial nas próximas décadas. O plano identificou dez setores-chave a desenvolver: tecnologias da informação avançadas (incluindo circuitos integrados e inteligência artificial), máquinas de controle numérico computadorizado e robôs, aviões, equipamento e navegação oceânica, equipamento de transporte ferroviário, veículos elétricos, equipamento de produção de energia renovável, equipamento agrícola, novos materiais, produtos biofarmacêuticos e dispositivos médicos.

Tanto a “Nova Rota da Seda” como a iniciativa “Made in China 2025” foram amplamente bem sucedidas e alteraram drasticamente a posição da China na economia mundial. A avaliação do governo chinês é que 85% dos objetivos do “Made in China” foram atingidos. A China deixou de ser a “fábrica do mundo”, ancorada na mão de obra barata, para se tornar a principal superpotência produtiva da economia mundial. Desafia a supremacia econômica e tecnológica dos EUA e das empresas estabelecidas na rede EUA-Europa-Japão e integra as cadeias mais estratégicas de valor globais. As empresas chinesas agora competem ou dominam a maioria dos setores de alta tecnologia do mercado mundial - embora a cadeia de produção dos chips de ponta para aplicações em inteligência artificial ainda esteja altamente concentrada e seja controlada pelos EUA (Nvidia, TSMC em Taiwan e ASML na Holanda). Dados do Instituto Australiano de Política Estratégica, citados por José Eustáquio Alves, mostram que os Estados Unidos lideravam a China em 60 das 64 tecnologias de ponta, como IA e criptografia, entre 2003 e 2007, enquanto a China liderou os Estados Unidos em apenas três. No relatório mais recente, abrangendo 2019 a 2023, as classificações foram invertidas. A China liderou em 57 das 64 tecnologias-chave, e os Estados Unidos mantiveram a liderança em apenas sete (David Autor, Gordon Hanson, NYT, 14 de junho de 2025).

Hoje, a China é a maior economia do mundo e o principal parceiro econômico de quase todos os países da América Latina, África e Ásia.

O gráfico acima reflete a expansão chinesa e, em menor escala, a indiana. Estas mudanças alteraram a natureza dos BRICS, que se tornaram um espaço econômico para a projeção do poder da China, a par com a Organização de Cooperação de Xangai, que coordena as questões de segurança no entorno chinês na Eurásia (e da qual participam também a Índia e a Rússia). A China está profundamente integrada no mercado mundial. A incorporação de novos integrantes nos BRICS em 2022 respondeu principalmente aos interesses estratégicos do país em reforçar os laços com muitos dos seus principais fornecedores de matérias-primas energéticas. Hoje, a situação no gráfico acima seria ainda mais desfavorável ao G7, com a incorporação da Indonésia e dos petroestados e o recente crescimento russo. O acrônimo BRICS reflete agora uma mudança estrutural significativa no mercado mundial, que assombra Washington.

Os EUA rompem com a China

Os EUA procuram, com Trump II e sua lógica neofascista do “America First”, conter a expansão chinesa, ampliar a extração de recursos de outros países e se reindustrializar. Procuram estabelecer um outro patamar de exploração e opressão não só do mundo do trabalho, mas dos capitais de outros países. As tarifas protecionistas estabelecidas por Washington representam o enterro, por parte dos EUA, do processo que eles lançaram em 1980.

A globalização neoliberal e a supremacia estadunidense pós-Reagan se alicerçaram na expansão das finanças, no “privilégio exorbitante” do dólar, na desregulamentação do mercado de trabalho e na concentração crescente de riquezas nas mãos do capital, no crescimento do setor digital e na integração das cadeias globais de produção - principalmente através da parceria EUA-China, mas também através do Nafta e seu sucedâneo. Contudo, neste processo, o centro dinâmico da economia mundial se deslocou do Atlântico Norte para o Pacífico, revelando a perda de dinamismo da economia europeia e, parcialmente, estadunidense. 

