O Brasil frente às metamorfoses do imperialismo

José Correa Leite

O governo Trump II está promovendo uma metamorfose no capitalismo e no imperialismo de dominância financeira centrado nos EUA, para a qual pretende arrastar o “Ocidente expandido”. Frente aos múltiplos desafios colocados para a classe dominante estadunidense pela expansão do capitalismo de estado chinês, que promove um desenvolvimento mais vigoroso da economia, os setores mais poderosos dessa burguesia promovem um desesperado giro nacionalista, autoritário e neocolonial, ancorado no fundamentalismo religioso e com agressivos cortes neofascistas. Tudo indica que Trump busca empreender uma mudança de regime nos Estados Unidos, encerrando um longo período de liberalismo político. Abriram-se fissuras profundas no interior da classe capitalista que, de conjunto, até então se organizava economicamente nos marcos da globalização (neo)liberal. Entramos em um período muito mais conflituoso e violento.

Os debates recentes estão destacando os acertos das escolhas do governo de Beijing, bem como as consequências do desfecho da disputa entre democratas e republicanos em Washington e suas projeções na Europa e em outros países. Eles dizem respeito a como estes dois pólos do capitalismo respondem a diferentes desafios: as apostas em como formatar e controlar as forças produtivas decisivas na economia contemporânea - a energia e o digital - e alavancar ou penalisar os capitais responsáveis por elas, como redefinir suas projeções de poder externas, como se relacionar com a democracia política e a soberania nacional e como manter a classe trabalhadora disciplinada.

O contexto internacional abre, para o Brasil, um espaço geopolítico mais fluido e pode forçar setores acomodados do neoliberalismo local a se desgarrarem do governo Trump, uma dinâmica muito positiva para as camadas populares da sociedade brasileira. Isso desbloqueia o quadro político e pode favorecer processos que apontem para a ruptura com a regressão neocolonial de nossa economia e sociedade e a retomada de uma trajetória progressiva, depois do período de interrupção da construção nacional iniciado entre 1988 e 1990 com a adesão ao neoliberalismo. Mas para isso é necessário romper com a expressão interna desse processo, uma classe dominante neoextrativista, espoliadora e desprovida de sentido de nação, subordinada aos ditames do mercado mundial e sem qualquer compromisso com o povo brasileiro. Mais do que democracia ou fascismo, é o embate de classe entre soberania ou capitulação a Washington e a capacidade dos trabalhadores assumirem as questões democráticas e nacionais que deve marcar a vida política e o próximo processo eleitoral no Brasil - embora as duas questões estejam ligadas e a derrota da soberania pode representar o enterro de nossa frágil democracia com consequências desastrosas para o campo popular.

A base industrial do capitalismo, a revolução digital e o Brasil

O desenvolvimento do capitalismo promoveu e foi movido por grandes constelações de inovações tecnológicas que alavancaram, em grandes ondas, a acumulação e os avanços na produtividade do trabalho humano ao longo de dois séculos e meio. Essas constelações se somaram para constituir o aparato material da nossa sociedade. Esquematicamente, quatro ondas de inovações modelaram a sociedade moderna. Inicialmente as máquinas a vapor constituíram a base, por mais de um século, do quase monopólio industrial e do superpoder imperial inglês, consolidado pela vitória nas guerras napoleônicas. Em seguida, no final do século XIX, as tecnologias elétricas se tornam maduras, levando à rápida eletrificação da vida urbana e, depois, da economia; o laboratório de Thomas Edison em Menlo Park, de 1876 a 1886, pode ser considerado o momento de entrada nessa nova fase. A siderurgia e a indústria química também se somavam à produção industrial. É o momento da fusão dos monopólios (ou trusts) com os novos estados imperialistas, desembocando, no século XX, nas guerras mundiais para definir o novo hegemon, que substituiria a Inglaterra. Uma terceira constelação de inovações tecnológicas surge com o refino do petróleo e a invenção do motor a combustão - uma tecnologia que ganharia empuxo quando Henry Ford inaugurou sua primeira linha de produção em 1911, mas que só se tornaria central na estrutura econômica global com a II GM. A economia do petróleo, do automóvel, do avião e do plástico alavancaria o que Ernest Mandel chamou de capitalismo tardio ou, na edição francesa de seu livro, “a terceira idade do capitalismo”. A luta dos trabalhadores e o medo da revolução socialista consolidaram os direitos sociais (em especial no welfare state), a intervenção do estado na economia e o consumo de massas nos países centrais, bem como, na periferia do mercado mundial, a descolonização e a industrialização por substituição de importações.

A quarta constelação tecnológica que estruturou o capitalismo global é a do digital. Ela é distinta das anteriores na medida em que não está alicerçada na geração de energia, mas no tratamento de informações transformadas em dados quantificáveis. O digital emerge praticamente com a invenção do circuito integrado (o chip), que vai viabilizar o desenvolvimento dos computadores, mas só se espraia pela economia com a abertura da internet para uso geral em 1994. Quando o armazenamento e processamento de dados se integra a sua transmissão, a digitalização se torna irresistível. A invenção do telefone celular e sua popularização com o Iphone, depois de 2007, tornou a rede móvel e onipresente. Junto com a contra-reforma neoliberal, foi o protagonismo das empresas do Vale do Silício que permitiu à economia norte-americana, financeirizada e declinante já na década de 1970, retomar algum vigor, impulsionar uma nova vaga globalizadora da acumulação e reorganizar em torno de si, por algum tempo, o mercado mundial. A formação da OMC, em 1994, institucionalizou esta globalização neoliberal e, na formulação de Ignácio Ramonet,  impôs o neoliberalismo como “pensamento único”. As corporações dos EUA, Europa, Japão, Coréia do Sul, Canadá e Austrália constituíram as cadeias globais de produção e a China e a região vizinha foi integrada na economia capitalista como a “fábrica do mundo”. 

