Bendito petróleo?
O que falta para que alguma igreja anuncie que o Brasil é abençoado por Deus por ter imensos poços de petróleo? Ou será que ele já foi e está sendo assim saudado? Isso não seria algo original, já que, em outro contexto, ele já foi anunciado e justificado como uma bênção de Alá!
Ivo Poleto e Joilson Costa, Energia para a vida, 5 de junho de 2025
O que já é bem conhecido é que grandes empresas petroleiras, ponteadas pela Esso e Shell, criaram fundos bilionários para difundir os benefícios do petróleo para a humanidade, apresentando-o como um dos ou o motor do progresso alcançado desde sua descoberta, extração e industrialização. Com sua energia, tornou-se real a possibilidade de um crescimento econômico sem fim, para alegria e deslumbramento do mercado mundial de mercadorias.
Sabe-se mais: há décadas estas empresas tinham conhecimento científico, fruto de pesquisas realizadas por elas, de que a queima dessa fonte de energia já naquela época, e por isso, que o aumento de seu uso nas décadas que se seguiriam, provocaria tal emissão de gases de efeito estufa na atmosfera que, inevitavelmente, elevaria a temperatura e provocaria mudanças climáticas cada vez mais desestabilizadoras das condições de vida em toda a Terra.
Sabe-se mais ainda: que estas empresas, em vez de usar esses conhecimentos para alertar a humanidade e os próprios mercados capitalistas, decidiram ocultá-los e proibir com ameaças a sua publicação; e para completar, coerentemente, sua decisão, constituíram fundos bilionários para difundir exatamente o contrário, não apenas através de campanhas de publicidade, e sim através da contratação de pesquisadores dispostos a dar aparência científica aos seus argumentos e de formadores de opinião pública atuantes em diferentes meios de comunicação de massa, quando não através de alianças e colaboração de empresas de comunicação.
Exemplos de iniciativas neste sentido são as promovidas pelas indústrias da família Koch, que financiam vários think tanks que disseminam ou até promovem campanhas contra as energias renováveis, como a Fundação Heritage e o Instituto Heartland, por exemplo. Estudos da Ação Climática contra a Desinformação mostram que no mundo se gasta cerca de US$ 1 bilhão por ano apenas com publicidade contra a transição energética. Além disso, segundo a ONG InfluenceMap, entre 2020 e 2023, os maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo investiram US$ 4,5 bilhões no chamado “marketing de sustentabilidade enganoso”.
Odiado por suas descobertas científicas sobre o modo de produção capitalista e sobre a ideologia com que se justifica e consegue colocar o Estado a serviço de seus interesses, Karl Marx descreveu os processos através dos quais, em sociedades dominadas pelo sistema capitalista, tudo vira mercadoria, inclusive a honra e as coisas mais sagradas. A honra dos divulgadores de argumentos científicos adequados aos interesses das petroleiras certamente virou mercadoria, com preço proporcional aos efeitos dos serviços prestados na opinião pública e nos tomadores de decisão em todos os âmbitos da estrutura do Estado.
E as coisas mais sagradas, teriam sido também elas transformadas em mercadorias? Assim como acontece com a ciência, em que uma minoria se presta a essa mercantilização do conhecimento, tudo indica estar acontecendo também com crenças e religiões, em que mercadores obscenos criam um deus adequado e submisso aos interesses das empresas petroleiras e unem suas teologias ideologizadas com as sutis mensagens de marketing, elaboradas conscientemente com as características das fake news: mentiras apresentadas com aparência de verdades.
CUIDADO COM A MODERNIZAÇÃO
Nas últimas três décadas, três novidades complicaram o jogo dos defensores do petróleo: a comprovação científica universal de que o petróleo e outras fontes fósseis são a fonte número um das mudanças climáticas já vigentes em todo o planeta; a comprovação de que é possível gerar a energia que a humanidade precisa com fontes não poluentes (do ponto de vista da emissão de GEE no momento da geração), como os ventos e o sol; e a comprovação de que a humanidade teria mais qualidade de vida para todas as pessoas com a diminuição da produção comandada pelo mercado capitalista, e por isso, com redução do uso de energia.
