O fascismo é uma minhoca e vem pelas redes sociais
Em 1978 Sérgio Godinho dizia, na sua canção Lá isso é, que “o fascismo é uma minhoca, que se infiltra na maçã, ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã”. Queria alertar-nos para o facto de o fascismo tomar distintas formas e concretizar-se pelos mais diversos meios, uns mais evidentes e outros mais dissimulados. O que Sérgio Godinho não podia imaginar em 1978 era o instrumento que no século seguinte as forças adeptas das ideias fascistas iriam utilizar para se instalar na sociedade: as redes sociais.
Paulo Antunes Ferreira, Anticapitalista 81, julho de 2025
Nas últimas décadas as redes sociais transformaram profundamente o modo de relacionamento das pessoas com a política, alterando a forma de disseminação das ideologias e de disputa do poder. Embora outrora celebradas como ferramentas democratizantes, plataformas como Facebook, YouTube, Twitter/X, TikTok ou Instagram tornaram-se terreno fértil para a difusão de ideologias fascistas e autoritárias.
Muitos questionam se a ideologia e cultura partilhadas atualmente pelas forças de extrema-direita podem ou devem ser consideradas fascismo. Para o que nos interessa tratar neste texto a definição de Umberto Eco é particularmente útil. Para ele o fascismo é um modus operandi que pode ser encontrado em diferentes formas de governo, sendo uma das suas características definidoras a rejeição do pensamento crítico que impede questionamentos e sustenta uma mundovisão baseada na emoção, no dogma e na obediência cega, não tolerando discordância; apela a sentimentos irracionais como medo, ódio e nostalgia de um passado idealizado; simplifica todas as explicações para os fenómenos sociais através de slogans, mitos e teorias da conspiração. Para além disto, Eco defende que os fascistas exploram preconceitos das classes médias em relação a grupos minoritários, transformando-os em bodes expiatórios e criando um sentimento de identidade de grupo a partir de um inimigo comum. Desse modo, ao eleger um grupo social como inimigo a ser combatido, o fascismo opera uma lógica divisora, que enfraquece as classes populares de modo a melhor as controlar.
Não é difícil encontrar na descrição acima um retrato da lógica com que a extrema-direita tem atuado, nas últimas décadas, de modo a conquistar a adesão eleitoral de partes crescentes da população, um pouco por todo o mundo. O fascismo contemporâneo não é uma cópia exata das ideologias que ascenderam ao poder nos anos 1930, mas partilha traços fundamentais como o ultranacionalismo, a rejeição das normas democráticas, do pensamento crítico e da separação de poderes (nomeadamente de um poder judicial independente), a culpabilização de minorias ou a glorificação de líderes fortes. Há quem o designe por “fascismo suave”.
Redes sociais e fascismo
O que mais diferencia o presente é o meio: o fascismo adaptou-se ao ecossistema digital, usando a estética, a linguagem e as ferramentas de envolvimento das redes sociais para ganhar tração. Manifesta-se agora através de memes, da cultura de influencers e da amplificação algorítmica e já não através de fardas e comícios partidários como o fascismo da primeira metade do século XX. As redes sociais, plataformas concebidas para promover o relacionamento digital, a autoexpressão e a partilha de informação, tornaram-se instrumentos quer de promoção de ideologias autoritárias, que prosperam com a divisão, o medo e a manipulação da perceção pública, quer de construção dessa mesma cultura do medo e de divisão através de estratégias de radicalização e discursos de ódio com conteúdos misóginos, racistas e conspiracionistas. Em vez de jornais partidários ou emissões de rádio, temos agora desabafos no YouTube, fóruns no Reddit e vídeos no Instagram a veicular ideias autoritárias em formatos apelativos.
Neste processo de erosão das normas democráticas e consolidação de uma cultura fascista através das redes sociais dois aspetos foram essenciais: um de natureza tecnológica – os mecanismos operacionais das redes sociais (algoritmos, políticas de moderação de conteúdo e modelos de envolvimento do utilizador); e o outro de natureza social – a propriedade das redes por um conjunto de tecno-oligarcas.
Algoritmos e amplificação do extremismo
As redes sociais operam com algoritmos concebidos para maximizar o envolvimento dos utilizadores. Conteúdos que provocam reações emocionais intensas — raiva, medo, indignação — tendem a ter melhor desempenho. O algoritmo não se preocupa com a veracidade ou o impacto nocivo do conteúdo — interessa-se apenas por cliques, partilhas e tempo de visualização. Isto gera um círculo vicioso em que os utilizadores são gradualmente expostos a conteúdos mais extremos quanto mais interagem. Estudos da Mozilla Foundation e do Center for Countering Digital Hatedemonstram como o sistema de recomendações do YouTube pode empurrar rapidamente utilizadores de conteúdo conservador moderado para vídeos abertamente fascistas, supremacistas brancos ou misóginos.