Os sinais na reorientação da política externa norte-americana já eram evidentes nos últimos dois anos do governo Obama, em 2015 e 2016. Trump I, Biden e Trump II diagnosticaram que a grande ameaça à hegemonia dos EUA era a ascensão da China e tomaram medidas cada vez mais contundentes para desconectar os EUA do tecido produtivo global trançado em conjunto com a China - inicialmente com pouco sucesso. Mas, ao negarem, a partir do governo Biden, o acesso da China aos chips de ponta, os EUA ampliaram o esgarçamento e tornaram uma certa ruptura inevitável. Provavelmente é também por entenderem que o processo é irreversível que as big techs estadunidenses, o setor de ponta da economia norte-americana, se deslocaram massivamente para Trump nas eleições de 2024 e tem o respaldo incondicional de Washington nos conflitos que criam pelo mundo.

O abandono pelos EUA das regras acordadas na OMC em 1994, a ruptura e as guerras comerciais com a China e agora as tarifas enfraquecem o patamar de integração sistêmica da economia mundial. Mas esse processo tem outros focos de esgarçamento: a decadência europeia e sua aceitação do enquadramento de Washington é acompanhada de múltiplos sintomas mórbidos, dos quais o conflito com a Rússia é o mais evidente; o Japão está estagnado desde os Acordos do Hotel Plaza em 1985; a ocupação russa da Ucrânia e israelense da Palestina são processos cancerígenas que aceleram a decadência do sistema já enfraquecido. Uma desglobalização ao menos parcial do mercado mundial tornou-se inevitável! 

A economia globalizada - controlada não só pelos velhos centros capitalistas através da  associação entre as finanças e as big techs nos EUA, UE e Japão, mas também pelo capital industrial chinês, suas big techs e o governo do Partido Comunista Chinês - é uma máquina perversa de drenagem de recursos das periferias para os centros capitalistas através dos mecanismos de troca desigual. Ela sustenta múltiplas formas neocoloniais por todo o mundo, que Washington busca recrudescer com uma nova “política de canhoneiras”. Porém, é a China o principal motor produtivo da economia mundial e o dínamo que move as economias extrativistas de matérias-primas e exportações agrícolas. A guerra econômica não se dá apenas entre os grandes centros capitalistas, envolvidos em dinâmicas de cooperação e conflito internos, mas envolve outros subimperialismos agressivos como a Rússia, a Índia, a Turquia e a Arábia Saudita. Mesmo Brasil, Indonésia e África do Sul não deixam de explorar seus vizinhos.

Os BRICS são, assim, parte da globalização neoliberal, de fato, sua parcela mais bem sucedida. Contra a reação trumpista a isso, alinham-se o capitalismo de estado chinês, atualmente principal defensor do liberalismo comercial, e setores capitalistas que se sustentam na inércia dos mercados globais, como os da UE, dos BRICS e as burguesias exportadoras de boa parte da periferia.

A situação atual do mercado mundial

Se esmiuçamos os  blocos do gráfico acima, o G7 e os BRICS, vamos encontrar essa realidade muito mais nuançada. A tabela abaixo mostra o PIB das 20 maiores economias do mundo medido pela Paridade de Poder de Compra nos cálculos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial e não pela conversão ao dólar.Ela nos permite visualizar o peso dos vários componentes do capitalismo global. Dela devemos suprimir a Alemanha, França, Itália, Espanha e Polônia, para evitar a contagem dupla da União Europeia.

O mercado mundial está estruturado ao redor de três pólos, a China, os EUA e a UE. Mas não podemos considerar nenhuma das 12 entidades políticas restantes - a exceção, talvez, do Egito - como “pobres”. A Rússia e os países situados no que costumamos pensar como parâmetros do Sul Global, como Índia, Indonésia e o Brasil (apesar de toda sua regressão produtiva), são hoje economias mais ricas e dinâmicas do que velhas potências europeias (à exceção da Alemanha). 

Mas isso não é tudo. Michael Roberts se perguntou, em uma exposição na Conferência da Associação de Economia Heterodoxa, em Londres, em junho de 2025, se “Os países pobres do chamado Sul Global estão “alcançando” os países mais ricos do chamado Norte Global?” Vamos recuperar a síntese de sua posição organizada por Eleutério Prado.