Mas a realidade nua e crua revela como é forte e cruel o poder das empresas e países petroleiros. Conseguiram impedir que em 29 Conferências do Clima os países chegassem ao consenso de enfrentar o óbvio em relação às mudanças climáticas: abandonar o mais rapidamente o uso do petróleo, do gás fóssil e do carvão mineral, substituindo-os por outras fontes menos poluentes. Pelo contrário, as últimas Conferências indicam o aumento assustador do poder dos petroleiros, e estamos diante da iminência de que a 30ª COP confirme a manutenção da falácia do petróleo como impulsionador ainda necessário da própria transição energética[1], do crescimento econômico para enfrentar a miséria e a fome, junto com outras políticas sociais, dos países que não se desenvolveram com o uso do petróleo: basta, para isso, que a adesão do Brasil à OPEP + se consolide por meio da vitória dos defensores de que o país deve e tem o direito de explorar seu petróleo até a última gota, inclusive e especialmente na foz do Amazonas e Zona Equatorial, para gerar recursos para enfrentar a pobreza, garantir direitos sociais e financiar a transição energética justa, segundo a meta anunciada por seu governo.
ALERTAS
É nesse contexto que se deve desenvolver o diálogo sobre as diferentes práticas de produção de energia apresentadas como “transição energética”.
Para começar, cuidado com o que as empresas e países petroleiros, consolidados ou neófitos, como o Brasil, dizem e fazem em relação a isso. É muito provável que estejam na origem e potenciem com seus fundos bilionários o máximo possível de dúvidas em relação ao potencial e aos riscos do uso de fontes como o sol e o vento. Afinal, uma das regras máximas de sucesso na concorrência “natural” do mercado capitalista, é justamente enfraquecer, desmoralizar, derrotar os concorrentes.
Em relação a isso, vale suspeitar que estejam felizes com o avanço das dúvidas entre lideranças de movimentos sociais, e dúvidas que chegam ao extremo de aceitar ou quase aceitar que, ao fim e ao cabo, talvez a energia fotovoltaica e eólica sejam até mais poluentes do que a gerada com fontes fósseis.
Coloquemos os pés no chão. Seriam por acaso iguais iniciativas de produção de energia fotovoltaica em cada telhado de um bairro popular e numa extensa fazenda solar? Antes de tudo, o evidente: a usina solar não produzirá propriamente energia, e sim mais uma mercadoria, que deverá gerar lucros ao ser comercializada, e o povo continuará apenas cliente, pagador; já a energia nos telhados será produzida e consumida por seus proprietários, gerando redução de custos em relação à que comprava das distribuidoras, que são parte da cadeia de produção de lucros, e não de energia como serviço à vida.
Uma segunda diferença: os telhados das casas já existem, e por isso, instalar os painéis neles praticamente não exige nada de infraestrutura; já a extensa fazenda solar deverá montar toda a infraestrutura para a instalação dos painéis, e uma estrutura de metais, sólida e resistente às intempéries.
A terceira diferença é essencial no tempo de colapso ambiental em que vivemos: instalar nos telhados não provoca agressão alguma ao meio ambiente; já instalar numa fazenda solar significa agredir perigosamente o meio ambiente: primeiro, a “limpeza” do terrenos, com derrubada e retirada até das raízes das árvores e arbustos; em seguida, aplicação de produtos químicos que evitem a brotação de qualquer vegetal; abertura de estradas para o transporte dos painéis, com derrubada de mais vegetação e compactação do solo, para segurança dos meios de transporte. Em síntese, a depender da área coberta com uma fazenda solar, é grande a contribuição em relação à desertificação de grandes áreas. Vale lembrar que, a depender das características da área, podem deixar de existir nascentes, córregos e a relação entre o solo e o subsolo, em que se encontram os aquíferos.
Quando uma fazenda solar é implantada num bioma semiárido, como acontece na Caatinga brasileira, todas essas agressões ao meio ambiente se multiplicam e afetam todas as formas de vida. É relativamente fácil dar-se conta, por exemplo, o que significa a diminuição de água doce para quem vive num semiárido. Aliás, vale acrescentar que seja na construção da infraestrutura, seja na limpeza regular dos milhares de painéis, não há comparação entre a produção descentralizada nos telhados do bairro e a das fazendas solares.
