A esquerda que não teme dizer seu nome – um novo livro
Introdução do autor à nova edição, recém-lançada, do livro do mesmo nome, revista e ampliada.
Vladimir Safatle, A terra é redonda, 13 de setembro de 2025
Em 2017, o governo de Michel Temer conseguiu aprovar uma reforma trabalhista que representou a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira. Direitos consolidados foram apagados do mapa. Mulheres grávidas podiam agora ser obrigadas a trabalhar em lugares insalubres, as jornadas de trabalho podiam passar a 12 horas por dia. Regras de demissão, descanso e férias foram radicalmente flexibilizadas.
Tornava-se possível negociações entre sindicatos e empresas tendo em vista condições de trabalho diferentes das previstas em lei, mesmo que em patamar pior para os trabalhadores e trabalhadoras. Caso esses mesmos trabalhadores e trabalhadoras perdessem ações contra seus empregadores, eles e elas deveriam agora pagar os custos do processo e os honorários advocatícios da parte contrária. Até o momento em que esse livro saiu da gráfica, em 2025, todas essas reformas continuavam intocadas.
Essas eram apenas algumas das “inovações” que destinavam levar a classe trabalhadora brasileira novamente a condições de trabalho dignas do século XIX. O que chamamos de “capital” não é uma estrutura, não é dinheiro estocado, ele é uma classe que se serve de todas suas forças para preservar seus interesses e margens de ganhos.
Uma classe impulsionada por duas ilusões fundamentais: a possibilidade de produção infinita de valor a partir da exploração da terra e do trabalho. “Infinita” significa aqui que o único limite para o aprofundamento da exploração do trabalho é aquele que as próprias trabalhadoras e trabalhadores conseguirem impor. Se eles não forem capazes de impor tais limites, trabalharemos até mesmo depois de nossa morte.
Mas o fato realmente novo nesse caso não era a sanha do empresariado em espoliar o trabalho até a última gota. Na verdade, a novidade era outra. A novidade era o absoluto silêncio. Nenhuma manifestação significativa de rua, nenhuma greve, nenhum piquete ou bloqueio. Poderia se imaginar que estávamos diante de dias tranquilamente normais, a não ser por um detalhe. Quem entrasse nas casas das famílias progressistas brasileiras as encontraria indignadas, emocionalmente envolvidas, entre choro e júbilo, com os nervos à flor da pele…, mas pelo resultado do BBB.
Sim, naquela semana em que a reforma trabalhista tinha sido aprovada em silêncio, assistíamos a final do grande Big Brother Brasil no qual uma pessoa que hoje chamaríamos de “representativa”, com vários atributos e predicados que são marcadores de exclusão social, ganhava o programa. Era possível ouvir os gritos de felicidade vindos dos apartamentos progressistas. Aos que estranhavam tudo aquilo, não faltou quem lembrasse que se tratava de ocupar espaços de visibilidade, mudar suas configurações como capítulo maior de um plano de abertura revolucionária à diversidade.
Pois, afinal, aquilo era uma parte fundamental do que deveríamos entender agora por “lutas políticas”. Que a pessoa certa ganhasse o BBB era uma enorme vitória política a ser celebrada. Não pensar assim era certamente ser representante de um preconceito elitista tacanho e ranzinza, incapaz de compreender as verdadeiras aspirações populares. Alguém fadado, por isso, a ser incapaz de se comunicar com o povo.
Problema grave porque, afinal, como dizem atualmente, nosso problema é, na verdade, um problema de “comunicação”: não nos “comunicamos bem”, quer dizer, de forma jovial, sexy, rápida, descomplicada, hackeando memes, viralizando tiradas espertas, mesmo que tudo o que nos restou a fazer nesses últimos tempos tenha sido exatamente isso.
Bem, eu sugiro que toda reflexão sobre o que está a ocorrer com a esquerda atualmente parta de situações como essa. Algo aconteceu conosco, e deveríamos começar daí, a saber, olhando para o espelho e perguntando: “o que aconteceu conosco?”. Há uma desorientação que nos acomete nos últimos tempos e que acelerou desde que esse livro foi lançado pela primeira vez, em 2012.