Para responder a essa pergunta, Roberts “apresenta ‘três medidas’ de desenvolvimento relativo: a renda per capita; a produtividade do trabalho; e os índices de ‘desenvolvimento humano’ (aqui omitidos). Em todas as três medidas, o Sul Global não está fechando a lacuna que o separa do mundo desenvolvido, com a possível exceção da China”. Por quê? 

São apresentadas três respostas a essa pergunta. Em primeiro lugar, há a explicação marxista que se vale da teoria do imperialismo: “a) por meio da troca desigual, há transferências substanciais de renda do Sul para o Norte; b) o próprio processo de acumulação de capital produz uma tendência de queda da lucratividade, a qual tende, por sua vez, a frear os investimentos e, assim, os aumentos da produtividade do trabalho”. Há, em segundo lugar, a explicação do Banco Mundial: para os burocratas desse banco “há investimento suficiente, mas falta inovação, assim como infusão de tecnologia”. E, por fim, há a explicação institucionalista mainstream: eis que “faltam, segundo ela, instituições democráticas no Sul Global tal como as que existem no Norte Global. Nessa visão, a democracia surge supostamente como o motor da prosperidade”.

Michael Roberts conclui que a principal explicação para os países do Sul Global não estarem alcançando o Norte Global é a riqueza (valor) está sendo persistentemente transferida do Sul para o Norte. “Segundo os seus estudos, há uma transferência constante de renda do Sul Global para o Norte desenvolvido; e ela monta cerca de 1,0% do PIB dos países não desenvolvidos como um todo; isso acrescenta 1,1% no PIB dos países desenvolvidos”. Além disso, a queda da lucratividade no Sul Global está reduzindo o crescimento da produtividade do trabalho. “A China pode ser a exceção porque o crescimento de seu investimento é menos determinado pela lucratividade do que em qualquer outra grande economia do Sul Global”.

Em síntese, Roberts destaca a persistência da dominação imperialista como principal fator de atraso do Sul Global e apresenta a China como o fator novo. De fato, embora essa não seja a posição de Roberts, na medida que a China eleva a produtividade de sua economia, começa a realizar transferências de valor expressivas.

Mas lembremos que Roberts está analisando as relações econômicas capitalistas e sua dinâmica usual. Porém, para pensarmos alternativas estruturais, a riqueza não pode ser medida apenas em termos dos valores realizados na acumulação capitalista. Temos que resgatar o marco conceitual do desenvolvimento desigual e combinado ou sua contrapartida em Lenin, a ideia dos elos mais fracos na cadeia de dominação imperialista. A  Rússia, a Índia, a Indonésia e o Brasil são países profundamente desiguais, com enormes bolsões de riqueza e de miséria e seu tecido social está deformado pela inserção dependente no mercado mundial, mas não são, como países, para nada pobres. O Brasil é tanto a Faria Lima e Berrini como o Vale do Jequitinhonha e a Baixada Fluminense. 

A China pode reequilibrar as relações econômicas em um sentido multilateral?

Se Trump representa a ruptura com a ordem neoliberal, operando em um marco apocalíptico por chantagens e extorsões, e a Rússia enfrenta o cordão de isolamento das economias europeias, os demais governos têm defendido a “normalidade" das regras neoliberais acordadas no período anterior, que permitem uma certa previsibilidade nos negócios. A defesa da ordem neoliberal pode ser, como afirma Lula em seu artigo, o caminho para relações internacionais mais plurais e diversificadas, uma ordem verdadeiramente multilateral e mais favorável à democracia? Essa é a posição também de grande parte da esquerda progressista, socialdemocrata ou nacionalista, que se tornou neoliberal com a formação das “terceiras vias”. 