A estrutura e funcionalidades das redes sociais favorecem tipos de conteúdo como os criados e veiculados pela extrema-direita, com o seu tom sensacionalista e pontos de vista polarizadores. O discurso de ódio, o alarmismo e as notícias falsas são particularmente eficazes neste ambiente devido à sua capacidade de gerar grande envolvimento emocional. Títulos sensacionalistas, narrativas enganosas e teorias da conspiração geram mais partilhas e comentários do que relatos factuais ou análises complexas.
Esta dinâmica é amplificada por câmaras de eco criadas pela ordenação algorítmica, que alimenta os utilizadores com conteúdos alinhados com os seus preconceitos, reforçando as suas visões e isolando-os de contra-argumentos ou correções factuais. Por exemplo, se um utilizador interagir frequentemente com publicações contendo linguagem racista ou misógina, o algoritmo continuará a apresentar conteúdos semelhantes, reforçando as suas crenças e normalizando esse discurso no seu círculo social.
Este ecossistema permite a disseminação de desinformação e cria uma perceção distorcida de consenso. Quando os utilizadores veem repetidamente opiniões extremas a ganhar visibilidade, tendem a assumir que essas ideias são mais populares do que realmente são. Perante ideias fascistas, esta ilusão de consenso social contribui também para a sua validação, encorajando a sua adoção e promoção.
Além disso, a ausência de políticas rigorosas de moderação permite que o discurso de ódio floresça. Apesar de algumas empresas terem implementado medidas contra conteúdos prejudiciais, o volume avassalador de publicações e a velocidade com que são disseminadas dificultam a aplicação consistente das regras. Este défice de moderação é explorado por grupos fascistas, que recorrem a linguagem codificada, memes e simbologia para contornar filtros e espalhar as suas mensagens.
As consequências desta amplificação algorítmica são profundas. O discurso de ódio não só desumaniza grupos marginalizados, como fomenta uma cultura de hostilidade e divisão. No contexto da instrumentalização das redes sociais pela extrema-direita esta hostilidade é muitas vezes dirigida contra imigrantes, minorias ou opositores políticos, servindo como ferramenta para unir seguidores em torno de uma narrativa de “nós contra eles”. Ao expor repetidamente os utilizadores a este tipo de conteúdo, as plataformas digitais contribuem para a erosão da empatia e para a criação de um ambiente onde a violência ou exclusão são vistas como respostas razoáveis a ameaças percebidas. Este processo torna-se especialmente perigoso quando aliado à disseminação de narrativas de medo, concebidas para incitar ansiedade e justificar medidas autoritárias.
Propriedade e captura ideológica: como a extrema-direita explora o poder tecnológico para normalizar o fascismo
A propriedade das principais redes sociais complica ainda mais o cenário. Nos últimos anos assistimos à crescente apropriação e instrumentalização das redes sociais por figuras bilionárias com afinidades políticas com a extrema-direita, como Elon Musk (X, antigo Twitter) e Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram). Essa concentração de poder tecnológico em mãos privadas com visões ideológicas autoritárias tem facilitado a disseminação e a normalização de ideias de matriz fascista, sob a capa manhosa de “liberdade de expressão”.
Elon Musk e a radicalização do Twitter
Desde a aquisição do Twitter por Elon Musk em outubro de 2022, observou-se uma degradação intencional, planeada e sistemática dos mecanismos de moderação de conteúdo. Musk demitiu mais de 80% da equipa de moderação e desmantelou o Conselho de Confiança e Segurança da empresa. Ao mesmo tempo, reintegrou contas previamente suspensas por violações às políticas da plataforma, incluindo as de Trump, Andrew Tate, Jordan Peterson e várias contas associadas ao movimento QAnon.
Estudos empíricos mostraram que, nos meses seguintes à aquisição, os níveis de discurso de ódio dispararam no Twitter. Segundo o Center for Countering Digital Hate houve um aumento de 202% no uso de insultos raciais dirigidos a negros e de 53% no uso de termos homofóbicos. Além disso, a Anti-Defamation League (ADL) relatou um crescimento de 61% nas menções antissemitas no X no primeiro semestre de 2023.