Pois talvez fosse mais honesto partir da impotência do campo progressista e de suas lógicas compensatórias. Partir dessa nossa capacidade única de inventar vitórias quando estamos diante de derrotas que exigiriam auto-crítica profunda e reflexão implacável. Como se nossa incapacidade concreta em criar transformações estruturais nos regimes de reprodução material da vida fosse acompanhada pela ilusão de que estamos capitaneando uma enorme revolução social ao lutar pela integração mais bem-sucedida de parcelas de deserdados à Rede Globo.
Tudo o que se pode dizer é que, nesse caso, as transformações serão mínimas e, a despeito de quem ganhou o BBB, as mulheres grávidas vão continuar a trabalhar em espaços insalubres. Se estávamos realmente preocupados com elas, teria sido melhor desligar a televisão e ter bloqueado as ruas.
Mas essa não era a imagem completa. Ainda tinha algo a mais. Algo que vinha como um pesadelo a ganhar cada vez mais força, tomando as periferias das grandes cidades brasileiras, as massas de precarizados, de uberizados, contra nós. Um pesadelo que não passaria rápido, a saber, a ascensão irrefreável e constante de uma extrema-direita popular. Não a direita das oligarquias tradicionais e das famílias com sobrenome de 15 mandatos de deputado, mas uma extrema-direita de gente da periferia, de gente negra e evangélica, de figuras que realmente não faziam parte da casta de políticos profissionais e de tecnocratas do poder.
E então começamos a circular nossos estudos e análises que explicavam como estávamos sendo atacados por uma onda de regressão social, por hordas de ressentidos contra nossas políticas públicas de ascensão dos mais vulneráveis, por ignorantes capazes de acreditar que a terra é plana, por sádicos tomados pelos aspectos mais destrutivos da pulsão de morte.
Em todos esses casos, sempre era questão de mobilizar uma explicação deficitária do fenômeno de ascensão da extrema direita. Ou seja, o eleitor da extrema-direita só poderia ter alguma limitação primária, algum déficit, seja ele um déficit moral (discurso do ódio), psicológico (ressentimento, frustração) ou cognitivo (fake news, obscurantismo, negacionismo).
Bem, tudo o que posso dizer é que essa era uma boa maneira de defender nosso narcisismo combalido, de afirmar nossa superioridade moral e intelectual contra quem nós combatemos. Por exemplo, Friedrich Nietzsche havia usado o ressentimento como diagnóstico do saldo do processo civilizatório. Esse era um diagnóstico ligado a auto-inspecção de nossos próprios sentimentos morais, ao questionamento de nós mesmos.
Podemos sempre ser potencialmente ressentidos, lembrava Friedrich Nietzsche, e saber isso, desconfiar do desejo de poder por trás de nossa própria moralidade, era um exercício fundamental para nossa emancipação. Mas nós havíamos andando em um caminho diferente de Friedrich Nietzsche, nós havíamos transformado a crítica do ressentimento não em um exercício de auto-inspecção, mas em uma arma apontada contra o outro, na prova máxima de que sua indignação era injusta, que era apenas uma reação de privilegiados contra as novas configurações da redistribuição social. Mesmo que esse “privilegiado” fosse um motorista de uber, um entregador de Ifood ou um morador da Vila Matilde.
Tudo isso mostrava uma incapacidade crônica da esquerda em levar a sério a hipótese de que largos espectros de seus antigos eleitores e eleitoras estavam votando na extrema-direita simplesmente por se sentirem traídos, por não se verem mais como objetos das preocupações reais das suas políticas e das suas práticas no poder. Ou seja, por entender que prometíamos muito e entregávamos cada vez menos, por entender que eles e elas não se sentiam representados por quem apresentávamos como dotado de grande representatividade.
Só que quanto menos entregávamos, mais dizíamos que não poderíamos ser cobrados, criticados, porque, afinal, estávamos em meio a uma batalha de vida e morte contra o pior de todos os inimigos, a saber, o fascismo. E quanto mais o fascismo avançava, mais dizíamos que ser politicamente maduro e racional era lutar pela construção de frentes cada vez mais amplas contra a “barbárie”.