O capitalismo de estado chinês tem a particularidade de não ter o seu capital industrial subordinado ao capital financeiro; sua coordenação é política e realizada pelo estado chinês. A China está, com o crescimento do protecionismo comercial, adaptando-se a um mundo mais conflitivo e transferindo parte de suas fábricas para países como o Vietnã e o México. Mas, no geral, alimenta o neoextrativismo e o saque de riquezas naturais na América Latina e na África, por vezes mais do que os velhos imperialismos, que se distanciaram dos processos produtivos. A China é a principal compradora dos produtos primários brasileiros e exporta grande parte dos bens industriais consumidos pelo Brasil. Isso não estimula o desenvolvimento social do país; ao contrário, favorece os setores mais reacionários da sociedade. Tivemos uma polêmica sobre a tributação ou não das “blusinhas da Shein” e o governo Lula adotou uma posição regressiva, em favor da não tributação dos produtos chineses, por considerá-la impopular. Mas isso apenas reforça as tendências desindustrializantes no país!

A ruptura de que necessitamos não é apenas com o imperialismo norte-americano, mas também com o próprio mercado capitalista global e os processos de transferência de valor que ele carrega. A China não é um modelo a seguir, nem uma força libertadora, é um caso único e irrepetível. Hoje ela reforça o neoextrativismo na África, Ásia e América Latina e essa pressão aumentará ainda mais com a desconexão parcial entre os EUA e a China. Ela não é, para nada, aliada das forças populares; é uma aliada do agronegócio e da mineração, as forças mais regressivas da sociedade brasileira.

Mas nossa análise não pode, é  evidente, se resumir ao papel comércial de Beijing e ignorar as injunções geopolíticas. A desconstituição do sistema de comércio montado por Washington não se dará sem que alternativas se estruturem. O ponto crítico nesse caminho seria, segundo muitos analistas, a constituição de outro sistema de pagamentos internacionais, organizado fora do dólar. Isso aceleraria drasticamente o declínio do “império americano”. O papel de Beijing nisso tende a ser, pelo peso da economia chinesa, insubstituível e o Brasil já tem uma experiência exitosa de uma moeda digital com o Pix. Remetemos os leitores aos artigos de Manfred Back e Luiz Gonzaga Belluzzo, Fernando Nogueira da Costa, Armando Garcia em nosso site (e ainda às matérias recentes de Paulo Nogueira Batista). Apesar do otimismo geral dos autores, o governo de Xi Jinping até agora tem sido refratário de caminhar nessa direção, mas pode não ser assim no futuro. Estas são portas pragmáticas que qualquer projeto político crítico deve deixar abertas em um mundo que se tornará cada vez mais convulsionado.

Esse pragmatismo é uma imposição frente ao enorme poder disruptivo de Washington, que está recorrendo a pressões de toda ordem contra os que vê como seus adversários - inclusive o atual governo brasileiro. A política anti-imperialista identificada como anti-estadunidense voltou a adquirir centralidade e não devemos alienar aliados em lutas decisivas, mesmo que eles não sejam parceiros estratégicos.

III - A alternativa desglobalizante

A análise da situação do Brasil é tanto a análise de sua inserção no mercado mundial como de sua estrutura produtiva e de classes interna. Do longo debate que os teóricos da formação nacional emergia como principal conclusão que o Brasil conheceu, entre 1930 e 1990, uma modernização conservadora, que industrializou e urbanizou o país, desenvolveu suas capacidades produtivas e complexificou seu tecido social, mas não eliminou o poder das velhas oligarquias primário-exportadoras; a população urbana é hoje 85% da população total. As oligarquias se aburguesaram, associando-se à burguesia financeira e novos capitais externos para retomarem, depois de 1988, o controle do estado central e promoverem a atual inserção do país na economia mundial como exportador de commodities agrícolas e matérias primas. O PSDB foi o partido que encaminhou esta política desde as finanças globalizadas, promovendo a reprimarização e desindustrialização parcial do país - trajetória que não foi revertida pelo PT, depois de 2002. O colapso do PSDB expressou a mutação desse processo em pura adesão às oligarquias regressivas; os setores desse partido que mantiveram um compromisso com o liberalismo político se aliaram ao PT. Mas a maioria de seus componentes estão hoje no Centrão, parasitando o estado brasileiro e colocando-o a serviço de seus interesses mais particularistas. 