Resumindo, uma política a serviço da vida e não dos lucros empresariais só poderia admitir, e ainda assim com todos os cuidados possíveis, a produção de energia solar fotovoltaica em grandes extensões de solo depois de ter dado nova finalidade aos telhados das casas e, complementarmente, a pequenos espaços coletivos. Na verdade, a todos os telhados e coberturas de prédios e a áreas próximas.
E COM OS VENTOS, É DIFERENTE?
Precisamos reconhecer que, até o presente, quase só avançou a produção de energia com uso dos ventos no formato empresarial, centralizado, com a finalidade de aumentar os lucros com a venda da mercadoria energia. O sol está em toda parte, disponível gratuitamente. Os ventos com potencial energético, não, e isso tem levado as empresas a empreenderem diferentes estratégias para ou comprar as áreas em que há corredores de ventos, ou negociar com os proprietários o direito de uso delas. Além disso, a promover a produção de aerogeradores voltados para o máximo de produção, desprezando suas agressões ao ambiente vital, tanto em áreas continentais como em marítimas.
Como ainda não existem iniciativas de produção descentralizada de energia eólica, a não ser em ilhas com governos locais que priorizam o comunitário sobre o individual, vale comparar as diferenças entre a produção fotovoltaica descentralizada nos telhados de um bairro – ou de uma cidade, ou de um país... – e a eólica centralizada, empresarial. Até porque o ponto de partida deveria ser o desenvolvimento de todo o potencial de geração de energia solar, radicalmente descentralizador e democratizante, buscando em outras fontes apenas o que fosse efetivamente necessário a serviço da vida.
Atentos ao que acontece na região do Nordeste brasileiro, não há instalação de empresas de energia eólica sem aumento de conflitos em relação ao direito à terra, para cultivar e/ou para viver socialmente em vilas e cidades. Os aerogeradores, cada vez maiores, exigem espaço amplo, limpo e seguro, livre de qualquer tipo de atividade humana e de vegetação. E a busca de produtividade para aumentar os lucros leva as empresas a instalarem o maior número de aerogeradores possível onde há ventos favoráveis, e para isso, desencadeiam estratégias de envolvimento dos que serão afetados baseadas em propaganda intensa das “vantagens” que a produção dessa energia “limpa” trará para as pessoas, famílias, comunidades, região; em falsas promessas, em pressões pela assinatura de contratos sem a devida clareza e consciência dos compromissos assumidos. Sem consultas livres e com poder de decisão, exigidas pela lei. E contam para isso com o envolvimento e a propaganda enganosa dos governos locais, estaduais e até nacional.
Os corredores de ventos não se encontram apenas em áreas desertificadas ou gravemente degradadas. Mesmo nessas, contudo, e muito mais nas que há vegetação, e especialmente nos altos em que há nascentes de água potável, a implantação dessas empresas significa derrubada da vegetação originária, diminuição de áreas destinadas à produção de alimentos e aumento da desertificação. E como há um ambiente de libertinagem para as empresas, em nome de um falso desenvolvimento, muitos dos aerogeradores interferem na vida de pássaros, animais e seres humanos, em particular jogando sobre os seres vivos ruídos constantes que provocam todo tipo de moléstias, como fala o povo da região.
Enquanto isso acontece com a instalação de empresas que produzem energia para vender em outras regiões, sem nenhum ganho de qualidade de vida do povo local, a destinação dos telhados à energia fotovoltaica dá a eles intrigantes serventias para a vida das famílias, das comunidades, das cidades: diminui o custo de vida; garante energia para todas as finalidades em cada casa, incluindo melhores condições para estudo das crianças e investimento em captação e usos de água; possibilita uso solidário para melhoria da produção, incluindo industrialização de frutas, produção de pães; e talvez o mais importante, aumenta a experiência e consciência de autonomia individual e coletiva.
O QUE PODE E DEVE SER MUDADO
Um dos argumentos sempre referido para colocar em questão a “transição energética” de modo especial com uso da energia solar, é que ela exige e implementa um aumento predatório de mineração, especialmente de minérios raros; junto com esse, outro argumento apresentado é que esse tipo de energia gerará lixo empresarial a perder de vista, de modo especial de baterias.