Mesmo que essas frentes amplas fossem apenas uma forma de paralisia política, de nos fazer recuar cada vez mais de nosso horizonte de transformações, de nossa capacidade de enunciação, até nossas políticas sequer aventarem, por exemplo, suspender as reformas trabalhistas citadas acima. Por isso, quanto maior a frente ampla, maior sua ineficácia em impedir a emergência de figuras da extrema direita capazes de mobilizar o desejo anti-institucional, a raiva social de se sentir deserdado e esquecido. Quanto mais íamos ao ‘centro’, mais a extrema-direita se fortalecia.
Por que dizer que a esquerda morreu
A meu ver, em um horizonte como esse, a coisa mais honesta a fazer era começar por afirmar que a esquerda morreu. Afirmar não para abandonar o campo político, voltar para casa, cultivar seu jardim e esperar cinicamente o apocalipse final, mas exatamente para lutar contra o cinismo, contra o devir cínico de nós mesmos. Dizer que a esquerda morreu era uma maneira de dizer: “não é nem dessa forma nem por isso que lutamos, não conte conosco para justificar tal capitulação”.
Na vida, morre-se várias vezes e, em certas situações, reconhecer-se morto é a única maneira de preservar a vida. Pois tal reconhecimento é maneira de preservar o desejo de ser outro. Um dia Gilles Deleuze disse: “É melhor a morte do que a saúde que nos propõe”. Digamos que a ideia era mais ou menos essa. Há de se preferir a morte a essa saúde, a essa “responsabilidade”, a essa “governabilidade”.
Bem, foi isso que fiz nos últimos anos, mesmo que algumas das reações-padrão eram variações do eterno: “mais uma bobagem desses intelectuais de gabinete que falam sobre os interesses dos pobres, mas não sabem nem chegar em M’Boi Mirim”. Como se vê, o anti-intelectualismo está longe de ser um monopólio da direita e, bem, eu sei onde fica M’Boi Mirim, já fui lá discutir e escutar seus moradores. Como sabemos, é sempre mais fácil apelar para as eternas caricaturas dos intelectuais que nada conheceriam do mundo, sobretudo quando eles não estão à sua disposição para assinar mais algum manifesto de apoio à sua candidatura ou gravar um vídeo para o instagram.
De toda forma, seria o caso de esclarecer que afirmar que a esquerda morreu era uma maneira de dizer que não conseguíamos mais realizar nosso papel, que nosso discurso e nossas práticas estavam se transformando em algo, em larga medida, impotentes e rechaçados pelas classes populares. Não, isso não era um problema de “má comunicação”. Era algo pior. Era um problema de não ter o que oferecer, salvo a promessa de uma gestão mais “humana” das crises terminais do capitalismo. Algo completamente sem sentido, já que não é possível gerenciar tais crises dentro do sistema que as gerou.
Façamos uma rápida análise macrohistórica para melhor compreender onde exatamente estamos. A última década deixou claro como vivemos no interior de uma conjunção inédita de crises: crise ecológica, demográfica, social, econômica, política, psíquica e epistêmica. A isso podemos chamar de “crises conexas” pois elas estão conectadas e se retroalimentando. A crise ecológica produz novas pressões demográficas, assim como produz, por exemplo, novas formas de sofrimento psíquico e sentimento de vulnerabilidade e impotência social. A crise econômica produz instabilidades políticas, e assim vai até uma situação de completa angústia social.
Essas crises não apareceram de surpresa. Desde a década de setenta do século passado, o capitalismo se constituiu como um sistema de baixo crescimento, endividamento crônico e aumento da concentração de renda. Todas as tentativas de superar tal crise acabaram, em mais ou menos uma década, por produzir novas crises. Por um tempo, usamos a inflação como forma de compensar perdas, depois veio o endividamento público e depois o crescimento do crédito privado em cima de garantias inexistentes.[i]
Nesse processo, as classes mais desfavorecidas sempre pagaram o preço das crises, seus ganhos diminuíram, suas garantias foram para o espaço, isso enquanto as classes dos detentores de capital conseguiram cada vez mais estabilizar sua opulência.
