A defesa da comida: uma luta política
José Correa Leite
Conversando com jovens numa mesa de um bar, o tema da comida entrou na roda. Enquanto eu dava importância à questão, valorizando consumirmos alimentos de qualidade de forma saudável, percebi que a maioria considerava isto um problema muito secundário, quase uma firula. As justificativas se acumulavam: “eu como no bandejão”, “comida boa é cara” e “trabalhosa de fazer”, “é difícil de achar”, “não tenho tempo”, etc. Nenhuma percepção política e nem mesmo crítica do problema.
Foi uma surpresa para mim. Tod@s naquela mesa tinham tido, então, contato regular com os artigos da Esther Vivas alertando para o lugar central que este tema deve ocupar na política progressista. E tod@s ali concordariam, imediatamente, com a importância de apoiarmos a luta contra os transgênicos e defendermos uma reforma agrária que amplie a agricultura camponesa no Brasil. Mas qual o sentido disso se não mudarmos a forma como nos alimentamos e, de maneira mais geral, se não mudarmos os estilos de vida e a alimentação hoje predominantes nas grandes cidades?
Retomo essa lembrança de uma década atrás para argumentar, agora em um contexto de próximidade do colapso ambiental, porque a nossa agenda política deve incorporar o problema da alimentação, mas não só como combate à fome (que deve ser feito e está ligado à redistribuição da renda e à consciência cidadã) e como combate ao agronegócio (coração da classe dominante brasileira e núcleo da reação política no país), como também incorporando o tipo de alimentação. Vou, para isso, recuperar alguns argumentos do livro de Michael Pollan, Em defesa da comida: um manifesto (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008).
Alimentação: um problema de saúde pública
Reivindicamos mais verbas para a saúde, mas sabemos que boa parte dos problemas de saúde é o resultado de uma alimentação industrializada – e de um modo de vida sedentário - que vai transformar crianças saudáveis em adolescentes precocemente obesos, que serão vítimas de diabetes, hipertensão arterial, cânceres ou, mesmo, de obesidade mórbida. Hoje mais brasileiros sofrem com a obesidade do que com a falta de comida. Foi o resultado da inserção de mais de 50 milhões de pessoas no mercado como consumidores no mundo da publicidade e das redes digitais, sem práticas que permitam discutir o que consumir e questionar a ditadura da alimentação industrializada!
Grande parte dos acessos aos serviços de saúde são hoje consequência destas doenças! Como outros são consequência da falta de saneamento. E nenhuma política de esquerda deixa de defender investimentos em saneamento... É razoável deixar que as pessoas detonem suas saúdes, para depois gastar dinheiro tentando minimizar os danos? Não seria melhor tentar evitar os problemas na origem, disputando a adesão para estilos de vida e alimentação mais saudáveis? Todos reconhecemos a bactéria que causa o cólera e o vírus que causa o ébola como fontes de doenças, mas temos muita dificuldade de reconhecer que diabetes, hipertensão ou obesidade são problemas de saúde muito mais presentes em nossa sociedade do que estes micróbios. Embora a fome não tenha sido totalmente eliminada, não vivemos mais no Brasil de Josué de Castro.
A maioria das pessoas não percebem que a forma como nos alimentamos não é nossa escolha, mas reflete o peso da indústria alimentícia na definição dos hábitos alimentares, o lugar danoso do fast food na sociedade, o papel destrutivo que o agronegócio e sua agricultura industrial tem no mundo contemporâneo – e de muita propaganda para crianças. No Brasil ainda não chegamos a situação surreal dos Estados Unidos, onde o Congresso aprovou em 2011, a partir do lobby da indústria alimentícia, uma lei pela qual uma pizza com duas colheres ketchup seria considerada um vegetal, para ser servida na merenda escolar do país (que tiver interesse na polêmica, basta googlar “Ketchup as a vegetable”). É exatamente para não chegarmos a isso que precisamos estabelecer a norma de que o poder público deve e precisa exercer um forte papel regulador contendo milhares de situações absurdas que vemos toda vez que examinamos o rótulo na embalagem de “alimentos” industrializados.