O Brasil havia internalizado, entre 1930 e 1990, os ramos da segunda e terceira revoluções industriais. A luta pela nacionalização do petróleo e a chegada das montadoras de automóveis ao país, nos anos 1950, foi o momento simbólico de consolidação de uma estrutura industrial moderna pelo nacional-desenvolvimentismo, que já era bastante robusta nos anos 1970 e 1980, quando chegou até mesmo a ensaiar uma produção digital nacional. Porém a globalização neoliberal significou o desmonte de grande parte da indústria brasileira e a reprimarização do centro dinâmico da economia do país - materializado no surto neoextrativista de exportações agrícolas, pecuária, minérios e hidrocarburos, a maior parte destinado, ironicamente, a alimentar a industrialização chinesa. Os governos Lula I e II consolidaram este desmonte - abertura para as big techs em 2005, petróleo do pré-sal em 2007, a política do BNDES das campeãs nacionais (que no Japão e na Coréia do Sul alavancaram conglomerados industriais de ponta e no Brasil celulose e frigoríficos!). O projeto petista contraditoriamente fortaleceu enormemente a base social conservadora no Brasil.

O Brasil não controla seu próprio destino. Como afirmam Paulo Nogueira Batista Jr. e Manoel Casado, “commodities e produtos de baixo valor agregado são a marca de nossa relação comercial com o resto do mundo. Não temos comando sobre os preços que garantem o bom desempenho de nossa balança comercial. Vivemos ao sabor de mercados internacionais – de soja, café, minério de ferro, petróleo etc. Condição que repercute negativamente sobre várias outras dimensões da vida nacional, como saúde, defesa, energia, meio ambiente e economia digital. Essa vulnerabilidade estrutural permanecerá inalterada se, ao invés de transformarmos nosso horizonte produtivo e nosso tecido industrial, procurarmos tão-somente novos demandantes para o que já produzimos” (Vulnerabilidade estrutural). Sobre isso remeto os leitores ao meu ensaio “O PT e a construção de uma sociedade neoliberal no Brasil”, publicado no livro O eclipse do progressismo, que pode ser baixado aqui.

A crise de 2008 e as big techs

O estouro da bolha imobiliária do mercado norte-americano em 2008 evidenciou os limites da tentativa neoliberal de reerguimento do capitalismo ianque e a natureza em grande medida parasitária da reestruturação capitalista. O neoliberalismo defendia com unhas e dentes a financeirização e o rentismo e escalava à dinâmica concentradora de rendas e riquezas, que voltava a se assemelhar à do capitalismo liberal pré-1929. Os compromissos keynesianos, que tinham garantido os mercados para o crescimento industrial mundial no pós-II GM, tornaram-se coisa do passado, o endividamento cresceu e a desigualdade explodiu. Ela foi aprofundada também porque a internet e as cadeias globais de produção facilitaram a deslocalização da produção industrial, esvaziando o poder de barganha dos sindicatos. Com a formação do que, do ponto de vista do capital, era agora uma classe operária global, a determinação do valor no terreno produtivo estava se dando não mais somente no espaço nacional, mas também no espaço do mercado global. Apesar disso, o capital não conseguiu restabelecer suas taxas de lucro no patamar pré-2008, entrando, como bem destaca Michael Roberts, em um prolongado período de estagnação.

É nesse momento em que as big techs do Vale do Silício decolam e se transformam nas empresas mais poderosas da história do capitalismo. Os smartphones introduziram tecnologias adictivas que hoje capturam metade da humanidade em uma relação patológica com as chamadas “redes sociais” (o Facebook foi lançado em 2004, o Iphone em 2007), manipulando o que Walter Benjamin definiu precocemente como o “inconsciente ótico”. Formaram-se também plataformas de compras que se integram com as redes sociais e açambarcam parcelas significativas do setor de serviços. Isso permitiu a dataficação exponencial das big techs, que formaram gigantescos bancos de dados sobre seus usuários (chamados de “nuvens”, mas na verdade datacenters consumindo quantidades colossais de recursos). Dados são capturados por mil mecanismos e geridos algoritmicamente, mas internalizam os objetivos culturais, políticos e ideológicos dos proprietários das plataformas. A dataficação, mercantilização e gestão algorítmica tanto introduziram novas relações de superexploração capitalistas como permitiram que as plataformas se tornassem ferramentas do poder, modulando escolhas e comportamentos de partes significativas da população e alimentando a indiferença e a passividade. Criaram também os bancos de dados que propiciaram a introdução das tecnologias de inteligência artificial, em especial as baseadas nos grandes modelos de linguagem, que tornam ainda mais nebulosa a esfera virtual corporativa. 

As gigantescas big techs dos EUA organizam ao redor de si um vasto setor de empresas de plataforma que utilizam as tecnologias digitais para pôr em ação as formas “uberizadas” de superexploração da força de trabalho. Essas corporações se tornaram o coração inconteste da economia nucleada por Wall Street e a âncora real da financeirização que continuou crescendo, mas que não pode girar somente em torno de atividades especulativas. Como o poder dessas empresas não é apenas econômico, mas também político, isso motivou alguns analistas a dizerem que estaríamos abandonando o capitalismo e entrando em um tecnofeudalismo, onde os proprietários das empresas de plataforma aufeririam rendas extraídas coercitivamente por mecanismos extra-econômicos. Contudo, poderosos trustes também exerceram, no passado, esse tipo de poder político-econômico - como os “barões ladrões” do capitalismo dos EUA no final do século XIX (Rockefeller, Carnegie, Morgan, Vanderbilt…) ou ainda empresas como a Light no Brasil da primeira metade do século XX.

O poder desmedido das big techs é a expressão da fragilidade industrial da economia estadunidense, que Trump diagnosticou corretamente e quer reverter com políticas protecionistas - à sua maneira análogas às do capitalismo de estado chinês. As big techs do Vale do Silício foram artífices da globalização neoliberal e dela se beneficiaram; seu crescimento explosivo foi, ainda, alavancado pela pandemia de 2020-22. As plataformas estabeleceram uma sinergia com os processos mais regressivos da atualidade, como as guerras culturais e a polarização ideológica em torno de valores religiosos; suas atividades catalisaram uma pandemia de patologias psicossociais e identidades regressivas, em especial entre a população mais jovem. Na medida que seu poder cresceu, elas passaram a enfrentar pressões crescentes por regulação de suas atividades, inclusive nos EUA sob o governo Biden. Legislações restritivas começaram a ser introduzidas, em especial na Europa e Austrália. Além disso, os grandes datacenters necessários para o crescimento das IAs das big techs dos EUA, baseado na extração intensiva de dados dos usuários, demandam quantidades crescentes de energia e água, que agudizam a catástrofe ecológica em curso. Tudo isso parece ter levado a que seus proprietários concluíssem que precisam do respaldo de um poder autoritário em Washington, perfilando-se ao lado de Trump e seu projeto. Suas redes sociais funcionam hoje como aparelhos ideológicos do neofascismo.