Esse processo levou a erosão dos acordos políticos que sustentavam a democracia liberal-parlamentar, pois as classes populares se viram cada vez mais empobrecidas e precarizadas, com cada vez menos razões para esperar algo dos atores políticos hegemônicos. Ela levou também a aceleração da crise ecológica, já que o modelo econômico responsável pela destruição de biomas, o agronegócio com seu modelo exportador, a exploração de combustíveis fósseis para financiar o “crescimento”, continuaram submetida aos mesmos interesses privados de acumulação.
Ela levou, enfim, a uma profunda crise psíquica, pois sujeitos se viram submetidos a exigências de performance, rentabilidade e sobrevivência em condições de profundo isolamento e decomposição do corpo social. Como empreendedores isolados, eles não podiam mais contar com instituições e redes de solidariedade que produziam algum nível de defesa coletiva. Sindicatos, associações, comunidades de defesa: nada disso tinha força mais. Sujeitados ao discurso do aumento das reponsabilidades individuais, do “não há almoço grátis”, eles se viram psiquicamente implodindo diante de um mundo sem garantias, de riscos sentidos apenas pelos sem herança e sem capital, ou seja, apenas por você.
No entanto, essas crises acabaram, em larga medida, por se estabilizarem, tornando-se o regime normal de governo, como a longa crise política das instituições da democracia liberal nos últimos vinte anos ou a longa crise econômica, presente no horizonte de justificação das políticas econômicas de nossos países e instituições desde 2008.
Essas crises não impediram a preservação dos fundamentos da gestão econômica neoliberal, nem o aprofundamento de sua lógica de concentração e de silenciamento de lutas sociais. Antes, podemos mesmo dizer que elas forneceram o solo ideal para a realização de tais processos. Porque diante de uma crise toda medida “excepcional” vale, toda restrição e violência vale. Afinal, todos devem aceitar os pretensos sacrifícios necessário. Foi dessa forma que tal dinâmica de normalização das crises produziu uma mutação de nossas formas de governo. Cada vez mais tivemos que conviver com medidas excepcionais, violentas e autoritárias no interior de processos normais de gestão social.
Diante de uma situação dessa natureza algumas possibilidades se colocariam para nós. Uma delas é a transformação estrutural das condições que geraram tal sistema de crises conexas. Isso exigiria não nos vermos mais como gestores das crises geradas pelo sistema capitalista, mas como “força ofensiva” contra O capital, como disse uma vez Marx. Mas é exatamente isso que a constelação de progressismos que conhecemos hoje tirou de circulação. Sem isso, ela fica sem uma resposta convincente para as crises nas quais nos encontramos. A única resposta mais ou menos coerente, por mais catastrófica que seja, vem da extrema-direita, e toda análise honesta da situação atual deveria partir exatamente desse ponto.
Ser uma força ofensiva contra o Capital significaria lutar abertamente pelo seu fim, criar processos que generalizam a auto-gestão da classe trabalhadora, a soberania popular, inclusive no que diz respeito a decisões econômicas; significaria permitir à sociedade liberar-se do trabalho e utilizar o desenvolvimento tecnológico como instrumento para a criação do tempo livre, disponível para o enriquecimento da sensibilidade dos sujeitos.
Significaria também liberar a cultura de sua sujeição ao Capital, a sua uniformidade, a seu ritmo, a sua lógica de valorização, pois é daí que vem a formação, a pedagogia para viver sob seu império. Tudo isso desapareceu porque a esquerda não percebeu o horizonte de crise que nos aguardava. Por um momento, parecia que a mobilização de lutas contra-hegemônicas que se dão no interior do campo já estabelecido e codificado das hegemonias, de “políticas públicas” pontuais, misturada a um “choque de modernização” vindo da crença de que, depois da queda do Muro de Berlin, a luta ideológica tinha sido deixada para trás, era a nova ordem.
As décadas seguintes demonstraram como, por mais que houvesse manifestações contínuas de descontentamento e insurreições populares (da Primavera Árabe ao Estallido chileno, passando por 2013 no Brasil, pela Colômbia, Turquia, Gilets Jaunes, na frança, entre tantas outras) mostrando a profunda frustração social com nosso horizonte sócio-econômico, os setores hegemônicos da esquerda continuavam com a mesma impotência, enquanto os outros setores não-hegemônicos se viam sem saber mais como operar em escala de massas. E para garantir tal impotência, os níveis de violência direta do Estado e de seus agentes aumentariam exponencialmente. Pois é em meio a gás lacrimogênio e balas (nem sempre de borracha) que o capitalismo se preserva das crises.