A deriva social-liberal do PT tornou-o, de outra parte, cada vez mais impotente para oferecer uma reação à este curso de desconstrução nacional. O governo Lula III é um governo encurralado pelas alianças que estabeleceu e pela correlação de forças legislativa. E nada fez para alterar essa realidade a partir das ruas. Continua enredado em disputas interoligárquicas que bloqueiam toda iniciativa progressista, como mostra a recente votação do PL da Devastação com o concurso de setores petistas. Cúmulo da contradição, Lula segue batalhando pela formalização do Acordo de Livre-Comércio União Europeia-Mercosul, enquanto o ogronegócio confirma todas as acusações europeias de que o Brasil não é ambientalmente confiável e não consegue firmar compromissos de Estado! Essa é, de qualquer forma, uma acusação de má-fé, pelo menos da parte do agronegócio europeu, de um lado, e se o Acordo fosse ratificado ele aprofundaria a desindustrialização do Brasil.

A pergunta agora colocada é se a agressão de Trump às instituições da Nova República pode galvanizar uma reação e uma mudança de rota da parte de Lula e seus aliados mais próximos, isto é, do campo progressista. Afinal o anti-imperialismo constituiu historicamente o progressismo brasileiro tradicional (trabalhismo, PCB…) e permitiu, no passado, um diálogo com setores amplos da sociedade.

O novo cenário internacional de incertezas tem uma dimensão imediata de desconstrução e grandes ameaças. A desglobalização ao menos parcial da economia internacional conduzida por Trump se tornou o marco dentro do qual a economia brasileira e mundial se moverá no próximo período. Mas essa crise da globalização neoliberal também pode ser vista, sem ingenuidade, como uma abertura de espaço para alternativas. Vale a pena revisitar a argumentação de Chico de Oliveira no seu “O ornitorrinco”. Racionalizando o que ocorreu em 1929/30, ela afirma que uma mudança em um país como o Brasil só pode se dar na combinação de uma grande crise internacional (e é isso que parece estar se construindo no cenário global) com uma força política interna com peso suficiente para aproveitar o espaço que pode se abrir. 

Essa força é hoje muito pequena, mas terá que ser construída. Talvez, a curto prazo, o ruralismo brasileiro reforce seus vínculos com a economia chinesa, o que contribuirá para aprofundar o curso ambiental suicida para o qual ele conduz nossa sociedade. Mas uma radicalização anti-imperialista pode abrir espaço, no Brasil (e em outros países da região), para questionar o atual modelo econômico. Lula pode ser forçado, por motivos eleitorais, a percorrer um caminho menos dócil às classes dominantes. 

A fórmula de 1930 não é algébrica. Chico de Oliveira complexificava o problema, distinguindo o desenvolvimento das forças produtivas da segunda revolução industrial, que forma internalizadas entre os anos 1940 e 1970, daqueles da revolução digital, muito mais difíceis de serem apropriadas e replicadas. Essas questões se colocam como desafios imediatos nas respostas frente à elevação das tarifas por Washington. O governo Lula certamente não pode deixar a Embraer colapsar. Mas ele conseguirá não dar um tiro no pé, por exemplo, apoiando pecuaristas e plantadores de soja, os setores mais regressivos da sociedade brasileira? Qual política de reciprocidade deve ser adotada: contra as mercadorias que são a base de apoio popular de Trump nos EUA, como estão propondo alguns, ou contra os setores das big techs e farmacêuticas, com políticas industriais para o fortalecimento brasileiro nessas áreas? O governo ou o judiciário vão se  sobrepor ao nosso legislativo apodrecido e garantir uma regulação das redes sociais e inteligências artificiais?

