Barcarena sob ameaça
No município paraense conhecido por abrigar grandes empreendimentos de mineração e siderurgia, moradores de comunidades tradicionais denunciam há anos os impactos ambientais e sociais provocados pela instalação de empresas mineradoras. A realidade descrita revela um cotidiano de doenças, degradação ambiental e ausência de políticas públicas eficazes para reparar os danos causados
Ismael Machado, Amazônia Real, 16 dejunho de 2025
Barcarena (PA) – Barcarena é um lugar onde a floresta ainda respira, mas com um chiado no peito. É onde os igarapés conversam com os quintais das casas ribeirinhas, e as memórias da terra se embrenham nas falas de quem nunca saiu dali. Mas também é um dos maiores polos industriais do país, um território onde grandes mineradoras fincaram suas estruturas metálicas e seus tanques de rejeitos no chão encharcado da Amazônia paraense.
Há décadas, comunidades tradicionais — indígenas, ribeirinhas, quilombolas — tentam existir ali como quem rema contra uma corrente de lama tóxica. São famílias que vivem da pesca, do extrativismo, do saber oral e da relação íntima com a natureza. E todos os dias enfrentam um inimigo invisível, mas onipresente: a lógica extrativista das grandes corporações que transformam o que é vivo em cifra, o que é ancestral em passivo ambiental.
A metáfora de Davi contra Golias parece quase um clichê, mas em Barcarena ela adquire contornos concretos. De um lado, por exemplo, gigantes como a Hydro Alunorte, com seus dutos, barragens, escritórios climatizados e campanhas de responsabilidade social. Do outro, lideranças comunitárias com seus cadernos de anotações, celulares com pouca bateria e a teimosia de quem sabe que a terra tem mais memória que as atas de reuniões. “Davi”, nesse caso, vem armado com denúncias, mapas de contaminação, histórias de peixe morto e crianças com coceiras após o banho no rio. “Golias” tem assessores, advogados e uma comunicação institucional que sorri com milhões para a COP-30 enquanto vira o rosto para os vazamentos de bauxita.
É uma contradição gritante — e silenciada. Como é possível que empresas que ainda são apontadas como responsáveis por danos socioambientais possam, ao mesmo tempo, financiar painéis sobre sustentabilidade e transição verde em eventos internacionais? A resposta talvez esteja no poder do capital em produzir narrativas. Enquanto comunidades relatam aumento de doenças, insegurança alimentar e perda de territórios, as mineradoras estampam outdoors com imagens de floresta em alta definição e slogans de compromisso com o futuro.
E nessa luta, para ser mais justo, “Davi” precisa ser citado com uma diferença de gênero. São as mulheres as principais fontes de resistência nessa batalha por um futuro que tenha a vida como sinônimo. Mulheres como Maria do Socorro Costa da Silva, ou simplesmente “Socorro do Burajuba”, que se tornou mais que uma liderança: ela é símbolo de resistência, ferida e pulsante, no coração envenenado de Barcarena. Ou como Rosilda Ferreira dos Santos, moradora de Arienga Rio e descendente indígena.
A vida às margens do São Francisco
Dona Socorro, como muitos a chamam, é uma das vozes mais ativas nessa luta. Crescida às margens do rio São Francisco, na comunidade do Caraú, lembra com nostalgia da fartura de peixes, dos banhos de igarapé e do tempo em que as frutas cresciam saudáveis no quintal. “Hoje, as frutas morrem, o cheiro da água é podre, a gente sente na pele”, afirma. Ela relata a existência de laudos científicos da Universidade Federal do Pará e do Instituto Evandro Chagas que apontavam a contaminação do lençol freático, tornando-o impróprio para consumo humano. Esses laudos confirmaram, em diversas ocasiões, a presença de contaminantes perigosos na água consumida pelas comunidades próximas às áreas industriais. Ainda assim, os pedidos de indenização, reparação ambiental e reassentamento enfrentam morosidade judicial e obstáculos processuais.
Militante ambiental desde 2007, Socorro denuncia a falta de consulta e escuta às comunidades nas decisões que envolvem o futuro do território. “Na COP 30, não fomos convidados. Estamos sendo negociados como mercadoria. Só se fala em crédito de carbono, mas ninguém fala da vida que está sendo sacrificada aqui”, denuncia à Amazônia Real.
O cenário descrito por Socorro ecoa na fala de Rosilda Ferreira. Segundo ela, 60 famílias indígenas ocupam um território de mais de 2 mil hectares, onde enfrentam poluição nas águas e aumento de casos de câncer. “Hoje, as pessoas adoecem com câncer, e as frutas dão fungo”. Rosilda lembra ainda na infância quando viu um trator, pela primeira vez, e saiu correndo. Era um maquinário da Eletronorte, que atravessou as terras indígenas do povo de Rosilda. Um aviso do que viria no futuro.