A crise climática e o impossível capitalismo verde

Mas a revolução digital não foi a única grande mudança material no capitalismo contemporâneo. A expansão da acumulação alimentou, desde o pós-guerra, uma “grande aceleração” na demanda de recursos naturais, matérias primas e serviços ecossistêmicos; o consumo de massas exige materiais e energia em escala crescente, tendendo ao infinito.  Em 1992 os governos pareceram constatar, na Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, que três grandes crises ambientais estavam em curso e tinham que ser combatidas - a climática, a da perda de biodiversidade e a da desertificação. Mas, apesar das declarações, nada de relevante foi definido; enfrentar a crise significaria desfossilizar o capitalismo. Foi necessário que a temperatura global começasse a escalar para que, em 2015, o Acordo de Paris formalizasse o reconhecimento do perigo.

As grandes potências esboçaram propostas de uma transição energética - de combustíveis fósseis para a eletrificação por fontes de energias renováveis, eólica e solar -, que potencialmente representa uma quinta grande constelação de inovações tecnológicas. A China viu a oportunidade de, com a eletrificação de sua economia, reduzir sua dependência de petróleo importado. A União Europeia, que conhecerá enormes aumentos de temperatura, também  avançou iniciativas nesse sentido. Mas nos EUA e no restante do mundo, inclusive no Brasil, essas propostas se chocaram com os interesses fósseis estabelecidos e estão paralisadas. O governo Obama apoiou o Acordo de Paris, mas o governo Trump I imediatamente dele se retirou; Biden recolocou os EUA na dinâmica de eletrificação, mas Trump II está desmontando cada uma das suas iniciativas voltadas para energias renováveis. Além disso, a Guerra na Ucrânia reduziu as ambições da transição energética na Europa. A dinâmica da acumulação de capitais fora do controle político de um Estado comprometido com a defesa do clima e da natureza é incompatível com a sustentabilidade.

De fato, o capitalismo exige escalar a acumulação. Assim, cada nova fonte de energia renovável barata criada vem se somando ao uso cada vez maior de combustíveis fósseis; os proprietários das empresas fósseis recusam-se a deixar que suas empresas sejam desvalorizadas. Mesmo o Brasil, um país que tem condições geográficas quase ideais para caminhar para fora do petróleo, mergulha mais e mais na economia fóssil. A cobiça do setor de energias fósseis de explorar até o último barril de petróleo organiza-se politicamente, colocando em seu bolso políticos, a mídia e os governos. Além disso, a crise ambiental catastrófica para a qual caminhamos não é responsabilidade apenas do fossilismo, mas igualmente pela sua projeção na grande agropecuária capitalista, que transpôs o modelo da grande indústria para o campo e criou desertos verdes, e sua na indústria de alimentos ultraprocessados, que adoece a humanidade. Estamos no meio de uma crise ecológica não apenas pela elevação da temperatura global pela emissão de gases do efeito estufa, mas também pela extinção massiva de espécies de animais e plantas, pelo descontrole dos ciclos do nitrogênio e do fósforo e a crise hídrica devido à agropecuária industrial, pela poluição química, pela acidificação dos mares, pelo desmatamento das florestas tropicais (em especial a Amazônica) etc. 

Os tempos se encurtam cada vez mais: vamos ultrapassar os dois graus acima do patamar pré-industrial de temperatura na próxima década! Enquanto isso, as COPs do clima viraram encontros de lobistas das companhias de petróleo, gás e carvão e, depois de Glasgow, em 2021, refratárias à pressão popular - algo que o governo Lula se esmera para repetir de forma elaborada na COP30 de Belém. Até mesmo um acordo global para salvar os oceanos da poluição plástica está paralisado por esse poderoso e tentacular lobby fóssil. É especialmente ameaçador, para nós brasileiros, o Acordo de Livre-Comércio União Europeia-Mercosul, negociado por Bolsonaro, que Lula quer efetivar.

O capitalismo de estado chinês se coloca no coração do mercado mundial

A economia chinesa é hoje, se medimos seu volume pela paridade do poder de compra, muito maior que a estadunidense. Podemos ver a dinâmica global da revolução digital e a disputa em torno de uma nova matriz energética analisando o que aconteceu com ela, que foi vitoriosa protegendo seu mercado interno e promovendo políticas industriais desde o Estado. Aí também se desenvolveram corporações de plataforma - inicialmente Baidu, Alibaba, Tencent, and Xiaomi (BATX), à qual se agregam hoje outras bastante poderosas, como a Huawei, a ByteDance (proprietária do TikTok), a DiDi (que oferece um serviço semelhante à Uber e é proprietária, no Brasil, da 99), DJI (drones, robôs, câmeras), além de empresas voltadas para a IA... Ou seja, tanto a economia financeirizada dos EUA como a economia chinesa focada na indústria com forte regulação estatal incorporam e são hoje vertebradas a partir das tecnologias digitais.

Mas o capitalismo de estado chinês, gerido de forma despótica pela direção do Partido Comunista Chinês sem os ditames do capital financeiro e do lobby fóssil, pode percorrer um caminho diferente na sua política energética. Preocupado com sua dependência externa de petróleo, a China vem promovendo uma forte transição energética. Como afirma um dossiê do New York Times sobre o tema, “embora a China ainda queime mais carvão do que o resto do mundo e emita mais poluentes climáticos do que EUA e Europa juntos, sua transição para alternativas mais limpas ocorre em  ritmo acelerado. Não apenas a China já domina a fabricação global de painéis solares, turbinas  eólicas, baterias, veículos elétricos e muitas outras indústrias de energia limpa, mas a cada mês amplia sua liderança tecnológica. A maior montadora, a maior fabricante de baterias e a maior empresa de eletrônicos da China apresentaram sistemas que recarregam carros elétricos em apenas cinco minutos, praticamente eliminando uma das maiores inconveniências dos veículos elétricos: o longo tempo de recarga. A China detém quase 700 mil patentes em energia limpa, mais da metade do total mundial… A indústria automobilística chinesa é agora vista como a mais inovadora do mundo, superando japoneses, alemães e americanos. Para reduzir custos de fabricação, a China automatizou fábricas, instalando mais robôs a cada ano entre 2021 e 2023 do que o resto do mundo somado, e sete vezes mais do que os EUA. (Há uma corrida para mover o futuro. A China está ganhando).

