A bolha da IA e a economia dos EUA

A bolha da IA infla sobre uma base contraditória: seu próprio investimento sustenta o PIB que, por sua vez, justifica sua valorização, numa dança financeira que pode desmoronar com o primeiro sinal de desilusão

Michael Roberts, A terra é redonda, 16 de outubro de 2025

O mercado de ações dos EUA continua a atingir novos recordes (vide gráfico); o preço do bitcoin também está alcançando níveis máximos e o preço do ouro disparou em relação aos seus valores históricos.

Os investidores em ativos financeiros (bancos, seguradoras, fundos de pensão, fundos de hedge, etc.) estão extremamente otimistas; eis que  confiam no desempenho dos mercados financeiros. Veja-se o que disse o presidente da Rockefeller International, Ruchir Sharma, no Financial Times: “Apesar das crescentes ameaças à economia dos EUA – de altas tarifas ao colapso da imigração, erosão das instituições, aumento da dívida e inflação persistente – grandes empresas e investidores parecem imperturbáveis. Eles estão cada vez mais confiantes de que a inteligência artificial é uma força tão grande que pode enfrentar e arrostar todos os desafios.”

As empresas de IA foram responsáveis por 80% dos ganhos observados nos valores das ações nos EUA até agora, em 2025. Isso está ajudando a financiar e a impulsionar o crescimento dos EUA, pois uma mercado de ações em alta devido aos investimentos em IA atrai recursos de todo o mundo.  Os estrangeiros despejaram um recorde de US$ 290 bilhões em ações dos EUA no segundo trimestre de 2025; agora, eles possuem cerca de 30% desse mercado – a maior participação na história após o fim da II Guerra Mundial. Como comenta Sharma, os EUA estão vivendo agora de “uma grande aposta na IA”.

A “bolha” de investimento em IA (medida como o preço das ações em relação ao “valor contábil” de uma empresa) é 17 vezes o tamanho do frenesi das empresas ponto-com ocorrido no ano 2000; além disso, mostra-se quatro vezes maior do que a bolha das hipotecas subprime de 2007. A relação entre o valor do mercado de ações dos EUA e o PIB (também conhecido como “Indicador Buffett”) subiu para um novo recorde de 217%, mais de 2 desvios padrão acima da linha de tendência de longo prazo.

E não são apenas os preços das ações corporativas que estão crescendo.  Há uma enorme demanda para comprar a dívida das corporações americanas, particularmente das obrigações das grandes empresas de tecnologia e de inteligência artificial, ou seja, daquelas denominadas como as sete magníficas.  O ‘spread’ dos juros pagos em títulos corporativos em comparação com títulos do governo, que são considerados ‘seguros’, caiu para menos de 1% ponto.

Essas apostas no sucesso futuro da IA cobrem todas as empresas que a estão implementando; mas há outra maneira de dizer a mesma coisa: todos os ovos estão na mesma cesta de IA.  Os investidores estão apostando que a inteligência artificial acabará gerando enormes retornos em relação aos valores que investiram em ações e títulos. Pois, ele acreditam que a produtividade do trabalho vai aumentar drasticamente e, com ela, a lucratividade das empresas por causa da  IA.  Matt Eagan, gerente de portfólio da Loomis Sayles, disse que os preços altíssimos dos ativos sugerem que os investidores estão apostando em “ganhos de produtividade do tipo que nunca dantes vistos”. Diante disso, ele acrescentou: “contudo, essa é a primeira coisa que pode dar errado”.

Até agora, há poucos sinais de que o investimento em IA esteja proporcionando grandes aumentos de produtividade.  Mas, ironicamente, o enorme investimento em centros de dados e em infraestrutura de IA está sustentando a economia dos EUA nesse meio tempo. Quase 40% do crescimento real do PIB dos EUA no último trimestre foi impulsionado pela despesa de capital em tecnologia e a maior parte dele ocorreu em investimentos relacionados à IA.

A infraestrutura de IA recebeu investimentos de US$ 400 bilhões desde 2022. Uma parte notável desses gastos esteve focada em equipamentos de processamento de informações, os quais aumentaram a uma taxa anualizada de 39% no primeiro semestre de 2025. O economista de Harvard, Jason Furman, comentou que o investimento em equipamentos e softwares de processamento de informações equivale a 4% do PIB dos EUA; no entanto, ele foi responsável por 92% do crescimento do PIB no primeiro semestre de 2025. Se se exclui essas categorias, a economia dos EUA teria crescido a uma taxa anual de apenas 0,1% no primeiro semestre.

Portanto, sem os gastos com tecnologia, os EUA estariam perto ou em recessão este ano. O que isso mostra é o outro lado da história: ou seja, a estagnação do resto da economia dos EUA.  A indústria de transformação dos EUA está em recessão há mais de dois anos.