O realismo da extrema direita
É nesse cenário que a alternativa da extrema direita ganhou força. Pois outra possibilidade diante das crises que marcam nosso tempo é aquilo que poderíamos chamar de generalização do paradigma da guerra como forma paradoxal de estabilização. Essa segunda opção parte de certo realismo de quem diz que essa conversa sobre modificar as bases de reprodução material da sociedade é coisa de Centro Acadêmico. As crises conexas não impulsionarão uma superação ou mesmo uma transformação estrutural do capitalismo. Até porque, do ponto de vista interno ao capitalismo, diante de crises dessa natureza, ele não se reforma, ele acelera.
O capitalismo acelera diante de crises porque é um sistema cuja racionalidade está baseada na maximização de interesses individuais, acrescido da ilusão de que tal maximização produziria ao final a riqueza comum. Ou seja, cada um trabalha para si, tentando vencer o outro em uma relação constante de concorrência. Se todo mundo trabalhar para si mesmo, tentando sempre vencer concorrentes, o progresso acontecerá e a riqueza comum será produzida.
Isso é o que costuma se chamar de “mão invisível do mercado”. Mas seria o caso de lembrar que o capitalismo nunca foi concorrencial, essa é só uma das falácias que ele procura naturalizar. O capitalismo sempre foi monopolista, seu livre-comércio sempre foi defendido quando o comerciante mais forte, quando os países de capitalismo mais agressivo, tinham certeza de que conseguiria impor seus interesses aos demais.
Mas gostaria de insistir em outro ponto, a saber, do ponto de vista dos interesses individuais, não há razão alguma para eu não aproveitar crises e intensificar minha extração de lucro, assim como minha constituição de monopólios. Por que eu deveria me preocupar com o estado do meio ambiente em cinquenta anos se em cinquenta anos estarei morto? Utilizar a maximização de interesses individuais como padrão de validade equivale a implodir o tempo social organizando toda racionalidade do processo de produção a partir da maximização dos interesses do presente. E de nada adianta imaginar que tais exigências do presente seriam limitadas pelo “estado do mundo que deixarei aos meus filhos”. Certamente, não será do amor do capitalista por seus filhos e filhas que podemos esperar alguma forma de freio de emergência contra o aprofundamento das crises.
Esse parêntese está aqui para nos lembrar que a extrema direita parte da constatação de que a única solução realmente na ordem do dia é a aceitação do sistema capitalista. Daí vem seu diagnóstico. Ela dirá (bem, ela não dirá dessa forma, na verdade, ela não dirá nada, mas a ideia é essa): “é verdade, não há como gerir mais as crises do sistema capitalista a partir do próprio sistema que a gerou. No entanto, como não há outra alternativa possível, o que resta é salvar uma parte da sociedade e deixar o resto perecer, expulsar o resto de nossas fronteiras, organizar deportações em massa, deixá-los na mais absoluta miséria, submete-los a máxima espoliação através do aumento exponencial da violência policial, da precariedade de suas vidas”.
A possibilidade de fazer parte dessa parte da sociedade a ser salva é o que mobiliza o setor da população que hoje adere a extrema-direita. Seja através da preferência nacional, seja através do discurso do empreendedorismo com o seu “quem trabalhar duro irá se salvar”, seja em outros casos através do discurso religioso dos escolhidos, o que sempre está em questão é a partilha entre quem será salvo e quem será sacrificado.
Por mais brutal que seja, o discurso tem sua coerência, principalmente em um momento no qual a esquerda não acredita realmente que uma mudança de estrutura é possível, já que ela nunca tenta realiza-la quando está no governo. Nosso chamado a solidariedade é, por essa razão, profundamente abstrato e, para grandes setores da população, simplesmente falso. É da nossa falsidade que a extrema direita tira sua força real.