Entramos aqui no terreno das grandes questões estratégicas. O problema não é fundamentalmente comercial, é social e político-cultural, de modelo de sociedade. Só para tomarmos uma questão candente, sem o enquadramento político das big techs não existe avanço significativo na defesa da democracia política. As big techs e suas redes sociais vem funcionando cada vez mais como os aparelhos ideológicos supranacionais do fascismo contemporâneo, modulando expectativas e comportamentos, constituindo subjetividades frágeis e narcisistas, que rejeitam a constituição de laços sociais significativos e demandam uma mobilização afetiva permanente, muito suscetível à apelos autoritários. Isso quando não atuam através da manipulação direta pró-fascismo, com o X de Elon Musk. Com o avanço na dataficação e os desenvolvimentos no campo das inteligências artificiais, o poder destes aparelhos ideológicos escalam; não há, em uma estratégia racional, como o conflito do governo Trump com o governo Lula não se desdobrar no problema do enquadramento da ação das big techs e seus dispositivos de mediação social. Mas para onde Lula quer dirigir a sociedade brasileira?

Resgatar a desglobalização do altermundialismo

O desafio é, em qualquer cenário, projetar forças políticas que possam aproveitar a competição entre vários pólos capitalistas e outras expressões da “grande crise internacional” que se desenha para discutir não só o modelo capitalista atual, mas o próprio capitalismo. Um mundo que caminha para uma crise climática catastrófica exige uma política ecossocialista só possível com desglobalização ao menos parcial, ou seja, com distintos patamares de ruptura com a lógica do mercado global regido pela lei do valor tal como aplicada pelo capital financeiro e pelas grandes corporações.

Isto, que pode parecer impossível hoje em dia, tornar-se-á uma questão urgente quando se  colocar na mesa o colapso ecológico e a migração de populações que daí decorre. Devemos ter a certeza estratégica de que, entre a brutalidade das políticas internacionais de Trump e a drenagem de recursos da periferia pelas trocas desiguais do livre-comércio, as aspirações dos povos à libertação passa pela soberania econômica e por eliminar instituições como a OMC.

Uma parte da esquerda nunca defendeu a globalização econômica neoliberal em nenhuma de suas versões. Como lembrou Benoit Breville em um artigo no Le Monde diplomatique de maio (Outro protecionismo ainda é possível), “a esquerda, não faz tempo, se orgulhava de defender sua própria versão do protecionismo”. Sempre sustentamos a necessidade de um altermundialismo, uma outra globalização política e cultural, mas combatemos a livre circulação de capitais e mercadorias. Combatemos todos os acordos de livre-comércio negociados pelos capitais e suas instituições, que colocam os mercados fora do controle da sociedade. Apoiamos e animamos os inúmeros movimentos que, desde os anos 1990 (Zapatismo, Reclaim the Streets, greves de 1995…), se opuseram ao avanço do neoliberalismo e levaram, após a inviabilização da reunião da OMC, de Seattle, em 1999 (a grande conquista da aliança dos “teamsters com as tartarugas”, dos sindicatos com os ambientalistas), aos grandes protestos contra a OMC, o BM, o FMI e o Fórum Econômico Mundial. E uma década depois apoiamos os movimentos dos indignados que ocuparam as praças pelo mundo afora - pelos 99%, defendemos os que ocupavam Wall Street contra os 1%. E combatemos, no limite das nossas forças, o Acordo de Livre-Comércio União Europeia-Mercosul.

No auge do movimento altermundialista e dos Fóruns Sociais Mundiais, Walden Bello lançou um pequeno livro intitulado “Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial" (publicado no Brasil pela Editora Vozes em 2003). Ele lembrava que os quadros comerciais anteriores à OMC eram muito mais democráticos do que os posteriores a 1994. O Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT), criado em 1947, e mais tarde, em 1964, o quadro estabelecido pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), ofereciam maior flexibilidade e múltiplas formas de as nações se relacionarem com o mercado global, como historicamente tinha sustentado a CEPAL. Estas alternativas eram ainda reforçadas pelas estratégias de desconexão econômica das experiências revolucionárias do século XX, que sempre defenderam o monopólio estatal do comércio exterior, e que Samir Amin teorizava no seu A desconexão. Hoje precisamos recuperar essas experiências em vez de nos agarrarmos ao sistema monolítico da OMC, atacado por Trump.