A disputa econômica e geopolítica entre os EUA e a China passou, assim, a girar não apenas em torno das tecnologias digitais, mas também de apostas em distintas matrizes energéticas e seu impacto nas suas teias de comércio internacional. Os EUA jogam hoje todas as suas fichas, para manter sua posição global, no modelo de inteligência artificial desenvolvido pela OpenAI, altamente demandante do poder computacional de grandes datas centers, que Trump quer que sejam alimentados por fontes fósseis (e os magnatas do Vale do Silício também por usinas nucleares). Como afirma Viveiros de Castro, a inteligência artificial é a ponta de um projeto de dominação tecnológica do capitalismo, um projeto ideológico muito forte de controle da população humana em benefício de uma fração muito pequena da população. Em contrapartida, as soluções chinesas para IA aparecem como mais eficazes e menos demandantes de energia. Tudo indica que o capitalismo de estado chinês articula um desenvolvimento mais eficiente das forças produtivas do que o modelo estadunidense. Lembremos, contudo, que o surto industrializante chinês é inequivocamente capitalista. O estado chinês é governado em bases autocráticas, seu surto industrialista ampliou radicalmente a desigualdade social no país e a China e promove um grande movimento de extração de matérias-primas e alimentos do mercado mundial. Os ganhos tecnológicos do programa Made in China 2025 caminham a par e passo com a acumulação por espoliação, cuja expressão mais visível é a Nova Rota da Seda. Boa parte das economias da Ásia, África e América do Sul gira hoje ao redor de atividades primário-exportadoras voltadas para o mercado chinês. A China é uma potência imperialista em ascensão, com um regime político fortemente autoritário.

Os BRICS designavam, no apogeu do neoliberalismo, um local privilegiado para a expansão econômica capitalista global no seu conjunto. Mas, no imaginário de uma certa esquerda que tinha perdido a sua identidade em 1991, o que para o capital financeiro eram os mercados emergentes, passava a simbolizar um lugar de posições anti-ocidentais, anti-atlantistas e “anti-imperialistas” (mesmo tendo outros traços imperialistas). Para esse progressismo que trocou o socialismo pelo nacionalismo, os BRICS parecia representar o potencial do Sul Global - com ecos do terceiro mundismo da Conferência de Bandung (1955), que assentou as bases para o movimento dos países não-alinhados (lançado em 1961) -, misturando desejos de representação de classe populares e afirmação geopolítica nacionalista. Mas não devemos confundir desejo com realidade. Os BRICS nunca foram nada disso. Fortaleceram-se como uma rede difusa de interesses nacionais pragmáticos, impulsionados por classes capitalistas que vem crescendo mais rapidamente do que as do velho núcleo EUA-Europa-Japão coordenado por Washington. Essa é a razão da enorme hostilidade de Trump para os BRICS.

A industrialização chinesa se deu voltada para atender ao mercado mundial, cujo comércio internacional agora recua e que, com Trump e suas tarifas, deve conhecer uma regressão ainda maior. O dinamismo do comércio mundial vem recuando desde a crise de 2008, o que transformou Beijing na grande defensora da “ordem internacional baseada em regras”, embora o governo chinês esteja procurando estabelecer um mercado interno mais vigoroso. Mas a globalização do livre-comércio está perecendo no embate entre o capitalismo de estado chinês que domina a produção industrial global e o salve-se quem puder do capitalismo financeiro do Ocidente. Agora, sob Trump, Washington pretende esfolar seus “aliados” e torná-los financiadores do nacionalismo econômico estadunidense.

O giro neofascista e neocolonial da burguesia estadunidense

Trump governou os EUA entre 2017 e 2020. Seu governo foi interrompido pela maioria democrática obtida na eleição de 2020, depois dos vigorosos protestos do Black Life Matters e, como Bolsonaro, de sua gestão desumana da pandemia de covid19. Mas, graças ao controle republicano da Suprema Corte, ele conseguiu escapar das acusações de tentativa de golpe pelo 6 de janeiro de 2021, capitalizar o descontentamento com a gestão Biden - inepta em defender as condições de vida da classe trabalhadora - e ganhar a eleição de 2024, inclusive no voto popular (onde, em 2016 tinha perdido para Hillary Clinton). 

Trump apresenta um projeto agressivo para reverter a decadência do poder estadunidense, uma presidência imperial bastante autoritária, mobilizadora de fortes ressentimentos de segmentos da população estadunidense. Incentiva o supremacismo branco e escatologias do fundamentalismo evangélico, galvanizando toda sorte de pensamentos regressivos, da anticiência paranóica ao nacionalismo xenófobo. Emerge como uma retorno, alargado, de várias camadas regressivas da formação da sociedade estadunidense, derrotadas no estabelecimento da democracia rooseveltiana do New Deal: o racismo wasp, o supremacismo branco dos derrotados da guerra civil, o totalitarismo de mercado dos barões ladrões, o imperialismo neocolonial das canhoneiras de Theodore Roosevelt, o nacionalismo isolacionista do entre-guerras. Mas também dos setores que perderam seus privilégios nas grandes mobilizações dos oprimidos depois dos anos 1960 e da classe trabalhadora espoliada pelo neoliberalismo depois de 1980...

O projeto Trump é expressão de um grande enfraquecimento do capitalismo ianque, que não consegue mais coesionar as classes dominantes do mundo por uma hegemonia econômico-cultural e enfrenta um adversário dotado de maior coerência estratégica. Buscando reverter o declínio estrutural dos EUA, ele está ancorado em vários eixos internos e externos coerentes, representando uma ruptura importante com as políticas neoliberais anteriores. Há, em primeiro lugar, uma política de disciplinamento e aumento da superexploração da força de trabalho, cuja expressão mais visível é a perseguição aos trabalhadores imigrantes. Ela não pode ser conduzida, nas condições da sociedade estadunidense, senão de forma repressiva. O uso interno das forças armadas se articula com a busca de mudança de regime, rompendo com o bipartidarismo e o federalismo e constituindo um poder presidencial autoritário. Trump conta, para isso, com o apoio do legislativo, da suprema corte, de boa parte da burguesia e da mídia corporativa, além de seu movimento Make America Great Again (MAGA). Esse processo enfrenta uma resistência fragmentada dos trabalhadores e dos setores populares democráticos, mas está na ofensiva.

