O povo do capital (I)

Quinn Slobodian, Economia e complexidade, 19 de junho de 2025 [1] [2]

Juntos, estamos promovendo um novo fusionismo que argumenta pela existência, como Mises já sabia, de vínculos férreos entre cultura, economia e política. Lew Rockwell

Em 2006, o formulador de ideias Charles Murray, de longa data um defensor incansável de uma ciência racial revivida, fez o discurso principal em um “jantar de liberdade” que marcava o vigésimo quinto aniversário do centro internacional dos laboratórios de ideias neoliberais, a Atlas Economic Research Foundation. Membro da Sociedade Mont Pelerin (SMP) desde 2000, Murray usou seu tempo para apresentar a desgastada história sobre como Ronald Reagan e Margaret Thatcher criaram a oportunidade para que ocorresse a difusão das ideias de Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman.

Eis que essa explosão fora auxiliada pelas fundações Cato, Heritage e Hoover, assim como por dezenas de outros laboratórios de ideias ao redor do mundo, os quais a Atlas vinha promovendo. Pensando no futuro, Murray perguntou o que eles estariam discutindo daqui a vinte e cinco anos numa reunião da Atlas, a ser realizada em 2031, no seu quinquagésimo aniversário. Não seria a liberdade econômica, o livre comércio, o gênio do empresário ou qualquer um dos outros pontos salientes do roteiro neoliberal. Ele previu que eles falariam sobre ciência.

“Nos últimos quarenta anos”, disse ele, “o grito de guerra da esquerda tem sido ‘igualdade'”. Mas a ciência vai dar o golpe mortal nessa demanda impossível. “O crescimento explosivo do conhecimento genético”, disse ele, “mostra que, dentro de alguns anos, a ciência demonstrará definitiva e precisamente como as mulheres são diferentes dos homens, os negros dos brancos, os pobres dos ricos, ou, nesse caso, as maneiras pelas quais os holandeses são diferentes dos italianos.

“Como o inimigo, em sua raiz, vem a ser a reivindicação da igualdade humana, ele sustentou que a ciência será capaz de lhe dar o golpe de misericórdia. A confirmação de diferenças de grupo inextirpáveis deixaria um vazio “no universo moral da esquerda”, previu Murray. “Se a política social não pode ser construída com base na premissa de que as diferenças entre os grupos humanos devem ser eliminadas, então sobre que base ela poderia ser construída?” No mesmo ano em que deu a palestra, em um de seus raros artigos revisados por pares, ele argumentou que a persistência das diferenças de inteligência entre negros e brancos tornava a ação afirmativa insustentável.

Alguns anos depois, Murray expandiu o tema em uma reunião da Sociedade Mont Pelerin, a qual foi realizada em um local exótico: as Ilhas Galápagos. O título do encontro era “Evolução, Ciências Humanas e Liberdade“; em consonância como ele, o título de sua palestra era “A redescoberta da natureza humana e da diversidade humana“.  Abordava, assim, um processo em andamento que ocorria, conforme alegou, por causa das novas descobertas na genética. Por meio dele, haveria “reversões a velhos entendimentos sobre o animal humano”. Assim, certos preconceitos desacreditados seriam reconfirmados como verdades científicas.

Ele se debruçou sobre a questão das diferenças raciais. “Ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX”, escreveu ele, “os antropólogos naturalistas aceitaram o conceito de raça com pouca dissensão”. A magnum opus de Carleton Coon, A Origem das Raças (1962), “não provocou indignação quando apareceu”, afirmou. (A afirmação não é verdadeira, já que “provocou uma enorme controvérsia na comunidade dos antropólogos”.)

Dois eventos produziram o que ele chamou de “oclusão intelectual da natureza humana e da diversidade humana nos Estados Unidos”: o movimento pelos direitos civis e o movimento feminista. Desde então, os desenvolvimentos políticos obscureceram as origens primordiais das diferenças não apenas entre as raças, mas também entre os sexos. Apelando para a sociobiologia e a psicologia evolutiva desenvolvidas na Universidade de Harvard por E.O. Wilson, Robert L. Trivers e seus alunos, Leda Cosmides e John Tooby (os dois últimos que estavam presentes em Galápagos), Murray afirmou que as diferenças binárias de gênero, uma herança das savanas, foram conservadas.