Bem, se disse que a única maneira de verdadeiramente combater tal tendência passa por admitir que a esquerda morreu, não era para terminarmos nossas vidas no vale das lamentações, mas para começar a nos perguntar o que pode ser uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome. Essa é a função desse livro: perguntar-se sobre o que é uma esquerda que, na primeira metade do século XXI, pode ainda ter lugar. Uma maneira de iniciar a discussão é identificando quais são as posições que podem caracterizar, hoje, o pensamento de esquerda.
Esta reflexão sobre as posições que caracterizam a esquerda pode nos mostrar como a política é, em seu fundamento, a decisão a respeito do que será visto como inegociável. Ela não é simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança. O que falta atualmente à esquerda é mostrar o que, segundo seu ponto de vista, é inegociável. Este livro pretende falar exatamente disso. Ou seja, falar do inegociável.
Pode parecer que ao final voltamos a “velhas palavras”, a temas que não estão, digamos, no top ten das novas palavras em circulação no mundo acadêmico global. À ocasião da primeira edição desse livro, Caetano Veloso chegou mesmo a dizer, por essa razão, que eu tinha “cabeça de concreto”. Achei por bem responder que eu crescera em Brasília e lá, bem, lá o concreto faz curva.
Era a minha maneira de dizer que o ato de criação do novo não ignora a necessidade de resgatar as potencialidades de transformação que ficaram silenciadas no passado, de implodir o tempo, operando um movimento para frente e para trás. Ou seja, voltar a “velhas palavras” nunca é voltar ao mesmo lugar. Ë como voltar a um tema musical depois de um longo desenvolvimento. Mesmo id6entico, o tema agora ressoa a história de seus descaminhos e transformações.
Nota editorial
Como disse anteriormente, esse livro foi publicado inicialmente em 2012. No entanto, essa versão é praticamente um novo livro. Pouca coisa ficou como era. Eu quis criar esse estranhamento de um livro reeditado que é, na verdade, outro livro. De certa forma, isso era mais honesto pois, de fato, foi o que aconteceu comigo. Sob a capa das mesmas estruturas, muitas ideias mudaram na última década, o que não poderia ser diferente já que o mundo havia mudado drasticamente e ideias são processos. Elas se movem a partir das afecções produzidas pelo mundo, desdobrando-se e nos empurrando para longe de onde estávamos.
Após ter escrito esse livro, o mundo conheceu uma série de insurreições populares que começaram com a Primavera Árabe. Fui atrás delas, desloquei-me até seus lugares para entrevistar pessoas, ser afetado, ouvir análises, respeitar a ideia de que um pensamento situado é aquele que procura pensar a partir de certos lugares e que se deslocar a tais lugares é condição fundamental para a orientação correta do pensamento.[ii]
Logo depois vieram as grandes manifestações de 2013 no Brasil e para quem tinha visto o processo árabe, não era difícil perceber como estávamos diante de uma dinâmica global de insatisfação social, econômica e política. Foi a incapacidade em lidar com uma insurreição popular, como a que ocorreu em 2013, que selou o destino da esquerda brasileira. Desenvolvi minhas reflexões sobre 2013 em outro livro, ao qual remeto quem se interessar pela questão.[iii]
Foi a partir daí que a extrema-direita se colocou como força insurrecional com apelo popular cada vez mais forte. Foi a partir daí que ficou claro para mim que a política havia se deslocado para os extremos e a esquerda corria o risco de se tornar, na verdadeira, uma força anti-política, ou seja, uma força gestionária que julga que o melhor a fazer é procurar a melhor forma de gerir os limites do presente.
Depois disso, eu entrei em um partido pela primeira e única vez na vida por acreditar que havia chegado o momento de tentar fazer a passagem das dinâmicas de pressão popular à intervenção institucional. Eu deveria ter sido o candidato a governador de São Paulo pelo PSOL na eleição de 2014, mas na última semana antes da nominação, um conflito estourou no interior do partido e acabei por abandonar o projeto. Só fui me candidatar em 2022 a deputado federal, em um momento em que acreditava que tudo deveria ser feito para impedir um segundo mandato de Jair Bolsonaro. Acabei me tornando suplente de deputado.
