Crítica do direito e do Estado soviético

Prefácio do livro recém-lançado de João Guilherme A. de Farias, Crítica do direito e do Estado soviéticos: um estudo sobre Andrei Vychinski . Florianópolis, Enunciado Publicações, 2025.

Davisson Cangussu, A terra é redonda, 16 de setembro de 2025

1.

Neste que é o seu primeiro livro, não é exagero afirmar que João Guilherme Alvares de Farias sobe nas costas de gigantes para produzir uma pesquisa original. Tal originalidade não se dá apenas no fato de que Farias tenha se debruçado sobre um objeto relativamente inédito, a prática teórica e política do eminente jurista soviético Andrei Vychinski. A novidade se encontra especialmente no quadro interpretativo construído pelo autor, que o permitiu chegar a resultados até então pouco explorados, pelo menos quando consideramos as produções acadêmicas realizadas em solo brasileiro.

O título e subtítulo da obra – Crítica do direito e do Estado soviéticos: um estudo sobre Andrei Vychinski – pode despistar o leitor quanto ao objeto sobre o qual João Guilherme A. de Farias vem, de fato, a contribuir. A princípio, poder-se-ia pensar que o estudo se reduz a tratar de Andei Vychinski, personagem que foi notabilizado mais por sua atuação política como procurador-geral da URSS do que por sua produção teórica. É certo que João Guilherme A. de Farias não abre mão de mergulhar em dados da vida de Vychinski, por meio de uma análise crítica das poucas biografias sobre ele existentes, assim como de um rigoroso levantamento documental, em vários idiomas, inclusive o russo.

Porém, o maior mérito do autor está na crítica demolidora que faz de sua concepção de direito e Estado, sempre em confronto com leitura rigorosa dos clássicos do marxismo (especialmente de Marx, Engels e Lênin). Ao final da leitura, não resta pedra sobre pedra de Andrei Vychinski. Tal esforço do autor não para por aí e o que já era por si meritório, ganha novos contornos se levamos em conta outros desdobramentos dos resultados de sua pesquisa.

João Guilherme A. de Farias dá contribuição relevante ao campo de estudos que se convencionou chamar de crítica marxista do direito. De fato, estamos diante de um herdeiro da tradição teórica iniciada por Evgeni Pachukanis, e mais especificamente da leitura pachukaniana introduzida no Brasil pelo professor Márcio Bilharinho Naves. Seguindo os passos dessa linha interpretativa, Farias realiza um rico debate com a corrente do marxismo que se constituiu em torno do filósofo franco-argelino Louis Althusser.

Mais especificamente, dialoga com a leitura que o economista Charles Bettelheim faz da experiência soviética, e com a teoria regional do político elaborada por Nicos Poulantzas em Poder político e classes sociais, construindo um esquema analítico de alta complexidade. Vale mencionar ainda que Farias não se furta de cotejar todas essas elaborações com um meritório esforço de revisitar criticamente os clássicos do marxismo, concentrando-se, com justeza, nas elaborações de Marx, Engels e Lênin. O resultado é não só uma crítica do Estado e do direito tal como formulada por Andrei Vychinski, mas um fino apanhado sobre a problemática marxista da transição.

2.

É por tais motivos que a contribuição de João Guilherme A. de Farias, que não se restringe ao estudo de uma personalidade política e teórica pouco conhecida – Andrei Vychinski –, também se coloca, em certo sentido, para além da “crítica do direito e do estado soviéticos”. Na realidade, estamos diante de uma obra que muito contribui para o debate marxista sobre a relação entre direito e Estado, e o papel que ambos desempenham no interior da problemática da reprodução do modo de produção capitalista e da transição para o socialismo. Vejamos como Farias opera essas determinações teóricas para realizar uma crítica devastadora à teoria do direito e do Estado de Vychinski.

Já mencionamos que o autor realiza sua crítica da experiência soviética inspirando-se em uma posição muito específica, qual seja, aquela herdada pelo economista francês Charles Bettelheim. Para este último, a URSS não logrou superar as relações de produção capitalistas. Ao contrário, a manutenção da lógica de valorização do valor na experiência soviética deu lugar a uma forma particular de capitalismo, o capitalismo de Estado, cuja hegemonia política e econômica se concentrou em torno de uma nova burguesia, a burguesia de Estado, composta por funcionários do aparelho estatal ligados ao PCUS. Para validar tais teses de Charles Bettelheim, o autor faz uma valorosa incursão na análise da formação social e econômica soviética.

João Guilherme A. de Farias também apresenta argumentos convincentes de que a obra política e teórica de Andrei Vychinski foi decisiva para a conformação, no campo jurídico, de verdadeiros entraves para a transição socialista: (i) o fortalecimento do Estado e do Direito no lugar de seu definhamento; (ii) o primado das forças produtivas sobre as relações de produção; (iii) a redução das relações de produção  a relações jurídicas de propriedade, o que impossibilitou a apropriação real dos meios de produção pelos agentes produtivos.

Assim, enquanto a URSS buscava o avanço técnico e científico sob uma relação política e econômica despótica e hierarquizada, as continuidades com o processo de valorização do valor iam se tornando flagrantes: (1) reprodução da divisão sócio-técnica do trabalho, a começar pela divisão entre o trabalho manual e não-manual; (2) a restrição dos espaços decisórios, com a concentração do poder político nas mãos dos agentes burocratas estatais e dos diretores das unidades de produção.

Para dar coesão aos interesses dessa nova burguesia, o Estado permanecia cumprindo o papel de instrumento do exercício da dominação de classe, e o Direito seguindo difundindo a ideologia da igualdade jurídica, mas por meio de uma operação distinta daquela levada a cabo pelo Estado capitalista em sentido estrito, tal como analisada por Nicos Poulantzas.