Eis que os “homens que eram capazes de avaliar trajetórias em três dimensões – diga-se, de uma lança lançada em um mamífero comestível – tinham uma vantagem de sobrevivência”, disse ele no Equador. “As mulheres eram capazes de fazer associações mentais. Aquelas que conseguiam distinguir entre matrizes complexas de vegetação, lembrando-se das que eram plantas venenosas e das que eram nutritivas, também tinham uma vantagem de sobrevivência. É por isso que, segundo ele, “habilidades visuoespaciais tridimensionais elevadas” para homens e “uma capacidade elevada de lembrar objetos e suas localizações relativas” para mulheres “aparecem em testes dessas habilidades até hoje”.

Voltar à natureza foi necessário para reafirmar as hierarquias afirmadas pela genética, mas constantemente desafiadas por movimentos sociais insurgentes e por ideologias progressistas. Quebrar tabus em torno das diferenças de raça e gênero era necessário não apenas para combater os efeitos perniciosos do que Murray chamou de “premissa da igualdade”, mas para reconhecer e organizar melhor os padrões de aptidão em uma economia em processo de mudança.

Este livro argumenta que o apelo à natureza foi central na solução neoliberal de um problema que tinha de ser enfrentado nas décadas após a Guerra Fria. O comunismo estava morto nessa época, mas, como eles diziam, o Leviatã viveu. Os gastos públicos continuaram a se expandir mesmo quando o capitalismo se tornou o único sistema econômico sobrevivente. Por trás disso estava um problema político. Os movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 injetaram o veneno dos direitos civis, do feminismo, da ação afirmativa e da consciência ecológica nas veias indefesas do corpo político. Uma atmosfera em que imperava o “politicamente correto” e a “vitimologia” embruteceu o discurso livre e alimentou uma cultura de dependência do governo, baseada em súplicas especiais. Os neoliberais precisavam criar de um antídoto.

Diante das demandas persistentes pela reparação das desigualdades às   custas da eficiência, da estabilidade e da ordem, os neoliberais se voltaram para a natureza em questões de raça, inteligência, território e dinheiro. Era essa uma forma de erguer um baluarte contra as demandas invasoras dos progressistas e, esperançosamente, de reverter as mudanças sociais, retomando as hierarquias de gênero e de raça. Dito de outro modo, tratava-se de reestabelecer as diferenças culturais que eles imaginavam estarem enraizadas na genética e na tradição.

Os neoliberais sempre se preocuparam com as condições extraeconômicas para a sobrevivência do capitalismo, mas geralmente se concentravam na lei, na religião e na moralidade. A crescente influência das ideias de evolução cultural de Friedrich Hayek, assim como a popularidade dominante da neurociência e da psicologia evolutiva levaram muitos a se voltarem para as ciências ditas duras e mais difíceis.

 A mudança demográfica – que passou a combinar uma população branca envelhecida com uma população não-branca em expansão – fez com que alguns neoliberais e libertários de direita repensassem as condições necessárias para o capitalismo. Talvez algumas culturas, e até mesmo algumas raças, possam estar predispostas ao sucesso no mercado, enquanto outras não! Talvez a homogeneidade cultural fosse uma pré-condição para a estabilidade social e, portanto, a conduta pacífica das trocas de mercado e o gozo da propriedade privada!

Denomina-se aqui a nova linhagem do movimento neoliberal que se cristalizou na década de 1990 de “novo fusionismo”. Enquanto o fusionismo original das décadas de 1950 e 1960 e a Nova Direita fundiram libertarianismo com o tradicionalismo religioso no estilo de William F. Buckley e da National Review, o novo fusionismo defendeu as políticas neoliberais por meio de argumentos emprestados da psicologia cognitiva, comportamental e evolutiva e, em alguns casos, da genética, da genômica e da antropologia biológica.

Já em 1987, o historiador conservador Paul Gottfried, que cunhou com Richard Spencer o termo “direita alternativa”, identificou esse novo fusionismo no campo intelectual da direita. Enquanto os conservadores mais velhos usavam uma linguagem religiosa para apoiar as suas alegações sobre as diferenças humanas, Gottfried deu por certo que, agora, começar-se-ia a usar disciplinas como sociobiologia. Essa suposta cientificidade fora criada pelo ecologista E.O. Wilson para – em suas próprias palavras – “biologicizar” as questões da ética humana. O novo fusionismo usa a linguagem da ciência para justificar a extensão da dinâmica competitiva cada vez mais profunda na vida social.

Reação frontal, não apenas uma reação

Ao examinar a ascensão do novo fusionismo chega-se a uma nova história do ressurgimento da extrema direita nos últimos anos. Embora tenha se tornado usual apresentá-la como uma “reação” contra as forças da globalização neoliberal, ao mostrar as coalizões improváveis, tais como descritas neste livro, obtém-se uma imagem diferente. Como será visto, os novos fusionistas formaram alianças com defensores do tradicionalismo, do nacionalismo e da heterogeneidade cultural.

