O outono dos Estados Unidos

Benjamin Braun e Cedric Durand, A terra é redonda, 7 de maio de 2025

O retorno de Donald Trump ao cargo expôs as falhas dentro da coalizão que contribuíram para sua vitória

Contradições na base de apoio de Donald Trump

O declínio do país hegemônico, segundo o historiador Fernand Braudel, vem historicamente com a financeirização. Em face do declínio da lucratividade na produção e no comércio, os proprietários de capital transferem cada vez mais os seus ativos para as finanças. Trata-se, de acordo com Braudel, de um “sinal de outono”, momento em que os impérios “se transformam numa sociedade de investidores rentistas à procura de qualquer coisa que garanta uma vida tranquila e privilegiada”.[i]

Esse espectro do declínio braudeliano assombrou figuras-chave do segundo governo de Donald Trump. Eis o que se perguntou, durante a campanha, o agora secretário do Tesouro, Scott Bessent: “O que todas as antigas moedas de reserva têm em comum?”. “Seja de Portugal, da Espanha, da Holanda, da França, do Reino Unido… Como elas perderam o status de moeda de reserva?”

Eis como ele mesmo respondeu: “Esses países ficaram altamente alavancados em suas finanças e, por isso, não puderam mais apoiar os seus exércitos”. Embora Bessent, um ex-gerente de fundos de cobertura (hedge funds), negue oficialmente que haja um programa de depreciação do dólar, os especuladores têm atuado de um modo que está reduzindo a taxa de câmbio dos EUA desde que Donald Trump assumiu o cargo em janeiro.

O secretário de Estado, Marco Rubio, é autor de um relatório intitulado “Investimento americano no século XIX”, de 2019. Nesse escrito, ele critica Wall Street por manter a norma que põe a “remuneração dos acionistas” em primeiro lugar. Eis que essa regra, que “privilegia o retorno em dinheiro de forma rápida aos investidores, molda a tomada de decisões nos negócios no sentido do curto prazo, em vez de construir capacidades corporativas de longo prazo”. As opiniões desses funcionários sobre os privilégios acumulados pelas finanças são compartilhadas pelos autodenominados “populistas” republicanos, como Josh Hawley.

Assim, uma certa hostilidade residual em relação a Wall Street marcou ideologicamente os primeiros meses do segundo governo de Donald Trump. Por um lado, as tarifas impostas no “Dia da Libertação” agitaram os mercados financeiros; por outro, Wall Street retaliou com pânicos financeiros ameaçadores, os quais funcionaram para disciplinar a Casa Branca.

Se uma coalizão de populistas reunidos sob o lema MAGA, que constitui a base eleitoral de Trump, é sustentável vem a ser uma questão central do seu segundo governo. Veja-se que ela espera um aumento nos padrões de vida, assim como o ressurgimento dos empregos seguros, os quais viriam por meio de um renascimento da manufatura dos EUA. Ora, tais populistas julgam que isso virá por meio da política tarifária e de um aperto do mercado de trabalho devido as deportações dos imigrantes não legalizados.

As empresas de combustíveis fósseis e de tecnologia orientadas para a defesa, como Palantir e Anduril, estão de fato satisfeitas com o nativismo militarizado. Mas a política comercial de Donald Trump prejudica claramente as finanças privadas e as grandes empresas de tecnologia. E esses são dois setores que também apoiaram Donald Trump de forma consistente, de tal modo que agora eles esperam ser recompensados. Ao atacá-los, Donald Trump pode estar se afastando de certas facções do capital norte-americano, as quais contribuíram para levá-lo de volta ao cargo.

Para essas facções, o declínio dos EUA é relativo e ele poderia ser administrado de modo mais suave, tal como tem sido feito no Japão. Como Giovanni Arrighi observou, já em 1994, as finanças sempre intermediam e, assim, continuamente se beneficiam das transições hegemônica.[ii] Mesmo se a hegemonia está se enfraquecendo, os titãs da gestão de ativos estão lucrando tanto com o reequilíbrio dos portfólios nos EUA quanto com o investimento de grandes massas de capital nas economias asiáticas de rápido crescimento, na China em particular.

As grandes empresas de tecnologia de informação e comunicação, por sua vez, visam controlar a geração e a difusão de conhecimentos; por isso, elas querem influir também, fortemente, na coordenação econômica.[iii] Elas têm muito a perder com a fragmentação geoeconômica já que isso pode impedi-las de acessar os dados, pode reduzir os seus efeitos de rede, pode aumentar o custo de sua infraestrutura material e, finalmente, pode pressionar por políticas de soberania digital por parte dos outros países do mundo.