Desde que o Jair Bolsonaro assumiu o poder, juntei-me a quem lutou sem trégua, desde o primeiro dia, contra seu governo e seu projeto. Montamos grupos de ação a partir da pandemia, organizando manifestações e outras formas de ações públicas. Juntos com ex-ministros e intelectuais de todos os espectros políticos, criamos a Comissão Arns de defesa de direitos humanos. Levamos Jair Bolsonaro aos tribunais internacionais por genocídio indígena. Com deputados do Psol e contra a cúpula do próprio partido, protocolamos um dos primeiros pedidos de impeachment. Como um dos resultados, em 2021, acabei por precisar ser acolhido pelo governo francês em um programa de auxílio a acadêmicos em perigo.
Essas experiências e esse curso concreto do mundo modificaram muitas de minhas posições políticas nesses últimos 13 anos. Alguns começam a juventude com posições radicais e vão, com o tempo, moderando suas visões de mundo. No meu caso, aconteceu o oposto. E isto não foi fruto apenas de uma idiossincrasia pessoal, mas de uma transformação objetiva do horizonte político global. Daí a necessidade de reescrever esse livro.
Normalmente, autores que se veem diante da tarefa de reeditar um livro antigo abandonam todo o desejo de corrigi-lo e fazem, no máximo, alguns ajustes pontuais. Sempre se termina uma introdução à nova edição dizendo algo como: “caso começasse a corrigi-lo, teria que escrever um novo livro”. Bem, eu resolvi fazer o que normalmente não se faz e acabei mesmo por escrever um novo livro.
Nesse processo, pude entender melhor como mudamos, as metamorfoses pelas quais passamos, a maneira com que os acontecimentos nos afetam, como guardamos algumas coisas e transformamos radicalmente outras. O pensamento é o efeito dos afetos produzidos por acontecimentos em nós. Pensar não é uma atividade abstrata. Pensar é uma atividade afetiva: ela nasce da abertura aos afetos produzidos pelo mundo. Quis levar essa ideia a sério.
Mas pode existir quem se pergunte sobre a possível esterilidade de clamar por horizontes de transformação que aparentemente estão distantes de poderem ser realizados. A tais pessoas, eu lembraria inicialmente que a história exige certa humildade pois seus cursos são marcados pela contingência. O que nos é visível hoje está submetido a limitação momentânea de nossa percepção e não diz respeito às tendências que estão realmente em operação na situação da qual fazemos parte.
Tendências essas que, muitas vezes, só ficam evidentes posteriormente, depois dos acontecimentos eclodirem. Se assim for, há de se desconfiar do desejo de alguns em querer acreditar que acontecimentos não ocorrerão, a não querer estar preparado para eles, a não querer clamar por eles, principalmente em um momento de desagregação como o nosso. Pois mesmo que eles não ocorram enquanto estivermos vivos, lembraria que guardar as armas para a luta das gerações que virão já é uma tarefa gloriosa. Se é essa a tarefa que nos cabe, que a façamos com empenho e rigor.
*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica) [https://amzn.to/3r7nhlo]
Referência
Vladimir Safatle. A esquerda que não teme dizer seu nome: um novo livro. São Paulo. Editora Planeta do Brasil, 2025, 112 págs. [https://amzn.to/42ecSZx]
Notas
[i] Ver a esse respeito STREECK, Wolfgang; Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, São Paulo: Boitempo, 2016. Ver também PIKETTY, Thomas; Uma breve história da igualdade, São Paulo: Intrínseca, 2022
[ii] Na ocasião, escrevi três artigos analíticos para o jornal Folha de S. Paulo: “A volta do parafuso” (22/01/2012), sobre a insurreição tunisiana, “Ruínas recém-construídas” (29/01/2012), sobre a insurreição egipcia, “Aqui não há nada para ver” (05/02/2012), sobre a Palestina.
[iii] SAFATLE, Vladimir; Só mais um esforço, Belo Horizonte: Autêntica, 2022. Minhas análises foram completadas em SAFATLE, Vladimir; “O dia em que o Brasil parou dez anos”, In: ALTMAN, Breno e CARLLOTO, Maria; Junho de 2013: a rebelião fantasma, São Paulo: Boitempo, 2023