 Entre os novos fusionistas, encontram-se os autodenominados “paleolibertários”, os quais buscaram construir suas teses extremistas sobre o alicerce da biologia e das diferenças supostamente imutáveis. Os neoliberais de direita que aderiram e, em alguns casos, fundaram novos partidos populistas, não rejeitaram a dinâmica da competição de mercado; eles se esforçaram para aprofundá-la. Os libertários que pregam o “fechamento das fronteiras” continuaram a exigir a livre circulação de capital e de bens; eles simplesmente querem criar uma barreira bem rígida contra certos tipos de pessoas. Como argumento num capítulo deste livro, a demanda por um etnoestado foi mais bem entendida como a demanda por uma “etnoeconomia”.

O novo fusionismo ganhou força na desorientação da era que se seguiu ao fim da Guerra Fria. Os estudos existentes sobre o neoliberalismo explicam mal o período em que os neoliberais estavam supostamente no auge: as décadas de 1990 e 2000. Foi então, tem sido dito, que os neoliberais derrotaram os seus inimigos, que venceram a batalha contra o comunismo e que recrutaram as instituições financeiras internacionais para realizar o seu projeto de mudança mundial.

Pode-se desculpar os analistas por suporem que não havia muito mais a explicar. Os neoliberais parecem ter passado a década polindo os bustos de Mises e Hayek para serem colocados em bibliotecas e praças em toda a Europa Oriental e se regozijando com suas vitórias. Mas não foi isso o que aconteceu. De fato, olhando para trás, para as reuniões dos neoliberais feitas após a queda do Muro de Berlim e após o colapso soviético, descobre-se algo surpreendente. Eles pareciam temer que o ânimo da Guerra Fria estivesse perdido.

“Afigura-se bem apropriado que a Sociedade Mont Pelerin, o principal grupo mundial de estudiosos do livre mercado – tal como relatou o Wall Street Journal em setembro de 1991 – tenha se reunindo na mesma semana em que o comunismo entrou em colapso na União Soviética”. Contudo, os ali reunidos viram outra ameaça no horizonte: à medida que “o comunismo saia do palco da história, a principal ameaça à liberdade poderia estar vindo de um movimento ambiental utópico que, como o socialismo, subordina o bem-estar dos seres humanos a supostos valores ‘superiores'”.

O comunismo lhes parecia um camaleão. Eis que estava já mudando de pele: de vermelho, ele se tornava verde agora. “Tendo lutado contra uma maré vermelha, agora corremos o risco de ser engolidos por uma maré verde”, alertou Fred Smith, do Competitive Enterprise Institute, em uma reunião da Sociedade Mont Pelerin uma década depois. “As forças que antes marchavam sob a bandeira do progressismo econômico se reagruparam agora sob uma nova bandeira ambiental.”

Entrevistado em 1992 pelo jornalista Peter Brimelow, que depois se tornou um incendiário da restrição de cidadania, Milton Friedman expressou um sentimento semelhante. Questionado sobre o fim da Guerra Fria, ele respondeu: “Veja-se a reação nos EUA ao colapso do Muro de Berlim… Não houve ainda nenhuma reunião de cúpula em Washington sobre como reduzir o tamanho do Estado.

Veja-se, continuou: o que foi tratado numa reunião de cúpula recente? Tratou-se de saber como aumentar os gastos do governo. O que vem fazendo o presidente supostamente de direita, Sr. Bush? Ele vem tratando de temas que requerem enormes incrementos no paternalismo – a Lei do ar limpo e a Lei dos Americanos com Deficiências, o chamado Projeto de lei de cotas dos direitos civis. Eis que Friedman via a proteção ecológica e os “interesses especiais” das pessoas com deficiência e minorias como as áreas de crescimento do estatismo pós-comunista.

O Leviatã ainda vive

“O inimigo sofreu uma mutação”, escreveu a economista Victoria Curzon-Price, uma das três únicas presidentes mulheres da Sociedade Mont Pelerin Society. “Em 1947, os fundadores de nossa agremiação lutaram contra o comunismo absoluto, contra o planejamento e contra o keynesianismo. Hoje nossos oponentes são mais evasivos.”