O Direito burguês, com a instituição da noção de subjetividade jurídica, promove a individualização dos agentes da produção, cujas relações sociais passam a ser regidas por contratos – entre eles o contrato mercantil de compra e venda da força de trabalho – que assumem a aparência de uma relação entre iguais. Esse mecanismo produz um efeito ideológico muito particular, o efeito de isolamento, que dificulta a constituição dos trabalhadores em um coletivo de classe, já que a aparente igualdade jurídica termina por ocultar a natureza de classe da propriedade privada, que ao promover a separação entre proprietários dos meios de produção e produtores diretos, estabelece entre estes uma relação de expropriação e de exploração do sobretrabalho.

Acontece que sob o capitalismo de Estado, desaparece a propriedade privada dos meios de produção, o que provoca a aparência de desaparição da exploração de classe, e portanto, a diluição da igualdade jurídica e seu efeito de isolamento. Porém, como João Guilherme A. de Farias nos permite observar, a operação de ocultamento se desloca para o nível da apropriação real dos meios de produção.

Em outras palavras, a dissolução da propriedade privada dos meios de produção, ao fazer vislumbrar a superação da relação de exploração, tem como efeito ideológico o ocultamento da identificação de quem são os agentes que de fato se apropriam dos meios de produção. Apoiado em Charles Bettelheim, João Guilherme A. de Farias demonstra que, longe de se constituir como coletiva e socializada, a apropriação real dos meios de produção se concentra nas mãos da burguesia de Estado, que passa a controlar não só as unidades produtivas, mas as próprias funções de poder político no interior do aparelho de Estado.

3.

Tal como demonstra o autor ao longo dos capítulos, a obra teórica e a atuação política de Andrei Vychinski se tornou um dos pilares do capitalismo de Estado. No campo teórico, ele foi o principal adversário de Evgeni Pachukanis, cuja perseguição, condenação e execução abriram passagem para a obra vychinskiana. No campo político, foi o mentor do fortalecimento de uma revisão do arcabouço jurídico soviético que permitiu reforçar a hegemonia da burguesia de Estado, incluindo nesta os agentes dos aparelhos repressivos e os agentes econômicos que exerciam a apropriação real e o controle dos meios de produção.

Ou seja, Andrei Vychinski foi figura central ao exercer um duplo papel. Teoricamente, teve papel destacado na deslegitimação da leitura pachukaniana, que apontava para a necessidade de superação do Direito enquanto forma capitalista cuja raiz se vincula à generalização das relações mercantis. Politicamente, exerceu um cargo de confiança de alto escalão no aparelho estatal como procurador-geral da URSS, tendo estado à frente do que ficou conhecido como os Processos de Moscou, e se tornando o arquiteto do reestabelecimento das instituições jurídicas burguesas que asseguravam a dominação de classe da burguesia de Estado sob um regime despótico nas unidades produtivas e autocrático no nível político.

A partir de análise rigorosa da obra de Andrei Vychinski, João Guilherme A. de Farias desvela sua concepção normativista do direito e sua interpretação voluntarista e economicista do marxismo. Tal concepção, segundo o autor, não é mero produto de sua apologia ao stalinismo, mas resulta de uma leitura rasa dos clássicos do marxismo, mais apegada ao recurso do “citologismo” das obras de Marx e Engels do que de leitura teórica rigorosa do materialismo histórico e dialético.

Andrei Vychinski realiza, segundo João Guilherme A. de Farias, uma leitura enviesada do marxismo que se concentra nas obras marxianas de juventude, em que vigorava a problemática do humanismo teórico, e na qual o direito era expresso por meio da categoria de “vontade de classe”, noção ideológica desvinculada das relações sociais de produção, e com a qual Marx romperia em suas obras de maturidade.

Nesse sentido, assim como definia que o socialismo seria um modo de produção, e não um período de transição para o comunismo, Andrei Vychinski fazia a defesa de um “direito socialista”, que segundo ele seria o arcabouço jurídico que serviria de guardião do regime socialista. Segundo João Guilherme A. de Farias, a partir de tais premissas o jurista soviético na realidade contribuiu teórico e politicamente ao reestabelecimento de práticas jurídicas burguesas.

O autor realiza então uma crítica cuidadosa da obra jurídica de Vychinski, expondo suas contradições. Nesse sentido, afirma que a despeito de sua afirmação contrária, os pressupostos teóricos vychinskianos assumem a centralidade da norma para a compreensão do direito. Através de cuidadosa análise documental e bibliográfica, João Guilherme A. de Farias explica porque tal concepção normativista do direito, que se coloca na contramão da leitura de Pachukanis sobre a natureza do fenômeno jurídico, cumpriu uma função fundamental para a edificação do stalinismo – este entendido como uma prática política ideológica assentada no poder político da burguesia de Estado – não sendo exagero afirmar que Vychinski foi um dos principais arquitetos.

Dito de outra forma, a defesa do direito socialista, concebida a partir de perspectiva normativista pela obra teórica e política vychinskiana, terminou por se tornar uma ferramenta fundamental na reprodução do capitalismo de Estado.

O livro de João Guilherme Alvares de Farias é marcado notoriamente não só pela originalidade do objeto, mas pelo rigor teórico demonstrado ao longo de sua pesquisa. Estamos diante de trabalho corajoso que não se furta de enfrentar temas espinhosos, e que o faz ciente de tais dificuldades, mas com a personalidade de quem considera necessário assumir posições.

Davisson Cangussu é professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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