Em seus esforços para reviver o Império americano, o governo Donald Trump terá, portanto, que equilibrar delicadamente os interesses dos nativistas orientados para a recuperação da indústria e os interesses das facções do capital que precisam atuar no mundo como um todo. Conseguir navegar por essas agendas concorrentes representará um enorme desafio para a longevidade da coalizão que sustenta o governo de Donald Trump – e para a estabilidade do sistema financeiro global como um todo.

As finanças privadas apoiam Donald Trump

Já na eleição de 2016 ocorreu uma divisão dramática entre os capitalistas que pontuam em Wall Street. Por um lado, os bancos grandes demais para falir e os gestores de ativos de “capital público” [ou seja, os fundos de pensão que supostamente servem ao interesse geral] alinharam-se, inclusive retoricamente, com os democratas. Por outro, os capitalistas do “capital privado” – que investem em “participação privada” (private equity[iv]), capital de risco e fundos de cobertura (hedge funds) – apoiaram já, inclusive de modo vocal, a primeira candidatura de Donald Trump à presidência.

Vale lembrar aqui que essa divisão também se manifestou no Reino Unido, onde um grupo de magnatas dos fundos de participação privada e de cobertura deu seu apoio ao Brexit, enquanto as finanças tradicionais centradas nos bancos tendiam a apoiar o campo que propugnava pela permanência na União Europeia.[v]

Os gestores de ativos, que operam como títulos do setor privado, querem apenas duas coisas: privilégios fiscais e desregulamentação. O fator mais importante por trás da ascensão implacável dos chefes de finanças privadas no ranking da Forbes 400 é a brecha fiscal para os ganhos com taxas sobre as operações financeiras. Nos últimos vinte e cinco anos, esses ganhos – ou seja, as remunerações baseadas no desempenho dos sócios gestores dos fundos privados – totalizou, de modo bem impressionante, o valor de US $ 1 trilhão.[vi]

Em 2010, Brack Obama tentou – e falhou – fechar essa brecha. O CEO da Blackstone, Stephen Schwarzman, achou apropriado comparar esse esforço com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista. Quando da edição da Lei de Redução da Inflação do governo de Joe Biden, a senadora Kristen Sinema fez uma demanda de última hora no Senado dos EUA: ela propôs que a brecha fiscal fosse simplesmente mantida. Foi assim ocorreu o fracasso completo dos democratas norte-americanos em aumentar os impostos sobre as grandes empresas e sobre os mais ricos.

Na frente da desregulamentação, o maior prêmio para a facção das finanças estritamente privadas é o acesso ao vasto conjunto de ativos individuais associados às aposentadorias. Atualmente, os fundos de participação privada e de cobertura arrecadam dinheiro de indivíduos super ricos e de proprietários de ativos institucionais – mas não da massa de assalariados.

O maior grupo de clientes desses fundos são, de longe, as pensões por benefício definido, dos setores públicos e privados. Desde a crise financeira de 2008, no entanto, os planos individuais de contribuição definida cresceram duas vezes mais rápido do que seus equivalentes coletivos. Atualmente, cerca de US $ 10 trilhões são mantidos nesses dois tipos de planos, os quais são administrados pelos baluartes da facção liberal de Wall Street: as empresas como BlackRock, Vanguard e State Street.

Em sua busca constante para obter acesso a essa gigantesca soma de dinheiro, a facção das finanças privadas obteve a sua primeira vitória sob Trump I. Em 2020, o subsecretário do Departamento do Trabalho, Eugene Scalia, filho do principal juiz conservador da Suprema Corte, Antonin Scalia, firmou um documento oficial afirmando que as regras existentes permitiam já que os patrocinadores de tais fundos de participação privada podiam avançar sobre os recursos que garantem a aposentadoria de milhões de americanos.

Com certeza, uma mero documento na forma de uma carta emitida pelo Departamento do Trabalho, ao contrário de uma mudança de regra na legislação reguladora das finanças, podia ser um mandamento fraco, mas ele não deixou de ser bem significativo. Pouco depois de Donald Trump assumir o cargo pela segunda vez, os titãs da participação privada redobraram os seus esforços para abrir e beber nessa torneira. Eis que eles acreditam que essa abertura poderia dobrar a demanda por seus fundos.