Apesar de, por diversas vezes, Musk ter declarado que a sua gestão pretendia apenas “restaurar a liberdade de expressão” mesmo que isso implicasse tolerar discursos extremistas, um relatório da Platformer revelou que Musk ordenou pessoalmente alterações no algoritmo da plataforma para amplificar os seus próprios tweets, aumentando artificialmente a sua visibilidade em mais de 1000%. Essa manipulação algorítmica também beneficiou contas ideologicamente alinhadas à extrema-direita, gerando um ambiente propício à radicalização.
Zuckerberg e o império Meta: omissão estratégica e lucro com o ódio
Embora Mark Zuckerberg tenha adotado durante algum tempo uma postura pública mais neutra, os impactos das suas decisões empresariais não são menos graves. Estudos mostram que o Facebook favoreceu algoritmos que promovem conteúdos com alta carga emocional — frequentemente ódio, medo e polarização. Um documento interno revelou que engenheiros do Facebook haviam alertado, já em 2018, para o facto de que “os algoritmos estavam a incentivar divisões e extremismo político”.
Durante as eleições presidenciais nos EUA em 2016, 2020 e 2024, o Facebook foi o epicentro da disseminação de notícias falsas favoráveis a Trump, incluindo alegações falsas sobre fraude eleitoral. Uma investigação da MIT Technology Review mostrou que 64% das pessoas que aderiram a grupos extremistas o fizeram por sugestão algorítmica da própria plataforma. Por outro lado, a plataforma foi acusada de permitir a publicidade política com desinformação paga, algo que ajudou movimentos anti-imigração e anti-LGBTQI+ a prosperarem em vários países. Em 2021 uma ex-funcionária da empresa, Frances Haugen, apresentou provas ao Congresso norte-americano de que o Facebook dava prioridade ao “lucro em detrimento da segurança”, mesmo sabendo que seus sistemas fomentavam o extremismo.
Se dúvidas houvesse quanto à intenção de Zuckerberg de instrumentalizar o Facebook para propagação de ideais extremistas elas ficaram desfeitas em 2024, quando Zuckerberg apoiou a eleição de Trump, na sequência da qual terminou com a moderação de conteúdos.
O controlo privado de plataformas digitais por bilionários com afinidades autoritárias criou uma realidade em que a tecnologia serve como veículo de radicalização política. Elon Musk e Mark Zuckerberg estão a redesenhar o espaço público digital para tornar ideias fascistas não apenas visíveis, mas culturalmente aceitáveis. Este cenário constitui uma nova forma de hegemonia, a ditadura algorítmica neoliberal, onde as infraestruturas digitais se tornam ferramentas de engenharia social ao serviço da concentração de poder económico, ideológico e político.
Em vez de fortalecerem a democracia, as redes sociais tornaram-se armas de desinformação em massa e normalização do autoritarismo. É urgente uma abordagem que desmantele o poder dos tecno-oligarcas, socializando as redes sociais e garantindo uma gestão democrática.
Democratizar o Espaço Digital: contrariar o domínio fascizante das redes sociais por tecno-oligarcas
Apesar de alguns mecanismos legais europeus como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e a Lei dos Serviços Digitais (DSA), o poder das Big Techs mantém-se amplamente intocado. A DSA, por exemplo, continua a confiar na colaboração voluntária das plataformas para combater conteúdos ilegais, sem interferir na lógica comercial que prioriza a viralização de conteúdos tóxicos.
Autores como Zuboff alertaram para o facto do capitalismo de vigilância – a lógica em que os dados pessoais são mercantilizados para antecipar e modificar comportamentos – escapar às formas clássicas de regulação. É necessária uma abordagem radicalmente nova, que não se limite a corrigir excessos, mas que altere estruturalmente quem detém e controla os meios de comunicação digital.
A esquerda deve ter uma agenda digital que privilegie democratizar a governação das plataformas digitais, reduzir o poder dos tecno-oligarcas e promover um ecossistema digital orientado pelo interesse público. Essa agenda deverá incluir medidas como:
Propriedade pública e social das plataformas: as redes sociais devem ser tratadas como infraestruturas críticas essenciais – como as redes de água ou de energia – e sujeitas a controlo público. Tal como o serviço público de rádio e televisão, as redes sociais devem ser geridas com financiamento público e orientação por critérios de interesse público, não sujeitas à lógica do lucro e da vigilância.