Vale repetir o que sempre afirmamos: não há energia limpa; todo o processo de geração implica interferência na Natureza, antes, durante e depois de seu uso. A melhor energia é a não produzida, ofertada graciosamente pelo sol, pelos ventos, pelos movimentos das águas. Até a nossa respiração, que nos fornece a energia do oxigênio, se livra, em seguida, do carbono, que tem a ver com a dinâmica dos gases que garantem calor à Terra, mas que, em quantidade relativamente alta, desequilibrada, gerada por outras iniciativas de empresas, provocam o aquecimento global do Planeta e o colapso climático.
Como já sabemos, com ajuda da sabedoria dos povos originários, que não se iludiram com as propostas do crescimento econômico capitalista sem fim, e os dados seguros da ciência a serviço da vida, que o consumo de petróleo e outras fontes fósseis nos levará inevitavelmente ao colapso climático, nos resta o seguinte princípio orientador: buscar a produção de energia menos poluente, menos agressiva à Natureza, menos consumidora de bens naturais. E junto com isso, trabalhar intensamente para que se consiga gastar o mínimo de energia.
Entre as fontes de energia até agora conhecidas e utilizadas, pesquisas sem compromisso com empresas têm concluído que a solar e a eólica são as menos poluidoras. E de modo especial a solar, tem a vantagem de possibilitar que novos conhecimentos e novas tecnologias diminuam a dependência de empresas e de minérios. É o que se comprova com os avanços na direção de as comunidades populares serem capacitadas a montar seus painéis fotovoltaicos; e em relação às baterias, já há menor dependência do lítio, por exemplo, e há caminhos abertos na direção de baterias com materiais biodegradáveis, e assim mesmo, mais eficientes e seguras.
É bom recordarmos que, em nosso país, já contamos com poderosas baterias: são as hidrelétricas, que tornam possível apostar em autossuficiência de energia com uso generalizado da fonte solar contando com a energia hidrelétrica para as horas em que não contamos com sol. Esse casamento tem um potencial ainda não calculado, e isso é fruto certamente do poder corruptor dos senhores da mercadoria energia.
Dito de outra forma, com o uso de mais e mais petróleo, não temos futuro, por mais promessas fake news que os países e empresas petroleiros apresentem. Com o uso do sol, e dos ventos, se regulado com critérios e cuidados em favor da vida, temos possibilidade de pressionar por mudanças que diminuam o que eles ainda têm de negativo, e de estimular pesquisas que revolucionem positivamente seu uso, aumentado sua eficiência e diminuindo efeitos negativos em seu uso.
Finalmente, é claro que, por defendermos um mundo novo possível, constituído por sociedades de bem viver, temos um longo caminho a percorrer para conseguir, por exemplo, que aumente estruturalmente o uso de meios de transporte de massa movidos a energia elétrica – e ela, produzida, preferencialmente, a partir do sol – e diminuir a dependência de automóveis, por mais que sejam movidos a energia elétrica; para conseguir que se deixe de destruir florestas e o uso de produção em monoculturas no modelo do agronegócio, avançando na recriação de florestas e na produção de alimentos em terras democratizadas no modelo da agroecologia e agrofloresta; para conseguir verdadeira recriação de cidades, com direito universal a elas e com novas relações com a Natureza, avançando na direção de serem cidades-esponja na relação com as águas das chuvas e cidades-15-minutos para todo tipo de deslocamento... Em outras palavras, o compromisso de mudar o sistema, não o clima, para que tudo esteja a serviço da vida, e para que, com essa mudança profunda no modo de vida, a humanidade retome relações harmoniosas com a Mãe Terra, e com isso, ela possa reequilibrar as energias climáticas que mantém todas as formas de vida, continua vivo e urgente. O que desejamos é que a transição energética popular, que defendemos, seja uma das práticas que nos ajude a chegar lá.
[1] Neste sentido, é importante lembrarmos que é a indústria de combustíveis fósseis que é fortemente impulsionada pelos governos através dos subsídios que recebem. Segundo o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), no mundo inteiro em 2022 estes subsídios chegaram a cerca de US$ 7 trilhões!
Brasília, 5 de junho de 2025 – Dia Mundial do Meio Ambiente.
Ivo Poletto, Sociólogo e Cientista Social. - Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS) e Joilson Costa, Engenheiro Eletricista. - Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil (FNPE)