Não há mistério sobre a determinação da “participação privada” em obter acesso aos 60 milhões de participantes do plano 401(k)[vii] que existe nos EUA. A linha de ataque é clara: ao limitar as suas opções de investimento a ações e títulos negociados publicamente – argumentam –, os reguladores privam supostamente os detentores de planos 401 (k) de diversificação e de maiores retornos. Marc Rowan, presidente-executivo da Apollo,  reclamou que os fundos 401 (k) “são investidos em fundos de índice de liquidez diária, principalmente o S&P 500”.

Larry Fink, CEO da BlackRock, que recentemente passou a comprar ativos de infraestrutura, lamentou que  esses ativos estejam “em mercados privados fechados, trancados atrás de muros altos, com portões que se abrem apenas para os maiores ou mais ricos participantes do mercado”. A entrada da BlackRock na “participação privada” representa uma ampla mudança. E ela está ocorrendo entre os gestores de ativos ditos de capital público. Eis que isso ocorre à medida que o acesso aos retornos da “participação privada” (private equity) é vendido aos poupadores de aposentadoria americanos como um passo em direção a uma maior democracia financeira.

Na realidade, esse setor de “participação privada” – denominado de “fábrica bilionária”[viii] pelo economista Ludovic Phalippou – está buscando um resgate. Desde 2006, os retornos dos investimentos dos fundos de “participação privada” falharam em superar o mercado de ações – mesmo que o número de seus bilionários tenha se elevado de três, em 2005, para vinte e dois, em 2020. Nos últimos anos, esses fundos de aquisição têm lutado para se livrar de alguns investimentos, em vez de repassá-los para frente tal como ocorre num jogo de batatas quentes.

Em 2024, o ramo da “participação privada” encolheu pela primeira vez em décadas. As negociações corporativas, na mira dos anos Biden, oferecem um caminho de volta ao crescimento. “A indústria tem batido o tambor para o retorno das fusões e aquisições como forma de justificar em parte a quantidade de capital que fora levantado ao longo dos últimos anos”, disse recentemente o diretor de investimentos da gestora de ativos alternativos Sixth Street a um grupo de investidores. “O problema é que as pessoas pagaram muito por ativos entre 2019 e 2022 e, agora, ninguém quer vender esses ativos sem um retorno aceitável.”

Com expectativas de retorno irrealistas acumuladas, a maneira mais segura de garantir uma saída lucrativa para os investidores atuais é trazer novos investidores. Trazer US $ 1 trilhão de dinheiro aplicado em “investimento burro” – investido que está nos planos 401 (k) –, conforme pensa o setor, permitirá que os fundos de pensão, os fundos soberanos e os grandes proprietários de riqueza individual saiam de suas participações com lucro. Os poupadores menores ficariam com esse saco de ativos supervalorizados. Em outras palavras, um esquema Ponzi.

Realinhamento de grandes empresas de tecnologia

Enquanto as finanças se dividiam em duas facções políticas, a elite do Vale do Silício marchava para a direita formando uma unidade surpreendente. Por três décadas, empreendedores de tecnologia e financiadores privados puderam “agir rápido, quebrando as cadeias” sem ter que temer grandes impedimentos impostos pelo Estado. Havendo obtido tudo de maneira muito fácil, esses predadores decidiram que o governo de Joe Biden, assim como as políticas antitruste do Partido Democrata, precisavam ser parados.

Nesse sentido, mobilizaram-se em torno da bandeira de Trump, julgando que ela restauraria o status antitruste prevalecente na época de Barack Obama. O capitalista de risco Marc Andreesen falou sobre uma ansiedade sentida pelos líderes desse ramo; indicou que eles pressentiam uma “revolução social” que está a acontecer nos centros tecnológicos das universidades e no Vale do Silício; eis que havia um “renascimento da Nova Esquerda” e ela estava radicalizando a força de trabalho.

Muito claramente, para ele, as empresas estão sendo sequestradas pelos motores da mudança social, da revolução social. A base de funcionários está ficando supostamente selvagem. Na era do primeiro Trump ocorreram casos em que várias empresas sentiram que estavam apenas a algumas horas de distância de tumultos violentos em seus próprios territórios, encetados por seus próprios funcionários.