A situação hidrográfica de Barcarena, na visão do professor Fabiano Azevedo Pereira, membro da Associação dos Caboclos Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), é simbólica do processo de destruição ambiental. “Os rios estão se acabando. Nossa água hoje está imprópria.” Ele critica também a ausência de responsabilização: “Se não há condenação, não há culpado. Os Termos de Ajuste de Conduta (TACs) não resolvem. Os rios seguem poluídos.”
A hidrografia de Barcarena é composta pelos rios Arienga, Arapiranga, Barcarena, Itaporanga, Murucupí e Dendê e pelos igarapés Cujarí, Tauá, Japinzinho, Água Boa, Arumandeua, Água Verde, Guajará, Icarau, Turui, Mucuripe, Pau Amarelo Bacuri, São Felipe, Tucumandeua e Maçarapo, assim como o furo do Arrozal, Cafezal, Araquiçá, e Arapari, sendo que a maioria destas águas desaguam na Baía do Marajó.
A luta contra a contaminação
A crise de saúde é um dos temas mais sensíveis. Gisele Ferreira Lima, de 38 anos, moradora do Arienga Rio, foi diagnosticada com câncer de ovário. Após as sessões de quimioterapia em Belém, tomou a decisão de abandonar o uso da água do próprio poço. “Tem cheiro ruim, gosto estranho, dá diarreia”. Uma vizinha de Gisele morreu de câncer de mama cerca de umas semanas atrás. Se há relação entre o mal e a poluição é difícil dizer, mas na pequena comunidade, pelo menos cinco mulheres foram diagnosticadas com algum tipo de câncer nos últimos tempos.
Também morador de Arienga Rio, Marcos Santos, de 31 anos, relata reações alérgicas na pele após banhos no rio ( a pele fica logo grossa e com coceira) e a drástica redução da diversidade de peixes. “O povo era da roça. Agora quase não tem mais nada. Até o cupuaçu vem rachado na árvore.”
A poluição atmosférica também é mencionada. “As folhas das plantas amanhecem pretas. A gente vê a fumaça de noite”, diz Andrelina Pereira, de 64 anos, moradora há 46 anos em Arienga Rio. Ela ressalta que antes isso não acontecia, dos frutos já virem podres das árvores.
Já em Tauá, outra comunidade afetada, Manoel Raimundo Furtado Dias, o Lambreta, de 72 anos, expressa o temor pelo futuro da comunidade centenária: “As empresas querem acabar com o lugar. Estamos em litígio judicial com a Hydro. Tentamos negociar 1.500 hectares dos 3.936 que reivindicamos, mas não houve acordo”.
O conflito pela terra envolve mais de 200 famílias em processo de retomada do território tradicional. “Há alumínio no sangue, água contaminada, peixe morto no igarapé. Na UPA tem muita gente com tosse, gripe, câncer”, acrescenta.
A crise também atinge a produção agrícola e a criação de animais. Gilvan Silva Almeida, de 43 anos, conta que perdeu 60 galinhas e 40 patos. “A produção caiu, as frutas apodrecem antes de amadurecer”, repete a mesma situação vista em outros terrenos.
Apesar das denúncias, a percepção das comunidades é de abandono. “Não temos ambiente político para mudar leis. As licenças ambientais nunca foram finalizadas. Há omissão desde o começo”, afirma Fabiano Azevedo à Amazônia Real. “É o que a gente chama de racismo ambiental: essas populações são escolhidas para serem sacrificadas em nome do desenvolvimento, porque têm menor acesso à justiça, à mídia, aos direitos”, afirma o pesquisador Pedro Loureiro de Bragança, Integrante do Grupo de Pesquisa Estado, Território, Trabalho e Mercados Globalizados (GETTAM), da Universidade Federal do Pará. “Isso não seria praticado em uma área urbana de população branca com algum tipo de influência econômica ou social na região”.
De moradora a ativista
O fato é que desde o início dos anos 2000, uma série de vazamentos industriais transformou Barcarena em um dos maiores símbolos dos conflitos socioambientais na Amazônia. Os casos mais graves, como os desastres ambientais de 2007 e 2018, levaram à contaminação de igarapés e rios por metais pesados e substâncias comprovadamente cancerígenas. “A gente viu os peixes boiando, a água espumando, os filhos passando mal. Eles diziam que era só lama”, relata Maria do Socorro.