Regulação democrática e transparente: a regulação estatal das grandes plataformas digitais deverá ir além da moderação de conteúdos ou da proteção de dados pessoais, passando a impor obrigações de transparência algorítmica, limitações à concentração de propriedade e normas claras sobre responsabilidade editorial. Por outro lado, a regulação não pode limitar-se à dimensão técnica mas deverá ter em vista a defesa da democracia e dos direitos humanos contra projetos autoritários travestidos de “liberdade de expressão”.
Gestão democrática: em vez de decisões unilaterais tomadas por tecno-oligarcas com agendas ideológicas próprias, a governação das redes sociais deve ser partilhada, transparente e sujeita a controlo democrático. A “autogestão” algorítmica deverá começar a fazer parte do vocabulário político de quem defende uma internet livre e justa.
Educação e soberania digital: é necessário capacitar a população para compreender e resistir à manipulação algorítmica, com uma política nacional de educação digital crítica à imagem da recomendação da Unesco, e de investimento em software livre e servidores públicos, como fazem países como a Alemanha ou a França em certos sectores.
No entanto, medidas como as enunciadas não são suficientes e enfermam do paradoxo de dependerem da ação dos governos para regulamentar plataformas nas quais eles são parte interessada. Essas medidas, sendo necessárias, não eliminam a possibilidade dos governos (quer de ideologia mais autoritária ou fascizante ou quer de ideologia mais liberal mas capturados pelo poder económico privado) usarem a própria regulação para controlar as redes sociais e utilizarem-nas como ferramentas de controle ou propaganda, de manipulação ou censura, de vigilância ou criminalização da dissidência. Assim, a solução não pode depender apenas do Estado, sob risco de reforçar o que se tenta combater: a captura do espaço digital por lógicas autoritárias ou tecnocráticas.
Redes alternativas como ação política e instrumento da luta de classes
Para enfrentar este problema as propostas da Esquerda radical e anticapitalista têm de ir mais longe e articular estratégias múltiplas, que combinem ação cidadã, criação de infraestruturas alternativas e resistência política organizada. Uma alfabetização digital crítica, promovida em espaços populares complementares aos da educação formal e proporcionando formação sobre o funcionamento dos algoritmos, a lógica da vigilância e o papel político das redes sociais; o boicote e migração, levando ao abandono de plataformas tóxicas (como o Twitter ou Facebook) e opção por redes descentralizadas e éticas que, mesmo não tendo escala de massa, ajudem a criar cultura alternativa e autonomia; ou a própria criação cidadã de redes alternativas.
A criação cidadã de redes sociais alternativas — baseadas em software livre, descentralização e transparência — é um ato de desobediência tecnológica, um exercício de construção de autonomia coletiva e um elemento adicional da luta de classes contemporânea. A luta de classes contemporânea opera-se também no campo digital, com a elite dos tecno-oligarcas a usar suas plataformas para acumular riqueza e controlar subjetividades. A criação cidadã de redes alternativas é uma arma poderosa para combater a vigilância – evitando a recolha massiva de dados, protegendo a privacidade e impedindo o rastreamento comportamental que sustenta o capitalismo de vigilância – e a hierarquia algorítmica – promovendo conteúdo hierarquizado por escolhas comunitárias e não por lógicas de lucro ou polarização. Nesse sentido, constitui uma forma de poder popular digital, retirando aos tecno-oligarcas poder económico e capacidade de manipular eleições, desejos e relações sociais, e criando ao mesmo tempo espaços de solidariedade e comunicação descentralizada que possibilitam a construção de contra-cultura e conteúdo contra-hegemónico. O ato de construção pelos utilizadores das suas próprias infraestruturas e de rejeição do papel de meros consumidores das redes dos tecno-oligarcas é construção de política anticapitalista.
A esquerda deve incorporar a luta pela transformação estrutural da propriedade, controlo e lógica das redes sociais na sua agenda central. Defender a saúde, a habitação e o ambiente mas ignorar o espaço digital é abandonar um dos principais campos de batalha contemporâneos. As redes são hoje instrumentos de poder ideológico, controlo social e reprodução do capital. A mudança terá de surgir pela ação articulada, coletiva e politizada “de baixo”. A criação cidadã de redes sociais alternativas, por exemplo, não é um ato meramente técnico mas sim uma forma de luta social, cultural e política que desafia o poder e controlo dos tecno-oligarcas e dos governos que os servem. Será um processo lento, longo, feito a partir das margens, e exige paciência. Mas cada instância criada, cada rede trocada, cada cultura digital construída fora do sistema dominante será uma brecha na ditadura algorítmica. A liberdade digital será anticapitalista – ou não será.