A ideologia nutricionista
Michael Pollan coloca o problema grave que vivemos na primeira frase de seu livro: “Por uma alimentação saudável. Coma comida. Não em excesso. Principalmente vegetais”. E completa: “Comer um pouco de carne não mata ninguém, embora talvez seja melhor encará-la como acompanhamento do que como prato principal. E é melhor você comer alimentos frescos e integrais do que industrializados. É isso que quero dizer com a recomendação ‘coma comida’, o que não é tão simples como parece. Pois, enquanto antigamente só se podia comer comida, hoje há milhares de outras substâncias comestíveis com aparência de comida no supermercado” (p.9).
Diz Pollan que “praticamente tudo que consumimos hoje não é mais, em sentido estrito, comida, e a forma como estamos consumindo estas coisas – no carro, na frente da tevê e, cada vez mais, sozinhos – não é realmente comer, pelo menos no sentido em que a civilização entende o termo” (p. 15). Brillat-Savarin, um gastrônomo do século XVIII distinguia entre alimentar-se, que é o que fazem os animais movidos por instinto, e comer ou fazer refeições, uma prática tanto biológica como cultural.
É um sintoma de uma crise de civilização que as pessoas tenham dificuldade de responder a esta pergunta simples, “O que devemos nós, animais onívoros, comer?” Em toda a história humana as pessoas souberam o que comer. A resposta, no âmbito das diferentes culturas, passava de mães para filhos. Mas o problema é que a mãe perdeu a parada para cientistas e marqueteiros da alimentação no curso do que Pollan chama de “A era do nutricionismo”.
A indústria alimentícia gastava nos Estados Unidos, há quase duas décadas, Pollan nos informa, 32 bilhões de dólares por ano em publicidade. E a ciência da nutrição ainda se parece mais com uma pseudociência, indo e voltando no que considera nutrientes prejudiciais à saúde. “A maioria dos conselhos nutricionais que recebemos ao longo dos últimos cinquenta anos na verdade nos tornou menos saudáveis e consideravelmente mais gordos” (p.15).
A ideologia do nutricionismo convenceu as pessoas de três mitos: “o importante não é o alimento, mas sim o “nutriente’; 2) por ser invisível e incompreensível para todo mundo, menos para os cientistas, precisamos da ajuda de especialistas para decidir o que comer; 3) o objetivo da alimentação é promover um conceito estrito de saúde física.
Na verdade, ela é o rechaço da culinária e da arte da gastronomia. As diferentes culturas humanas contruiram suas respostas às necessidades “nutricionais” da humanidade construindo diferentes culinárias, que equilibravam as plantas e carnes disponíveis em seus territórios para fornecer uma alimentação saudável para suas populações. Há uma culinária japonesa e uma chinesa, uma francesa e uma libanesa, uma italiana e uma espanhola, uma tailandesa e uma indiana, uma portuguesa e uma espanhola, uma mexicana e uma peruana. E, mesmo no Brasil, a cozinha amazônica é diferente da mineira, a baiana da gaúcha. Podemos nos questionar sobre os ênfases em determinados alimentos, mas há sempre motivos históricos e culturais para isso, ligados às necessidades de suas populações. E, dando o tempo para a evolução, cada população maximiza o uso dos alimentos disponíveis em seus territórios, inclusive tomando de empréstimos novos componentes.
Uma das maiores revoluções na história humana foi a “troca colombiana” de plantas e animais, quando as navegações europeias levaram os alimentos das Américas para a Eurásia e vice-versa, estabelecendo a enorme diversidade alimentar do mundo moderno. Plantas como o milho, a batata e a mandioca foram levados para a Europa, Ásia e África e se tornaram a base da alimentação de muitos países nesses continentes. Ao memo tempo, plantas como o arroz, o café, a cana-de-açucar e a banana e animais como a galinha foram introduzidos nas Américas. Ao mesmo tempo, a diversidade cultural preservou uma uma diversidade gastronômica. É essa diversidade que está sendo destruída pela indústria alimentícia e sua ideologia nutricionista.
Os alimentos ultraprocessados
Voltaremos à análise de Michael Pollan adiante, mas vale a pena introduzirmos agora uma contribuição brasileira ao problema; afinal, três dos dez pesquisadores brasileiros mais citados internacionalmente são da área de nutrição (e outros três de meio ambiente!).O Ministério da Saúde introduziu, em 2006, o Guia Alimentar para a População Brasileira, que apresentou as primeiras diretrizes alimentares oficiais para a nossa população. Ele foi coordenado pelo epidemiologista nutricional Carlos Augusto Monteiro, professor da USP e coordenador do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) da Faculdade de Saúde Pública. Monteiro publicou depois, em 2009, um artigo que fez época: “Nutrition and health". The issue is not food nor nutrients, so much as processing”, em tradução livre: “Nutrição e saúde. O problema não é a comida, nem os nutrientes, mas o processamento”.