O liberalismo do Vale do Silício, ao que parece, foi uma fase temporária ligada a um período de liquidez máxima e regulamentação mínima do capitalismo dos EUA. Então veio a pandemia da Covid e o governo forneceu transferências substanciais aos trabalhadores. Alguns deles, por isso, sentiram-se capacitados para expressar novas demandas. Ao mesmo tempo, o ramo mais ativista do governo Biden, a Comissão Federal de Comércio de Lina Khan, procurou aplicar a lei antitruste na regulação das grandes empresas de tecnologia.

Adicione a esse caldo o esforço feito pela secretária do Tesouro de Biden, Janet Yellen, para criar uma coordenação internacional voltada para a tributação corporativa, assim como o apoio retórico do presidente democrata à mobilização sindical. Juntando tudo isso, torna-se possível ver por que Andreesen sentiu o período como “um momento gigante de radicalização”. Foi por isso, também, que ele gastou uma enorme quantidade de tempo trocando ideias em grupo que promoviam a consciência de classe dos bilionários.

Essas são as circunstâncias que levaram as grandes empresas de tecnologia a se juntarem às finanças privadas como a segunda facção do capital que passou a apoiar o retorno de Trump. A reunião do dia da posse dos grandes chefes de tecnologia selou essa aliança. Eles foram recompensados rapidamente com uma enxurrada de ordens executivas que eliminaram as proteções de segurança pública para empresas de Inteligência artificial e obstáculos regulatórios para empresas de criptomoedas.

Viu-se, assim, um nítido contraste com o confronto feito pelo governo Biden contra o plano do Facebook de criar um sistema de pagamento global. Denominado de Libra, ele foi lançado em 2019 e arquivado em 2022; contudo, agora, o novo governo parece preparado para apoiar o setor de criptomoedas com toda a fé e respaldo do Estado.

Os interesses associados às criptomoedas adotaram o manual da “participação privada”, buscando atrair dinheiro de fundos de pensão. Desde a reeleição de Donald Trump, vinte e três estados introduziram legislação para permitir que entidades públicas possam investir em criptomoedas. Em vários casos, os projetos de lei incluem especificamente os fundos de pensão públicos.

A Lei da inovação nacional em moedas alternativas (Genius) dos EUA visa fornecer uma estrutura regulatória permissiva para tais meios e ela já passou por um obstáculo importante no Senado. Já o ataque do DOGE às agências reguladoras financeiras, da Securities Exchange Commission (SEC) ao Consumer Financial Protection Bureau (CFPB), enfraqueceu a supervisão, aumentando os incentivos para a assunção de riscos em todo o sistema financeiro. Eis que ela não impede o plano de Elon Musk para criar uma Conta X-money em parceria com a Visa. As sementes para uma versão muito maior da crise do Silicon Valley Bank estão, pois, plantadas.

O resultado é que a séria tensão financeira que perturbou os primeiros meses do novo governo pode ser tanto uma característica quanto um erro interno da coalizão corporativa do presidente. As ambições da nova elite do Vale do Silício não são apenas incapacitar a burocracia federal, mas também destronar Wall Street.

O dilema do Federal Reserve

Assim se chega ao árbitro decisivo em qualquer confronto envolvendo finanças e o Estado: o Federal Reserve. Apesar de ter passado por uma grande crise financeira em 2008, o Fed tem desfrutado de um sólido domínio monetário na política macroeconômica dos EUA. Uma vez que foi reiniciado o processo inflacionário, a política fiscal fica em segundo plano e a política monetária passa a oferecer um instrumento promissor de estabilidade financeira e de preços.

A economia de alta pressão projetada sob a estratégia “go-big-go-early” de Yellen em resposta à queda da atividade econômica na pandemia, combinada com o aumento dos preços devido aos atrasos de entrega na cadeia de suprimentos também durante a pandemia, forneceu a justificativa para o Fed apertar a política monetária, visando desinflar os mercados financeiros e os mercados de trabalho.

Sob Trump II, no entanto, o Federal Reserve encontra-se num caminho muito mais perigoso. As tarifas de Donald Trump, assim como um dólar enfraquecido, trazem uma clara possibilidade de retorno das pressões inflacionárias. Uma administração competente e disciplinada talvez pudesse evitar aumentos de preços em itens essenciais por meio de estoques estratégicos e controles de preços.[ix] Contudo, o atual governo não é competente nem disciplinado. O ataque sistemático do DOGE a certos departamentos do governo federal apenas reforça a impressão de que o ônus de conter a inflação recairá apenas sobre o Fed.