A Norsk Hydro, que opera a maior refinaria de alumina das Américas em Barcarena, é frequentemente citada por lideranças locais como símbolo da impunidade ambiental. Em 2018, após fortes chuvas, foi flagrada despejando efluentes não tratados nos igarapés do entorno da planta industrial. Embora tenha sido multada e obrigada a suspender parcialmente as atividades, a empresa retomou a produção poucos meses depois, sob alegação de que “não houve dano ambiental relevante”.
Segundo Fabiano Azevedo, a atuação das mineradoras é respaldada por uma estrutura de poder que vai além da economia. “Elas têm poder político, jurídico e midiático. Controlam narrativas, patrocinam eventos, financiam estudos. Enquanto isso, as comunidades mal conseguem pagar um advogado”. A Cainquiama move diversas ações contra mineradoras em curso na Justiça brasileira e obteve uma vitória internacional: a Corte de Roterdã, nos Países Baixos, aceitou julgar um processo contra a Norsk Hydro por danos ambientais e violações de direitos humanos. A sentença deve ser proferida em setembro próximo. Às vésperas da COP-30.
“A narrativa dominante fala em progresso, empregos, exportações. Mas os impactos para quem vive nas margens desses empreendimentos são ignorados ou desmentidos”, diz Fabiano. É o que se vê em outdoors espalhados por Barcarena. O que se vê é uma guerra de versões onde as comunidades afetadas perdem não só no campo do direito, mas também na arena da opinião pública. Quando aparecem nas notícias, geralmente é em reportagens superficiais ou como obstáculos ao “desenvolvimento”.
Apesar de algumas decisões favoráveis — como a condenação da Hydro ao pagamento de R$ 50 milhões por danos morais coletivos em 2023 —, a morosidade dos processos e o descaso institucional dificultam qualquer sensação real de reparação. No início de 2024, a Justiça Federal proibiu novas remoções em áreas ocupadas por populações tradicionais em Barcarena, após denúncias de que a prefeitura realizava demolições sem consulta prévia — uma violação direta da Convenção 169 da OIT, que garante o direito à consulta livre, prévia e informada em casos de empreendimentos que afetem povos indígenas e tradicionais. Ainda assim, relatos de ameaças, pressões e grilagens seguem sendo registrados.
Violações fundiárias e ambientais
Durante uma visita recente ao município de Barcarena, no nordeste do Pará, o procurador da República Rafael Martins da Silva, do Ministério Público Federal (MPF), apontou uma série de irregularidades envolvendo a ocupação de territórios quilombolas e impactos ambientais causados por grandes empreendimentos na região.
Segundo o procurador, há fortes indícios de que terras tradicionalmente ocupadas por comunidades quilombolas foram doadas ilegalmente a grandes empresas. “É sempre da mesma maneira: acabam tomando territórios sem que haja o devido reconhecimento das comunidades tradicionais”, afirmou.
Na área ambiental, o quadro é igualmente preocupante. Rafael Martins relatou que durante a inspeção foi constatada a contaminação de igarapés utilizados pela população local. “Vimos o consumo de água suja. O fornecimento por caminhão-pipa começou há pouco tempo. Apesar de terem construído um local para descarte de dejetos, não parece haver um tratamento adequado dos resíduos”, denunciou.
Para o procurador, o cenário é de abandono das comunidades, tanto do ponto de vista fundiário quanto ambiental. “Tudo isso é resultado de um processo acumulado, causado por diversos empreendimentos ao longo do tempo. É um ataque constante a essas populações tradicionais”, disse à Amazônia Real. Ele também alertou que até mesmo a especulação imobiliária na região está diretamente relacionada à presença da atividade mineral.
O MPF deverá aprofundar os estudos e investigações sobre os impactos socioambientais e fundiários em Barcarena, uma das áreas mais afetadas pelo avanço desordenado da mineração e da indústria no Pará.
Hydro nega denúncias
A mineradora Hydro nega as denúncias feitas pelas comunidades. Em nota à Amazônia Real, assinada pelo executivo de contas sênior da empresa, Érick Xavier, a mineradora informa que “as atividades da Hydro na região são devidamente licenciadas e as operações são monitoradas e fiscalizadas por autoridades competentes. A Hydro nega as acusações de danos ambientais em Barcarena (PA)”.
Leia a nota na íntegra:
“As atividades da Hydro na região são devidamente licenciadas e as operações são monitoradas e fiscalizadas por autoridades competentes. A Hydro nega as acusações de danos ambientais em Barcarena (PA).