Carlos Monteiro é considerado o “pai” do conceito de alimento ultraprocessado, desenvolvendo, com outra pesquisadora da USP, Renata Bertazzi Levy, uma classificação chamada Nova, que identifica os alimentos de acordo com seu grau de processamento. Segundo eles, os alimentos podem ser classificados em quatro níveis: 1) In natura ou minimamente processados; 2) Ingredientes culinários processados; 3) Alimentos processados; e 4) Alimentos ultraprocessados. A segunda edição, de 2014, do Guia Alimentar está disponível aqui. E o Idec tem, na rubrica Alimentação de seu site, muitas matérias úteis sobre o tema.
É importante lembrar que essa compreensão não avançou sem resistências. Em 2020, durante o governo Bolsonaro, o Ministério da Agricultura criticou o Guia Alimentar e pediu o fim da classificação que desaconselha ultraprocessados, em um evidente lobby da indústria alimentícia.
Substâncias que parecem comida e doenças crônicas
Encontramos, nos supermercados, milhares de substâncias com aparência de comida mas que são bombas de açúcares, gordura e muito sal: dos fast foods às barras de cereais, das bebidas energéticas à sorvetes e doces altamente industrializadas. Mesmo aqueles que alegam não terem gordura trans ou colesterol, apresentam altas doses de corantes, conservantes, glucose de milho e outras substâncias artificiais. Além de não fazerem bem ao organismo, elas não alimentam.
Como diz Pollan, evite comidas com ingredientes químicos cujos nomes nós não conseguimos pronunciar e que são colocados para a comida não apodrecer. “Se nem fungos quiseram comer, significa que não é comida”!
Uma dieta ocidental foi desenvolvida pela indústria alimentícia e expandida pela globalização para todo o planeta, baseada em carboidratos refinados, como farinha branca, açúcar, e em óleo vegetal refinado, normalmente extraído da palma cujo cultivo está devastando as florestas tropicais. Pollan apresenta a epidemia de doenças crônicas da atualidade, como diabetes, AVC, câncer, doenças cardiovasculares, obesidade…, como resultado dessa dieta.
Em defesa da comida
Frente a isso, temos que voltar à alimentação tradicional, orgânica e saudável dos nossos avós e a valorizar o ato social e cultural de comer. Michael Pollan dá dicas de como qualquer um pode se alimentar com comida de verdade.
1. Não coma nada que sua avó reconhecesse como comida.
2. Evite comidas contendo ingredientes cujos nomes você não possa pronunciar.
3. Não coma nada que não possa um dia apodrecer.
4. Evite produtos alimentícios que alegam vantagens para sua saúde.
5. Dispense os corredores centrais dos supermercados e prefira comprar nas prateleiras
periféricas.
6. Melhor ainda: compre comida em outros lugares, como feiras livres ou mercadinhos.
7. Pague mais, coma menos.
8. Coma uma variedade maior de alimentos.
9. Prefira produtos provenientes de animais que pastam.
10. Cozinhe e, se puder, plante alguns itens de seu cardápio.
11. Prepare suas refeições e coma apenas à mesa.
12. Coma com ponderação, acompanhado, quando possível, e sempre com prazer.
Michael Pollan não demanda a adesão ao veganismo ou sequer ao vegetarianismo, embora nos recorde que uma dieta rica em carnes não é saudável e o consumo desses alimentos deve ser feito com moderação. Lembremos que no Brasil a pecuária bovina é a principal causa da devastação da Amazônia e os criadores de gado se recusam a permitir o rastreamento de seus rebanhos - ou seja, boa parte da carne vem de áreas de florestas devastadas por eles. Suas recomendações são, evidentemente, práticas do bem viver, às quais todos devemos aderir. Segui-las exige tempo e energia, mas no Brasil a existência das redes de feiras agroecológicas do MST constitui um importante ponto de apoio para isso. Mas elas exigem também um empenho social e ideológico e uma luta política contra a indústria alimentícia e suas máquinas de propaganda, que querem eliminar a comida e o ritual da refeição e transformar a alimentação na ingestão de produtos químicos.