Na primeira reunião da SMP após a queda do muro em Berlim, realizada em uma viagem de trem em Munique, o presidente e economista italiano Antonio Martino declarou que “o socialismo está morto, mas o estatismo não”. Para ele, as três maiores ameaças agora eram o ambientalismo, os gastos estatais e a integração europeia. De imediato, então, os ali presentes ouviram que o esgotamento da camada de ozônio poderia muito bem ser devido aos leitos das algas, às correntes oceânicas e aos vulcões, tanto quanto da atividade humana.

Para ele ainda, o mais premente era o problema da Europa. As instituições supranacionais, que antes prometiam ser os motores do que Curzon-Price chamou de “modelo Ferrari de integração” – já que acelerariam a competição nos mercados de trabalho, de produtos e das finanças – provaram ser cavalos de Tróia socialistas. A relação inversa entre a unificação da Europa e a dissolução do bloco soviético pareceu estranho e assustador para muitos libertários.

Eis o que disse o historiador alemão da ciência, Gerard Radnitzky, na reunião da SPS em Munique: “A criação de um superestado europeu se mostraria uma ironia da história. Pois, ele surgia justamente no momento em que os países ‘pós-socialistas’ estavam tentando desmontar o socialismo, fazendo assim a transição para a liberdade. Dessa maneira, estar-se-á embarcando no caminho de mais governo e mais burocracia, rumo a um socialismo rastejante em que prevalecerá menos liberdade e menos crescimento”.

A Europa era apenas parte do problema. “O Leviatã não apenas continua vivo”, escreveu Radnitzky, “mas ele vem crescendo”. Na reunião do ano seguinte, o novo presidente, o economista Gary Becker da Universidade de Chicago repetiu o refrão: “A missão da SMP parece ter sido cumprida amplamente com o colapso do comunismo na maior parte da Europa Oriental… Mas, infelizmente, ainda há muito a ser feito. A grande maioria das populações do mundo ainda vive em países que restringem drasticamente as liberdades econômicas e políticas. E mesmo nos países democráticos da Europa Ocidental, dos EUA e de outros lugares, o controle governamental e a regulamentação das atividades econômicas estão se expandindo, não se contraindo”.

Parte do problema para os neoliberais era que eles estavam tão concentrados em seu oponente que não gastaram tempo suficiente refletindo sobre como seria o primeiro dia em que a sua utopia se realizaria. O dilema neoliberal no final da Guerra Fria era que décadas de “coletivismo” e dependência do Estado – mesmo no mundo capitalista – haviam corroído as virtudes da autossuficiência que permitiriam a reprodução da vida social.

Falando na reunião do quinquagésimo aniversário da SPS no Instituto Hoover, em 1997, o presidente da Fundação Bradley, membro da SMP, Michael S. Joyce, disse que “a nossa atenção vem falhando consistentemente em se concentrar em uma realidade muito importante e muito preocupante. Se tivermos forças políticas amanhã para desmantelar o estado de bem-estar social e se começássemos efetivamente a desmantelá-lo, enfrentaríamos um fato assustador, mas inevitável: por trás do estado de bem-estar social, não há quase nada.

A própria lógica dos neoliberais dizia que a dependência produzida pelo estado-babá havia deixado raízes tênues no denso tecido conjuntivo da comunidade e da família. “Os mecanismos socais que existiam antes do estado de bem-estar social e que, em certa medida, funcionavam bem, agora sumiram”, observou Joyce. Isso vem a ser um problema: “a promessa difusa e atraente de que o setor privado e o livre mercado preencherão a lacuna instantaneamente – tal como Atena nascera de Zeus –, que substituirão o estado de bem-estar social, tornando a nova ordem aceitável para nossos cidadãos, é uma quimera total”.

Ora, aqui se encontra algo notável. Não se tratava apenas do fato que os neoliberais estavam negando que haviam vencido a Guerra Fria. Pois, eles estavam com medo da realidade que resultara do que eles realmente tinham feito.

Continua no próximo poste.

[1] Introdução do livro de Quinn Slobodian, Hayek’s bastards: race, gold, IQ, and the capitalism of the far right. Nova York: Zone Book, 2025. O seu título original “Volk capital” parece se referir criticamente a ideia neoliberal de que há um povo próprio do capital e que certas “raças inferiores” são incompatíveis com ele e, por isso, podem ser eliminadas.  

[2] Historiador canadense especializado em História da Alemanha moderna e História Internacional. Leciona na Universidade de Boston. Livros publicados: Capitalismo destrutivo: Os radicais do mercado e a ameaça de um mundo sem democracia, Objetiva, 2024; Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism, Harvard University Press, 2020.

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