As áreas de operação da Hydro em Barcarena, tiveram uma ampliação de 180% da cobertura vegetal desde a aquisição do terreno, em 1984. Com o crescimento, a área verde na região passou para 3.266 hectares, o equivalente a 4.574 campos de futebol. Já em Paragominas, onde a Hydro opera a mina de bauxita, foram reabilitados 3.467 hectares desde o início de seu programa de reflorestamento, em 2009.
As iniciativas fazem parte do plano de descarbonização da Hydro, que desde 2022 participa de investimentos na ordem de R$ 8,8 bilhões em grandes projetos, sobretudo em iniciativas para tornar sua matriz energética mais sustentável. Os feitos demonstram o compromisso da companhia em alcançar emissões líquidas zero até 2050.
A Hydro está comprometida em ser uma boa vizinha, investindo e apoiando continuamente iniciativas para o desenvolvimento sustentável das comunidades no entorno de suas operações.
A empresa já investiu mais de R$ 489 milhões em iniciativas voltadas ao desenvolvimento sustentável das comunidades de Barcarena, entre elas uma escola de ensino técnico (EETEPA), uma usina de triagem e reciclagem de resíduos urbanos e projetos educacionais e voltados à geração de renda.
Por meio do Fundo Hydro, já foram investidos mais de R$ 60 milhões em cinco anos, dentre os R$ 100 milhões previstos em 10 anos, beneficiando mais de 100 mil pessoas com projetos sociais. O Fundo atua como mecanismo financeiro, através da realização ou apoio a projetos que se propõe a reduzir desigualdades, gerar renda, emprego, promover a cultura de base comunitária e preservar o meio ambiente, contribuindo para comunidades e cidades melhores e mais sustentáveis para todos e todas.
Com o apoio financeiro do Fundo surgiu a Iniciativa Barcarena Sustentável (IBS), um espaço de diálogo que reúne o esforço de vários atores sociais que trabalham juntos para promover e acelerar as mudanças desejadas na região. A IBS é um canal legitimador para orientação do destino e utilização dos recursos disponíveis que serão direcionados para apoiar as iniciativas locais na concretização de investimentos, a partir das demandas observadas e discutidas pela IBS junto aos seus integrantes.
Ainda neste ano, a companhia entregou a ampliação de uma escola e uma quadra poliesportiva em Nova Betel, comunidade quilombola localizada em Tomé-Açu (PA). As obras são itens antecipatórios do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ) e do Estudo de Componente Quilombola (ECQ), iniciativas que visam contribuir para o desenvolvimento sustentável da região.
A Hydro também conta com o Programa Corredor com objetivo de promover a proteção da biodiversidade e criar oportunidades econômicas para as comunidades locais ao longo do mineroduto de 244 quilômetros operado pela Hydro, que atravessa sete municípios paraenses. O projeto tem o potencial de beneficiar cerca de 8% da população do estado.
A Hydro também desenvolveu o Canal Direto, uma plataforma de comunicação com a sociedade. A ferramenta é independente e nela é possível enviar sugestões, dúvidas, denúncias, reclamações ou elogios sobre assuntos relacionados às empresas e suas operações, de forma anônima ou não.
A Hydro entende que o desenvolvimento sustentável na Amazônia exige responsabilidade, colaboração e transparência. Por isso, reforçamos nosso alinhamento com os objetivos da COP-30 e seguimos empenhados em soluções que conciliem progresso econômico, transição energética de baixo carbono e desenvolvimento socioambiental”.
A guerra do Brasil profundo
Barcarena é hoje um espelho do Brasil profundo. Um território onde as riquezas naturais são exportadas, os lucros ficam concentrados, e os impactos recaem sobre os que menos têm. A Amazônia, novamente, é palco de um embate entre dois projetos de futuro: o da exploração e o da existência.
A promessa de progresso, trazida pelas primeiras balsas e engenheiros, deu lugar a um cotidiano de contaminação e adoecimento. Em meio a promessas globais como a COP 30, os moradores de Barcarena continuam lutando por reconhecimento, justiça ambiental e pelo direito de permanecer em seus territórios.
A batalha é desigual, mas não é perdida. Porque, se for feito o retorno ao mito bíblico, o fato é que ‘Davi’ conhece cada curva do igarapé, cada canto de passarinho espantado pelos barulhos de máquinas. E porque a verdade tem raízes. Em Barcarena, a luta não é apenas por justiça ambiental. É pela permanência de uma forma de vida que se recusa a ser esmagada pelo rolo compressor do “desenvolvimento”, ainda que pelo selo da sustentabilidade. É a insistência em existir, apesar da mineração. É a certeza de que nem todo desenvolvimento tem que vir à custa da destruição. É o grito abafado das margens tentando, enfim, se fazer ouvir no centro.