Externamente, Trump pretende ampliar a extração de recursos dos aliados para financiar a acumulação no país, estressando todo o sistema de alianças construído desde a II GM. Sua política de tarifas de importação implodiu a globalização estruturada por Washington nas décadas de 1980 e 1990 e, em especial, a OMC. A União Europeia, a Inglaterra e o Japão aceitaram o ultimato e negociaram as novas tarifas; os países periféricos estão tendo que aceitá-las praticamente sem negociações. Mas até agora a China não negociou nada relevante e a Índia e o Brasil, a quem Trump quer impor políticas neocoloniais (a liberdade de Bolsonaro no caso do Brasil, o fim da compra de petróleo da Rússia no caso da Índia), receberam tarifas de 50%. Trump não conseguiu também impor à Rússia um cessar fogo na Guerra da Ucrânia. A articulação dos BRICS, por mais heterogênea que seja, constitui hoje um limite geopolítico das ambições neocoloniais de Washington. Isso está sendo ativamente capitalizado por Beijing, que também estreita suas relações com Rússia, Índia e os países da Ásia através da Organização para Cooperação de Xangai, inicialmente voltada para temas de segurança, mas que se expande para áreas econômicas.

A doutrina de Donald Trump, a America First, não é apenas nacionalista, mas neocolonial e fortemente militarista, uma forma contemporânea de fascismo. Ele apoia o genocídio israelense em Gaza e uma política de limpeza étnica do governo Netanyahu na Palestina. Elimina qualquer respeito às noções básicas de respeito à soberania nacional e regras pactadas de direito internacional, afastando-se das organizações multilaterais que expressam críticas a Washington. Seu vice-presidente, Jack Vance, manifestou abertamente apoio aos movimentos neofascistas europeus em reuniões com os governos do continente. No hemisfério ocidental, Trump retorna à política do final do século XIX do big stick (porrete grande). Ambiciona anexar a Groenlandia e o Canadá (o que suscitou uma forte reação nacionalista no país vizinho), retoma o controle do Canal do Panamá, mura a fronteira com o México e envia navios de guerra para as costas da Venezuela. Quer impor Bolsonaros, Bukeles, Mileis e Dina Baluartes por toda a América Latina. E promoveu uma mudança nada simbólica, ao alterar o nome do Departamento de Defesa dos EUA para Departamento de Guerra. A política neofascista e neocolonial de Trump representa uma grande ameaça para os povos de nosso continente e recoloca a questão da independência nacional e da soberania política de nossos países na ordem do dia!

A ordem internacional fundada pelos vitoriosos da II GM sob as sombras de Auschwitz e Hiroshima e institucionalizada na Organização das Nações Unidas colapsa impotente frente ao genocídio de Gaza, promovido por Trump e Netanyahu. Vemos o recrudescimento de várias das mais perigosas tendências históricas da humanidade: fascismos e nacionalismos autoritários, guerras de conquista territorial, escalada das rivalidades interimperialistas, uma nova corrida armamentista. Mas agora eles são acompanhados de novos e urgentes desafios existenciais para a civilização capitalista e para a humanidade: a crise climática provocada pela adição do capitalismo nos combustíveis fósseis e as mudanças ambientais do Sistema Terra para a qual ela aponta; as colossais ondas migratórias no horizonte e a metamorfose demográfica das sociedades; as novas tecnologias digitais e os processos que elas agenciam. O elemento mais desestabilizador é, contudo, a escala e o tempo da convergência e sinergia desses processos na hubris capitalista do crescimento infinito. A policrise que vivemos significa, como afirmam alguns dos mais importantes cientistas da atualidade, tempos perigosos no planeta Terra.

Brasil: que soberania frente ao imperialismo e seus agentes?

As tarifas aplicadas por Trump às exportações brasileiras criam uma fissura na globalização neoliberal e na inserção do Brasil nela. Isso deveria ensejar uma discussão estrutural da situação do país, de sua dependência e vulnerabilidade e da necessidade de alterar sua estrutura produtiva primário-exportadora, na linha sugerida por Paulo Nogueira Batista Jr. e Manoel Casado. Mas nossa condição de dependência - cuja necessidade de superação gerou o debate constitutivo do Brasil moderno a partir da década de 1930 - vem sendo naturalizada por três décadas de anestesia do pensamento crítico da sociedade. Em 1992, o giro neoliberal do governo Collor ainda conduzia Celso Furtado a afirmar premonitoriamente, em seu livro Brasil: a construção interrompida, que a adesão ao neoliberalismo bloqueava o processo de construção nacional do país. Mas nas três décadas seguintes, o livre-comércio deixou de ser a ideologia dos liberais para se tornar um senso comum também dos petistas, como se a interdependência nas teias do comércio mundial fosse uma relação entre iguais, sem o exercício do poder imperialista. É frequente ouvirmos de gente progressista que a economia brasileira é muito fechada - fechada para quem, perguntaríamos?Trata-se de uma regressão ideológica profunda de grande parte da esquerda e do progressismo, que esqueceu-se inclusive de que, no início do século XXI, ela bloqueou a formação da Área de Livre Comércio das Américas (a ALCA) e lutava contra a globalização nos Fóruns Sociais Mundiais - defendia um altermundialismo, uma globalização dos povos e não da economia.

Agora, a crise da globalização neoliberal pode ser vista, sem ingenuidade, como a abertura de espaço para recolocar alternativas. Vale a pena revisitar a argumentação de Chico de Oliveira no seu ensaio O ornitorrinco. Racionalizando o que ocorreu no Brasil em 1929/30, ele constatava, em 2003, no primeiro ano do governo Lula, que o neoliberalismo impedia a modernização econômica e o desenvolvimento. Mas alinhava as condições que poderiam permitir que mudanças estruturais ocorressem em um país como o Brasil: a combinação de uma grande crise internacional (e é isso que estamos hoje vendo escalar no cenário global) com a ação de uma força política interna com peso para aproveitar as oportunidades que podem surgir. Tal força política tem que se estruturar ao redor de um projeto alternativo aquele hoje vigente, em que distintos setores da sociedade se conformem e se candidatem a construtores da nação, a portadores da sua soberania, da vontade política para governá-la de forma autônoma. 