E agora há sinais de que o setor de serviços em geral também está com problemas. O índice dos gerentes de compra (conhecido como PMI) relativo aos serviços do ISM (um instituto de pesquisa econômica) caiu de 52 em agosto para 50 em setembro de 2025. Ficou  bem abaixo das previsões, sinalizando que o setor de serviços estagnou.

O mercado de trabalho dos EUA também parece fraco. O emprego cresceu a uma taxa anualizada de apenas 0,5% nos três meses até julho, de acordo com dados oficiais. Isso está bem abaixo das taxas observadas em 2024. “Estamos diante de uma economia de baixa contratação e baixo crescimento”, disse o presidente do Federal Reserve, Jay Powell, no mês passado.

Os jovens trabalhadores nos EUA estão sendo desproporcionalmente afetados pela atual crise econômica. O desemprego juvenil nos EUA aumentou de 6,6% para 10,5% desde abril de 2023. O crescimento salarial dos jovens trabalhadores diminuiu drasticamente. As vagas de emprego para iniciantes na carreira caíram mais de 30%. Trabalhadores em início de carreira em ocupações expostas à IA experimentaram um declínio relativo de 13% no emprego.

Os únicos americanos que gastam muito dinheiro são os que estão na faixa dos 20% mais ricos.  Essas famílias estão se saindo muito bem, mas os que estão entre os 3,3% mais ricos da distribuição estão se saindo ainda melhor. O resto está apertando os cintos e deixando de elevar as suas compras.

As vendas no varejo (após a remoção da inflação de preços) estão estáveis há mais de quatro anos.

A inflação consumiu o poder de compra da maioria dos americanos.  A taxa média de inflação permanece em cerca de 3% ao ano em números oficiais, bem acima da meta de 2% ao ano estabelecida pelo Federal Reserve.  E essa taxa média esconde grande parte do impacto real nos padrões de vida e nos aumentos salariais reais.  Os preços dos alimentos e da energia estão subindo muito mais rápido.  A eletricidade agora custa 40% a mais do que há cinco anos.

De fato, os preços da eletricidade estão subindo ainda mais devido as demandas aceleradas dos centros de dados de IA.  A OpenAI usa tanta eletricidade quanto a cidade de Nova York e San Diego juntas no pico da intensa onda de calor de 2024. Ou tanto quanto a demanda total de eletricidade da Suíça e de Portugal juntas. Esse quantum de eletricidade pode atender cerca de 20 milhões de pessoas. O Google cancelou recentemente um data center planejado de US $ 1 bilhão em Indiana depois que os moradores protestaram; argumentaram que o centro de dados “aumentaria os preços da eletricidade” e “sugaria incontáveis galões de água em uma área já atormentada pela seca”.

E depois há o impacto do imposto tarifário de Trump sobre as importações de mercadorias.  Apesar das negações do governo Trump, os preços das importações estão subindo e começando a se refletir nos preços dos bens nos mercados internos dos EUA (e não apenas em energia e alimentos).

Não são até agora as empresas estrangeiras em conjunto que estão absorvendo os custos das tarifas. Na guerra comercial de 2018, os preços de importação foram pagos principalmente pelas empresas estrangeiras.  Desta vez, os preços de importação não caíram. São os importadores americanos – e não os exportadores estrangeiros – que estão pagando as tarifas, mas eles estão repassando esses aumentos de preços para os consumidores. Como disse o presidente do Fed, “as tarifas estão sendo pagas principalmente pelas empresas que ficam entre os exportadores e os consumidores… Todas essas empresas e entidades intermediárias estão dizendo que têm toda a intenção de passar para a frente esses aumentos de preços para não entrar em prejuízo”.

Importadores, atacadistas e varejistas estão enfrentando custos mais altos; eles esperam poder aumentar os preços de varejo em grau suficiente para garantir as próprias margens de lucro. O problema é que os consumidores já estão esgotados. Os orçamentos familiares estão sob pressão do aumento da dívida, inadimplência e salários que não se elevaram o suficiente para alcançar os aumentos dos preços. Tentar repassar os custos tarifários nesse ambiente reduziria ainda mais a demanda.

As empresas sabem disso e é por isso que muitas delas estão absorvendo por enquanto os custos. Mas quando fazem isso, as suas margens de lucro encolhem; fica, assim, mais difícil que possam sustentar as operações sem fazer cortes em outros lugares. Quando a lucratividade é pressionada, a administração tem poucas opções. Elas não podem controlar as tarifas e não podem forçar os consumidores a gastarem mais. O que elas podem controlar são as despesas. O corte começa em geral com a desaceleração das contratações e com a redução dos planos de crescimento, depois ele segue para o corte de horas de trabalho e de horas extras. Se as tarifas permanecerem em vigor e os consumidores permanecerem apertados, os efeitos cascata se espalharão ainda mais no mercado de trabalho.