Vetores de transição

O outro mundo possível do altermundialismo era um projeto alternativo de globalização política em um planeta cada vez mais conectado com uma economia mundial sob controle democrático. Supunha a taxação das transações financeiras internacionais (a taxa Tobin). Agora, a desglobalização é uma tendência caótica em curso, de uma parte, mas poderá (e deverá) ser, de outra, uma escolha política por desconexões seletivas. E será também uma necessidade, uma imposição objetiva dos anos que virão em função do colapso ecológico para o qual caminhamos, que iluminará a irracionalidade da teia de dependência dos países do comércio exterior em questões tão básicas como a produção de alimentos.

Desde uma perspectiva ambiental, a maior parte da produção econômica e do comércio internacional, bem como a  atuação das finanças globais, são profundamente improdutivas. A produção de combustíveis fósseis e do sistema alimentar focado na proteína animal e em alimentos ultraprocessados que adoecem a humanidade se tornaram forças destrutivas e não há nenhum horizonte para sua redução no capitalismo - ao lado dos plásticos e das armas, do transporte privado e da sociedade do automóvel, os bens de consumo regidos pela lógica da descartabilidade e obsolescência planejada, dos serviços que reproduzem esta estrutura etc… A maior parte do que hoje flui pelas artérias do comércio mundial não pode ser integrado em uma economia circular e contribui para a destruição da biosfera e, em decorrência, da vida humana. 

O comércio internacional que não passar pelos crivos ambientais e sociais deve ser suprimido, por mais “natural” que pareça depois de quase meio século de globalização neoliberal. Não trabalhamos, pois, pela reprodução desse sistema, mas por sua ruptura, sua desagregação; apostamos na incerteza! As cadeias globais de produção e a divisão internacional do trabalho só beneficiam as corporações globais e o que é certo adiante é o desastre. A maioria dos países precisa, para enfrentar as tempestades que virão e proteger seus povos, desglobalizar parcialmente suas economias, afirmar sua autonomia e resiliência econômicas em função da soberania alimentar e agroecologia, constituição de parques industriais que respondam às demandas do consumo de massas, etc…), repensar e reduzir suas escalas de produção, evitar a autarquia integrando suas economias com a de seus vizinhos e encurtando suas cadeias econômicas, desmontar suas zonas de sacrifício e organizar as suas atividades produtivas e serviços com base nos princípios da cooperação e da subsidiariedade - produzir local, nacional e regionalmente o que precisam e importar apenas o que não podem produzir. 

Há, evidentemente, limites à isso frente a produtos mais sofisticados, cuja cadeia produtiva está muito concentrada e mesmo um país da dimensão do Brasil pode não ter condições de produzi-los de forma soberana, como os chips de ponta ou aviões (lembremos que a Embraer é uma montadora…). Esse é o ponto onde a regionalização pode constituir escala (o “mercado consumidor” brasileiro praticamente dobra quando raciocinamos em escala da América do Sul) e garantir praticamente todos os insumos fundamentais para uma dinâmica econômica auto-suficiente. E uma economia soberana pode aproveitar as rivalidades interimperialistas para permitir, via os BRICS, acesso às essas tecnologias. Necessitamos também produzir tecnologias alternativas: as tecnologias atuais foram desenvolvidas em simbiose com as necessidades do sistema corporativo globalizado. O caso chinês mostra que os ecossistemas tecnológicos integrando estado, universidade, sociedade civil e empresas não estão obsoletos e podem gerar a tecnodiversidade que precisamos.

Mas o fundamental é, nesse momento, difundir o questionamento da globalização estabelecida, que coloca o Brasil e os demais países do nosso continente à mercê das chantagens de Trump. Essa globalização é irracional, uma maquinaria demasiado complexa para funcionar sob estresse permanente! A soberania e o máximo de autossuficiência possível são as bases que permitem lidar racionalmente com os problemas que vão escalar daqui para frente! A ordem multipolar sonhada por Lula não tem como existir no mundo das big techs alavancando as inteligências artificiais como ferramentas de poder e do colapso ambiental galopante (que Trump e os neofascismos garantem que ocorrerá, ao menos em boa parte do planeta)!