Focar no slogan “Soberania” foi, compreensivelmente, a primeira reação do governo Lula frente aos ataques de Trump, o que levou Jamil Chade a questionar: “Trump coloca o Brasil diante do espelho: temos um projeto de país?” Chade formula perguntas retóricas, mas instigantes: “Que soberania é essa que, em cada aldeia indígena, conta com uma antena da empresa de Elon Musk? Onde estão armazenados os dados de servidores do Estado brasileiro? [sabemos que na Amazon…] Onde estamos no desenvolvimento da inteligência artificial, a nova energia nuclear do mundo? Que soberania é essa que, no setor farmacêutico, pena para garantir autonomia do abastecimento de remédios e convive com um déficit bilionário? Que soberania é essa que depende da moeda nacional de um outro país?” Mas sua resposta não se dá pela negativa. Afirma corretamente, citando Luiz Antonio Simas, que existe um "projeto bem-sucedido de país". Mas "um projeto colonial, fundado na ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do indígena, na escravização do negro". E conclui: “ele tem razão. O projeto de país sempre existiu. O que precisamos agora é desfazê-lo, garantir que ele dê errado. Só assim os brados de soberania farão sentido”. 

Na raiz desse projeto de espoliação que prevalece no Brasil está uma classe capitalista de fundo agrário, mesquinha e violenta, forjada pela escravidão e desprovida de compromissos com o povo. Depois de seis décadas de industrialização por substituição de importações, ela foi capaz de destruir um dos maiores pólos industriais da periferia da economia mundial, desarticular a sociedade e reprimarizar o país apenas para beneficiar seus interesses particulares. 

O projeto industrializante foi implantado, depois de 1930, desde o Estado, sempre sob o ataque dos liberais. Na sociedade que se industrializa, se urbanizava e se modernizava, os avanços na constituição de uma identidade nacional compartilhada, na estruturação da democracia e na conquista de direitos se deram, como regra, na luta popular contra esta burguesia débil, que se integrou ao setor financeiro rentista e se internacionalizou sob o neoliberalismo. Desde que a Constituição de 1988 restabeleceu o poder das oligarquias regionais de base agrária, ela vem crescendo em simbiose com a dinâmica produtiva primário-exportadora, sequestrando os fundos públicos para subsidiar a ela e ao rentismo. Todos os governos desde Collor reafirmaram esta propensão a uma economia de saque dos recursos naturais, organizada desde o Estado e enquadrada pelo setor financeiro, apoiado em um “banco central independente”, no “tripé macroeconômico”, na espoliação do trabalho e nos constrangimentos externos. Os governos petistas não foram, nisso, diferentes em grau, apenas em número.

O resultado foi a desindustrialização de um país em que 85% da população vive nas cidades há mais de duas gerações e grande parte há três gerações, com a correspondente desagregação do tecido social, a precarização da economia e da força de trabalho, a estagnação do assalariamento, o declínio dos setores médios e a consequente importação dos produtos industriais mais básicos - que poderiam ser produzidos no país gerando empregos estáveis e de qualidade. Tivemos, de forma orgânica a isso, o fortalecimento contínuo do ruralismo, o setor mais regressivo da classe dominante; a expansão da religiosidade neopentecostal, manifestação imediata da sociabilidade precarizada e esgarçada; e uma visão punitivista de justiça, baseada na “bala” e defendida pelo “boi” e pela “bíblia”. O “Centrão” é a expressão política mais acabada desse projeto de país, uma oligarquia no poder que recorre, sempre que necessário, à golpes, aventureiros e bandos fascistas, como foi o caso de Bolsonaro e seu clã. A ideologia do empreendedor conservador evangélico é sua manifestação cultural mais acabada.

No Brasil, onde a soberania sempre esteve associada à luta da classe trabalhadora e dos setores populares contra as classes dominantes integradas ao imperialismo, a volta da questão nacional oferece um centro de gravidade para a esquerda e reatualiza o debate sobre a revolução permanente e suas tarefas. Quem pode garantir uma verdadeira independência nacional na era das big techs e das finanças globais? Quem pode estancar a drenagem de recursos naturais para o exterior e o combate à catástrofe ecológica que escala? Quem pode promover uma desglobalização econômica que permita que a economia volte a se organizar em função das necessidades do mercado interno? Quem pode organizar a luta do mundo do trabalho por direitos e dignidade? Quem pode galvanizar as massas populares na luta antiimperialista? 

Sabemos a resposta: somente os trabalhadores podem vertebrar a nação, a comunidade imaginada capaz de exercer uma soberania efetiva, e, construindo e conquistando o poder, realizar a ruptura com as teias de dominação simultaneamente capitalistas e imperialistas. Mas a nação se constrói a quente, ao redor de lutas mobilizadoras. Que programa, lutas e ideias-força devemos sustentar para que a palavra soberania tenha sentido nas condições do mundo do século XXI? 

A estratégia ecossocialista

A resposta a isso pressupõe redefinirmos nosso horizonte de futuro. O modernismo socialista, com um forte corte produtivista, colapsou no final do século XX, e uma nova utopia está apenas em gestão. Precisamos que seus contornos estejam delineados com muito mais precisão para as vanguardas sociais para podermos oferecer um norte firme para as lutas em curso.

O Brasil precisará, em qualquer cenário, aproveitar a competição entre vários pólos capitalistas e outras expressões da “grande crise internacional” que se desenha para discutir não só o modelo neoliberal, como propõem os petistas críticos (como Paulo Nogueira Batista ou Marcio Pochmann…), mas para voltar a questionar o próprio capitalismo. Um mundo que caminha para uma crise climática catastrófica exige uma política ecossocialista, só factível com uma desglobalização ao menos parcial, ou seja, com distintos patamares de ruptura com a lógica do mercado global regido pela lei do valor tal como aplicada pelo capital financeiro e pelas grandes corporações. Pensar um futuro sustentável é visualizar um mundo onde as grandes decisões possam ser tomadas em função da preservação dos processos naturais do planeta e seus impactos sobre as populações e territórios e não da taxa de lucro das corporações.

Entre a brutalidade das políticas internacionais de Trump e a drenagem de recursos da periferia pelas trocas desiguais do livre-comércio, as aspirações dos povos à libertação passa não só por reafirmar a soberania econômica frente a Trump, mas também por eliminar instituições como a OMC - louvada por Lula e Xi Jinping. Isto, que pode parecer impossível hoje em dia, tornar-se-á uma questão urgente quando se colocar na mesa a escalada do colapso ecológico pela continuidade do aquecimento global e a migração de populações que escalará.