Depois, há os gastos do governo.  O atual fechamento de departamentos governamentais imposto pelo Congresso deu ao governo Trump mais uma oportunidade de cortar o emprego do governo federal em uma tentativa vã de reduzir o déficit orçamentário e o crescimento da dívida do governo.  É uma tentativa vã porque a alegação de Trump de que o aumento das receitas tarifárias resolverá o problema não é crível.  As receitas tarifárias desde janeiro de 2025 ainda são apenas 2,4% da receita federal total projetada no ano fiscal de 2025 de US$ 5,2 trilhões.

E quanto à alegação de que as tarifas acabariam por corrigir o déficit comercial dos EUA com o resto do mundo, isso também se mostrou uma falácia total, até agora. Nos primeiros sete meses de 2024, o déficit foi de US$ 500 bilhões; Nos primeiros sete meses de 2025, foi de US$ 654 bilhões, um aumento de 31% em relação ao ano anterior; ou seja, atingiu um novo recorde.

Ao contrário das alegações de Trump, os aumentos de tarifas sobre as importações farão pouco para “tornar a América grande novamente” na produção industrial. Robert Lawrence, da Kennedy School de Harvard, avalia que “fechar o déficit comercial mal aumentaria a parcela do emprego na indústria dos EUA”. O valor adicionado líquido relativo ao déficit comercial de bens industriais, em 2024, foi de 21,5% da produção. Se fosse eliminado, aumentaria no mesmo valor a produção interna nos EUA.

Quanto emprego isso produziria? Equivaleria a 2,8 milhões de empregos, o que representaria um aumento de apenas 1,7 pontos percentuais na participação da indústria no emprego nos EUA; esse valor chegaria a 9,7% do total dos empregos atualmente existentes. Mas a parcela de trabalhadores da produção na manufatura dos EUA, neste caso, é de apenas 4,7%, os outros 5 pontos percentuais consistindo em gerentes, contadores, engenheiros, motoristas, vendedores e assim por diante. O aumento do emprego dos trabalhadores da produção seria de apenas 1,3 milhão, ou apenas 0,9% do emprego nos EUA.

A economia dos EUA ainda não está de joelhos e em recessão, pois o investimento empresarial ainda está aumentando, ainda que em desaceleração.

Os lucros corporativos ainda estão crescendo. O lucro operacional das empresas do S&P 500 (excluindo finanças) cresceu 9% no trimestre mais recente, em comparação com o ano anterior. As receitas aumentaram 7% (antes da inflação).  Mas isso vale apenas para as principais empresas lideradas pelas sete magnificas. No geral, o setor corporativo não financeiro dos EUA está começando a ver o crescimento do lucro desaparecer.

O Fed deve cortar um pouco mais sua taxa de juros nos próximos seis meses, reduzindo o custo dos empréstimos para aqueles que querem especular investindo em ativos financeiros, ou seja, em capital fictício. Portanto, a recessão ainda não surgiu. Mas o nível de atividade econômica está dependendo do boom da IA. Na verdade, esse nível só vai se sustentar se esse boom for capaz de proporcionar um aumento significativo de produtividade e de lucratividade.  Se os retornos dos investimentos maciços em IA forem baixos, isso poderá causar uma séria correção no mercado de ações.

É verdade que as grandes empresas de tecnologia financiaram principalmente seus investimentos em IA com o fluxo de caixa. Mas as enormes reservas de caixa das sete magníficas estão sendo drenadas e as empresas de IA estão cada vez mais se voltando para a emissão de ações e dívidas.

As empresas de IA agora estão assinando contratos entre si para gerar receitas.  Esta é uma forma de dança das cadeiras praticada pelas finanças.

Portanto, um colapso financeiro está na ordem do dia. Mas quando as bolhas de investimento financeiro estouram, a nova tecnologia não desaparece. Em vez disso, ela pode ser adquirida a preços mais baixos por novos investidores; o economista austríaco Joseph Schumpeter chamou esse processo de “destruição criativa”. A propósito, esse é exatamente o argumento dos vencedores deste ano do chamado prêmio Nobel de economia (na verdade prêmio Risk Bank), Philippe Aghion e Peter Howitt. Booms e quedas são inevitáveis, mas necessários para impulsionar a inovação.

Portanto, a tecnologia de IA pode eventualmente proporcionar maior crescimento de produtividade se conseguir eliminar suficientemente o volume do trabalho humano empregado. Mas isso só pode se materializar após um colapso financeiro, com a consequente queda da atividade econômica.  E se a economia dos EUA mergulhar, o mesmo acontecerá com o resto das principais economias do mundo.  O tempo não está do lado das sete magnificas.  De fato, a adoção da tecnologia de IA pelas empresas permanece baixa e está caindo até mesmo entre as empresas maiores.

Enquanto isso, os gastos com aumento de capacidade para gerar resultados em IA continuam aumentando; os investidores continuam pondo dinheiro, muito dinheiro, na compra de ações e dívidas de empresas de IA.  O desempenho da economia norte-americana depende, pois, desta grande aposta.   

Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de Capitalism in the 21st Century: Through the Prism of Value (Pluto Press). Tradução de Eleutério F. S. Prado. Publicado originalmente em The next recession blog.

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