O capitalismo precisa se expandir ou morrer. Ele externaliza seus impactos sociais e ambientais, socializando para o conjunto da sociedade impactos cada vez maiores, e produzindo uma crise inédita da civilização. Não pode haver crescimento infinito em um mundo finito. O capitalismo já está funcionando com os grandes monopólios fagocitando todo o tecido de pequenas empresas sem que, a diferença do passado, novas atividades e empregos sejam gerados para compensar as perdas. Não há, pois, futuro racional para o capitalismo. Esse não é um problema para as décadas vindouras, e sim para os dias que correm. As classes dominantes dos EUA, dos países petroleiros e do Brasil (que aprovou o “marco legal do (des)licenciamento ambiental”), mostram que já vivemos tempos de colapso ambiental! Elites parasitárias consumirão até o fim a biosfera do planeta, sonhando que depois poderão trocar a Terra por Marte. O consumismo e o neoextrativismo estão subordinados a uma estrutura de poder econômico, político, ideológico e militar a serviço de 1% da população. É a natureza antidemocrática do mercado sem freios políticos que produz as legiões de derrotados a que o fascismo se dirige, apresentando-se oportunistamente como contestatório.

Uma esquerda antissistêmica precisa apresentar uma alternativa ao capitalismo do fim do mundo. A economia de mercado é miope e imediatista; pensa a economia pelos preços e não a partir dos fluxos de matéria, energia e trabalho; pensa a produtividade e a redução de custos apenas pela lógica de curto prazo de cada unidade de produção, de cada empresa. Não inclui em seu sistema de preços os custos dos danos ou impactos ambientais ou sociais da produção ou do consumo dos bens e serviços, considerados “externalidades”. Os governos, que deveriam equacionar esses problemas na economia, apenas socializam esses custos com toda a sociedade. A ordem neoliberal é uma plutocracia cada vez mais irracional e o fato de estar sob o ataque de neofascistas antiglobalistas não altera isso; nesses dois projetos, assim como no capitalismo de estado chinês, a desmedida do valor volta a exigir mais e mais intervenção política, hoje canalizada somente para apoiar os “agentes de mercado”. 

Um sistema econômico sustentável do ponto de vista social e ambiental, ou seja, alguma forma de planificação ecossocialista, pode atualmente utilizar ferramentas digitais para orientar as decisões sobre a produção e a distribuição que não existiam nas experiências socialistas do passado. O núcleo da crítica de Hayek e Mises ao socialismo e à intervenção do estado na economia, era de que o mercado constituiria, através da precificação dos bens e demandas da sociedade, o mecanismo mais eficiente possível  de alocação de recursos, superior a qualquer forma de intervenção política externa às relações mercantis. Contudo, com as tecnologias digitais já disponíveis (e colocadas a serviço das corporações), podemos hoje sustentar que o mercado é um mecanismo de precificação cada vez mais obsoleto se comparado com uma possível planificação cibernética colocada a serviço de um poder político democrático.

Praticamente todas as questões de sociedade são hoje questões sócio-ambientais, que precisam ser articulas com os desafios da tecnodiversidade digital. Elas podem e devem ser encadeadas em um programa de lutas socioambientais e de transição ecossocialista que de ossatura a uma força social capaz de encadeá-las em um movimento anticapitalista. 

Nossa tarefa é criar as condições políticas, culturais e sociais para que esse projeto seja debatido e ganhe credibilidade frente às tendências de colapso da civilização capitalista. Isso demanda articular a forma como um grande número de lutas concretas serão respondidas, do clima ao sistema alimentar, do transporte à organização das cidades, do consumo ao lazer, da educação à saúde, dos métodos industriais ao comércio exterior, dos modos de vida aos direitos da natureza e dos animais. Temos condições de explicar porque é melhor vivermos sem combustíveis fósseis, plásticos e uma dieta carnívora, em uma sociedade democrática em relação mais harmônica e saudável com a natureza, em que haja empregos dignos para todos e o propósito da vida seja o bem viver e não trabalhar até a exaustão para sobreviver! 

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