Uma parte da esquerda nunca defendeu a globalização econômica neoliberal. Sustentamos a necessidade de uma outra globalização política e cultural, mas sempre combatemos a livre circulação de capitais e mercadorias. Combatemos todos os acordos de livre-comércio negociados pelos capitais e suas instituições, que colocam os mercados fora do controle da sociedade. Apoiamos e animamos os inúmeros movimentos que, desde os anos 1990, se opuseram ao avanço do neoliberalismo e levaram, após a inviabilização da reunião da OMC de Seattle, em 1999, aos grandes protestos contra a OMC, o BM, o FMI e o Fórum Econômico Mundial. Uma década depois, apoiamos os movimentos dos indignados que ocuparam as praças pelo mundo afora - pelos 99%, defendemos os que ocupavam Wall Street contra os 1%. E combatemos, com toda força, o Acordo de Livre-Comércio União Europeia-Mercosul. Precisamos transformar nosso horizonte produtivo e nosso tecido industrial e não exportar natureza barata para gerar lucro para os acionistas das corporações.

No auge dos Fóruns Sociais Mundiais, Walden Bello lançou um pequeno livro intitulado “Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial" (publicado no Brasil pela Editora Vozes em 2003). Ele lembrava que os quadros comerciais anteriores à OMC eram muito mais democráticos do que os posteriores a 1994. O Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (o GATT) e, mais tarde, o quadro estabelecido pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, ofereciam maior flexibilidade e múltiplas formas de as nações se relacionarem com o mercado global. Estas alternativas eram ainda reforçadas pelas estratégias de desconexão econômica das experiências revolucionárias do século XX, que sempre defenderam o monopólio estatal do comércio exterior - que Samir Amin teorizava no seu livro A desconexão. Hoje precisamos recuperar esse legado em vez de nos agarrarmos ao sistema monolítico da OMC, atacado por Trump.

O mundo possível do altermundialismo era um projeto alternativo de globalização política em um planeta cada vez mais conectado com uma economia mundial sob controle democrático; a taxação das transações financeiras internacionais (a taxa Tobin, defendida pelo ATTAC), seria apenas o primeiro passo nessa direção. Hoje, quando a desglobalização já é uma tendência caótica em curso, necessitamos promover desconexões seletivas, setoriais e reindustrializantes, encurtando as cadeias produtivas, impossíveis nos marcos da OMC - criada para impedir o uso de políticas industriais protecionistas e garantir a propriedade intelectual das big techs. A pandemia da covid foi uma primeira demonstração da irracionalidade da teia de dependência dos países do comércio exterior em questões tão básicas como a produção de alimentos, medicamentos e de bens cotidianos simples, que deveriam ser produzidos em função da proximidade e não transportados, com um enorme impacto ambiental, entre continentes. Isso se tornará uma imposição objetiva dos anos que virão em função do colapso ecológico para o qual caminhamos.

O capitalismo precisa se expandir ou morre. Ele externaliza seus impactos sociais e ambientais, socializando para o conjunto da sociedade consequências cada vez maiores, e produzindo uma crise inédita da civilização. Não há crescimento infinito em um mundo finito. O capitalismo já está funcionando com os grandes monopólios fagocitando todo o tecido de pequenas empresas sem que, a diferença do passado, novas atividades e empregos sejam gerados para compensar as perdas. Não há futuro racional para o capitalismo. A economia de mercado é miope e imediatista; pensa a produção e distribuição pelos preços e não a partir dos fluxos de matéria, energia e trabalho; pensa a produtividade e a redução de custos apenas pela lógica de curto prazo da remuneração de cada unidade de cada empresa. Não inclui em seu sistema de preços os custos dos danos ou impactos ambientais ou sociais da produção ou do consumo dos bens e serviços, considerados “externalidades”. Os governos apenas socializam esses custos com toda a sociedade. A ordem neoliberal, o neofascismo antiglobalista e o capitalismo de estado chinês - que hoje disputam o controle das fontes de energia e das tecnologias digitais - são plutocracias capitalistas cada vez mais irracionais, que promovem a desmedida do valor, ainda que o modelo chinês tenha uma precária trava política na limitação do capital financeiro pelas decisões do regime de partido único.

Desde uma perspectiva ambiental, a maior parte da produção econômica e do comércio internacional, bem como a atuação das finanças globais, são profundamente improdutivas. A produção de combustíveis fósseis e do sistema alimentar focado na proteína animal e em alimentos ultraprocessados que adoecem a humanidade se tornaram forças destrutivas e não há nenhum horizonte para sua redução no capitalismo. A eles se somam plásticos e armas, o transporte privado e a sociedade do automóvel, os bens de consumo regidos pela lógica da descartabilidade e obsolescência planejada, os serviços que reproduzem esta estrutura etc… Grande parte daquilo que hoje flui pelas artérias do comércio mundial não pode ser integrado em uma economia circular e contribui para a destruição da biosfera e, em decorrência, da vida humana. As cadeias globais de produção e a divisão internacional do trabalho estabelecida só beneficiam as corporações globais e o que é certo adiante é o colapso ecológico. O comércio internacional que não passar pelos crivos ambientais e sociais precisará ser suprimido, por mais “natural” que pareça depois de quase meio século de globalização neoliberal. As políticas de Trump são manifestações patológicas da crise de um sistema que não consegue mais se sustentar. Não trabalhamos, pois, pela reprodução desse sistema, mas por sua ruptura; como diz Daniel Bensaid, trabalhamos para a incerteza! 

A maioria dos países precisa, para enfrentar as tempestades que virão e proteger seus povos, desglobalizar parcialmente suas economias, afirmar sua autonomia e resiliência econômicas em função da soberania alimentar e agroecologia, constituição de parques industriais que respondam às demandas do consumo de massas, etc…, repensar e reduzir suas escalas de produção, evitar a autarquia integrando suas economias com a de seus vizinhos e encurtando suas cadeias econômicas, desmontar suas zonas de sacrifício e organizar as suas atividades produtivas e serviços com base nos princípios da cooperação e da subsidiariedade - produzir local, nacional e regionalmente o que precisam e importar apenas o que não podem produzir. O maior país tropical do mundo, com grandes territórios continentais, o Brasil governado pelo atual bloco no poder é um forte candidato ao colapso. Toda a atividade agrícola do interior do país sofrerá sucessivas quebras devido à crescente escassez hídrica - a menos que a vitalidade da Amazônia seja restaurada, algo impensável para o Centrão e o ruralismo. 