Agora, Jerome Powell enfrenta um dilema. Se as pressões inflacionárias aumentarem sob o ataque duplo das tarifas e de um dólar mais fraco, o Fed deverá aumentar as taxas tal como faz sempre. Ora, o Fed já está permitindo que os rendimentos dos títulos do governo subam.

No entanto, o aprofundamento do estresse financeiro devido a taxas de juros mais altas do que o esperado e ao crescimento da renda abaixo do esperado – os proprietários de carros estão perdendo pagamentos de empréstimos à taxa mais alta em três décadas – ora, isso pode forçar o Fed a intervir para sustentar os valores dos ativos, como fez no final de 2019 e início de 2023, por meio de empréstimos de emergência e compras de ativos. Além disso, Donald Trump e Bessent deixaram claro que querem taxas de juros mais baixas sobre a dívida do governo dos EUA – uma perspectiva que complica muito qualquer projeto de restrição monetária.

O dilema de Powell é ainda mais urgente porque o maior ativo de todos parece estar em jogo: o status dos títulos do Tesouro dos EUA como ativo seguro global e, portanto, o status do dólar americano como moeda de reserva e financiamento global. O apetite dos gestores de reservas oficiais por títulos dos EUA vem diminuindo há anos, já que a participação em dólares nas reservas globais caiu de 71% em 2000 para 57% em 2024.

Certos sinais de crescente preocupação dos investidores em tais títulos surgiram já em fevereiro, quando o diretor de investimentos da gestora de ativos francesa Amundi observou, em resposta às ordens da Casa Branca enfraquecendo a regulamentação de valores mobiliários, que “mais e mais coisas estão… estão sendo feitas certas coisas que podem começar a corroer a confiança… no sistema dos EUA, no Fed, na economia dos EUA”.

Nas semanas seguintes, essa ameaça velada começou a se materializar com uma forte correção dos mercados de ações e, mais preocupante, com o aumento dos rendimentos dos títulos do tesouro dos EUA. Após o anúncio de tarifas “recíprocas” de Trump, em 2 de abril, os EUA experimentaram algo extraordinário: uma fuga de capitais. Se o Fed for pressionado a permitir que as taxas de juros reais caiam à medida que a inflação aumenta, ocorrerá uma fuga de capitais em uma escala muito maior – está é, pois, uma possibilidade real.

Os objetivos de eliminar o déficit comercial dos EUA, preservando o status de moeda de reserva do dólar, são considerados incompatíveis. Desde o trabalho de Robert Triffin no final dos anos 1950 sobre o “excesso de dólares”, os economistas monetários internacionais entenderam que o crescimento econômico global por meio do comércio depende da disponibilidade de reservas. Na ausência de um novo padrão de reserva internacional, julga-se que isso põe uma exigência de que haja uma ampla oferta de dólares, fornecida ao resto do mundo por meio de déficits comerciais perpétuos dos EUA.

Em um mundo de fluxos financeiros transfronteiriços brutos ilimitados, mas em que a transações fossem mediadas por exemplo pelo Euro, a liquidez global deixaria de estar necessariamente ligada os déficits em conta corrente dos EUA. Como esse mundo não existe ainda, as ideias do governo norte-americano de desconectar a dominação do dólar dos déficits em conta corrente se afiguram como pouco tranquilizadoras.

Tais ideias, incluem, especificamente, “promover o desenvolvimento e o crescimento de criptomoedas legais, legitimamente lastreadas em dólares em todo o mundo”. Eric Monnet chamou isso de “criptomercantilismo”. Para ele, trata-se de uma estratégia destinada a estender, em vez de minar, o domínio do dólar no sistema monetário global, uma vez que o valor de tais moedas será lastreado em ativos em dólar.

Armadilhas para o governo da classe dominante

O retorno de Donald Trump ao cargo expôs as falhas dentro da coalizão que contribuíram para sua vitória. As facções populares do MAGA apoiaram as posturas nacionalista de Trump. Contudo, elas têm pouca causa comum com as finanças convencionais e com os interesses do setor de tecnologia em mercados financeiros e digitais globais abertos. A tecnologia e a MAGA poderiam se encontrar no meio do caminho, no ponto crucial que consiste na ambição de reviver a base industrial dos EUA. Ora, isso poria em risco a base formada pelo dólar forte do qual dependem as finanças convencionais e privadas para sua primazia.