Uma reindustrialização enfrenta, evidentemente, limites frente a produtos mais sofisticados, cuja cadeia produtiva está muito concentrada. Mesmo um país da dimensão do Brasil pode não ter condições de produzir, de forma autônoma e soberana, chips de ponta, equipamentos de precisão ou aviões de grande porte (lembremos que a Embraer é uma montadora…), precisando manter-se integrado às cadeias globais. Esse é o ponto onde a regionalização ajuda a constituir escala (o mercado consumidor praticamente dobra quando raciocinamos não apenas como Brasil mas como América do Sul) e garantir praticamente todos os insumos fundamentais para uma dinâmica econômica auto-suficiente. E uma economia soberana pode aproveitar as rivalidades interimperialistas para permitir, via articulações como os BRICS, acesso às essas tecnologias. Necessitamos produzir tecnologias alternativas; as atuais foram desenvolvidas em simbiose com as necessidades do sistema corporativo globalizado. Os ecossistemas tecnológicos integrando estado, universidade, sociedade civil e empresas não estão obsoletos; devem ser reorganizados para gerar a tecnodiversidade que precisamos.

Mas o fundamental é, nesse momento, difundir o questionamento da globalização estabelecida, que coloca o Brasil e os demais países do nosso continente à mercê das chantagens de Trump. Essa globalização é uma maquinaria demasiado complexa para funcionar sob estresse permanente! A soberania e o máximo de autossuficiência possível são as bases que permitem lidar racionalmente com os problemas que só vão escalar daqui para frente! A ordem multipolar sonhada por Lula não tem como existir no mundo das big techs alavancando as inteligências artificiais como ferramentas de poder e do colapso ambiental galopante - que Trump e os neofascismos garantem que ocorrerá!

Que nação defendemos?

Mas as transformações sociais, embora necessitem de modelos e paradigmas de futuro, não se dão por discussões racionais de projetos que animam as vanguardas e a intelligentsia. Elas se constroem a partir das demandas concretas de movimentos sociais de massas que podem ser articuladas por atores políticos em reivindicações de transição para esse futuro que queremos que seja ecossocialista. Praticamente todas as questões de sociedade são hoje questões sócio-ambientais, que precisam ser articuladas com os desafios da tecnodiversidade digital. Elas podem e devem ser encadeadas em um programa de lutas socioambientais e de transição ecossocialista que dê ossatura a uma força social capaz de encadeá-las em um movimento anticapitalista.

A globalização está morta e precisamos enterrar a ideologia do livre-comércio, essa “ideia fora do lugar” em nossa sociedade, e o rentismo que a acompanha; somente assim teremos uma nação soberana. A soberania não tem para nós, entretanto, o sentido tacanho do nacionalismo vigente; a soberania popular é cosmopolita e internacionalista, aberta à solidariedade entre os povos e à integração regional, ela defende a Pátria Grande!

O país precisa recuperar o controle sobre seu processo da formação de ideias e valores, alienado para as big tech estadunidenses, que controlam desde fora os aparatos ideológicos mais decisivos da atualidade. Recuperar o controle disso requer regular e mesmo nacionalizar suas plataformas e redes sociais, requer avançar no controle das tecnologias digitais. Esse é um enfrentamento com o coração da dominação imperialista contemporânea.

Precisamos reindustrializar o país, produzir internamente os bens que podem ser manufaturados aqui e reduzir nossa dependência externa, conformando uma economia voltada para os 99% da população e não para o 1%. Isso não ocorrerá se não nacionalizarmos o sistema financeiro, hoje globalizado, e eliminarmos o rentismo. Precisamos não apenas promover a incorporação soberana das tecnologias digitais, mas também realizar a transição energética, eliminando o fossilismo de nossa estrutura produtiva; as condições tecnológicas para a eletrificação da produção e do transporte estão maduras, se conseguirmos derrubar o lobby fóssil instalado na Petrobrás. Precisamos promover uma reforma agrária que elimine a grande propriedade de terra e o extrativismo capitalista dos recursos naturais do país, garantindo a agricultura familiar produtora de alimentos, as terras indígenas e quilombolas e a preservação da Floresta Amazônica, do Pantanal e dos demais biomas ameaçados pelo agronegócio. Precisamos priorizar a integração econômica com nossos vizinhos sul-americanos e não a exportação de commodities para os países centrais.

Precisamos de uma “nova CLT” construída desde baixo, da mobilização dos sindicatos e organizações populares, que reverta a destruição dos direitos da classe trabalhadora, viabilize o direito ao trabalho digno e formalize uma sociedade de bem-estar e bem viver. Isso não ocorrerá sem o combate ferrenho ao individualismo e à ideologia do empreendedorismo que viceja na informalidade e alimenta o fascismo e todas as formas de darwinismo social.

Precisamos de uma política de segurança pública e não de segurança patrimonial, uma justiça que rompa com o punitivismo e o racismo estrutural e se alicerce nos laços de solidariedade popular, que precisam ser revigorados e estimulados nas periferias das cidades brasileiras. Só conseguiremos isso integrando-as também em sistemas de educação, saúde e assistência para todos, em cidades com qualidade de vida.

Precisamos promover uma cultura que reconheça e valorize o caráter multicultural e multinacional da sociedade brasileira, suas heranças indígenas e africanas, sem rechaçar seus componentes não-coloniais eurasianos - uma formação cultural única no mundo, capaz de inspirar a aceitação da diversidade em todas as suas formas. Precisamos das formas de espiritualidade e das estrutura de valores nela contidos, que podem auxiliar a humanidade a adquirir a sabedoria necessária para enfrentar o colapso ambiental causado pelo capitalismo.

Precisamos garantir as condições para uma democracia política real e para o exercício efetivo das liberdades democráticas. Isso passa por derrotar o neofascismo e a constelação de direita em que ele se move nas eleições de 2026. A eventual vitória do progressismo para os executivos nas próximas eleições é uma condição para barrar retrocessos da situação atual, mas não impulsiona adiante nenhuma das diretrizes fundamentais para o avanço da sociedade brasileira que esboçamos acima. Elas dependem de uma esquerda ecossocialista independente, enraizada nas lutas e capaz de galvanizar as energias vivas da nação por uma alternativa contra o imperialismo ressurgente e o capitalismo fossilista que se recusa a morrer. 

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