Embora, como diz Steve Bannon, muito do que aderiram a MAGA estejam no Medicaid, o orçamento federal recentemente aprovado pela Câmara, controlada agora pelo Partido Republicano, inclui cortes radicais no bem-estar, os quais são defendidos pelas finanças privadas. Apesar da retórica, esses cortes de gastos não compensam a redução dos impostos: os déficits públicos serão grandes e contínuos; ademais, a agenda tarifária e desregulatória do governo Trump ameaça a estabilidade financeira.

Os teóricos do Estado há muito argumentam que “a classe dominante não governa”. Seguindo a feliz frase de Fred Block, as democracias liberais foram caracterizadas por uma divisão do trabalho entre capitalistas, que dirigem suas empresas, e “gerentes de Estado”, que dirigem o governo.[x] Uma vez que os capitalistas individuais tendem a ter dificuldade em ver além que acontece em seus próprios bolsos, as suas fortunas dependem do sucesso dos gerentes estatais em sustentar as condições para a reprodução social, ecológica e financeira do capital.

De acordo com Block, o estado capitalista atua procurando a própria sobrevivência do sistema por meio da agregação de interesses dispersos. Surge, assim, uma questão: o atual governo dos EUA, em sua forma limite, será capaz de agregar os interesses das múltiplas facções concorrentes que sustentam Trump II? As tarifas, por um lado, afetam os interesses da indústria de tecnologia dos EUA na China, mas, por outro, apaziguam os nacionalistas da MAGA. Combinadas com uma desvalorização do dólar orquestrada internacionalmente, elas ajudariam muito a sustentar o boom de investimento na indústria trazido pelas medidas econômicas do governo Biden (apelida de Bidenomics).

A desregulamentação financeira e a abertura do acesso aos planos 401 (k) para participação privada podem ser combinadas com a reversão das taxas de imposto de alta renda de 37% para o nível pré-2017 de 29,6%, tal como foi sugerido por Donald Trump durante o debate na Câmara sobre o orçamento federal. Ainda não se sabe, porém, se tal consenso surgirá. Apenas alguns meses depois da inauguração, as antinomias da economia de Donald Trump (apelidada de Trumponomics) estão se manifestando sem resolução óbvia.

*Benjamin Braun é cientista político e pesquisador sênior do Instituto Max Planck.

*Cédric Durand é professor na Universidade de Sorbonne Paris-Norte. Autor, entre outros livros, de Techno-Féodalisme: Critique de l’économie numérique (La Découverte).

Notas

[i] Braudel, F. (1984). Civilization and capitalism, 15th-18th century. University of California Press, pp. 246 e 266-267.

[ii] Arrighi, G. (1994). The long twentieth century: Money, power, and the origins of our times. Verso Books.

[iii] Durand, C. (2024). How Silicon Valley Unleashed Techno-feudalism: The Making of the Digital Economy. Verso Books

[iv] N. T.: em português, “private equity” pode ser traduzido como “participações privadas” para destacar que se trata de investimento em ações de empresas não listadas em bolsa.

[v] Marlène Benquet and Théo Bourgeron, Alt-Finance: How the City of London Bought Democracy, Pluto: London, 2022.

[vi] Phalippou, L. (2024). The Trillion Dollar Bonus of Private Capital Fund Managers (SSRN Scholarly Paper No. 4860083). https://papers.ssrn.com/abstract=4860083

[vii] N. T.: Um plano 401(k) é um plano de poupança para a aposentadoria, normalmente oferecido por empregadores nos Estados Unidos, que permite aos funcionários contribuírem com uma parte do seu salário para uma conta de investimento, geralmente com a possibilidade de o empregador contribuir também. Os fundos investidos crescem de forma diferida em impostos, e são tributados apenas quando retirados durante a aposentadoria.

[viii] Ludovic Phalippou, “An Inconvenient Fact: Private Equity Returns and the Billionaire Factory,” The Journal of Investing,December 2020, 30 (1) 11 – 39. 

[ix] Weber, I. M., Lara Jauregui, J., Teixeira, L., & Nassif Pires, L. (2024). Inflation in times of overlapping emergencies: Systemically significant prices from an input–output perspective. Industrial and Corporate Change, 33(2), 297–341. https://doi.org/10.1093/icc/dtad080

[x] Block, F. (1987). The ruling class does not rule: Notes on the Marxist theory of the state. In Revising state theory: Essays in politics and postindustrialism (pp. 51–68). Temple University Press.

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