Quid est tuum, “trumponomics”?
Longe de revitalizar o capitalismo dos EUA, as políticas de Trump corroem salários, alimentam a inflação e aumentam a incerteza, prejudicando os investimentos. O suposto nacionalismo econômico é uma farsa que beneficia uma elite à custa do bem-estar da maioria e da estabilidade global
Eleutério Prado, A terra é redonda, 9 de setembro de 2025
Três opiniões
É bem difícil saber exatamente. Em geral, os economistas do sistema, mesmo os neoliberais, assim como aqueles que se situam fora desse campo, acham que as políticas de Donald Trump prejudicam a economia norte-americana no curto e no longo prazo.
Eis, por exemplo, a opinião de Nouriel Roubini que vê efeitos danosos dessa política, apesar de prever que ela não vai contrariar um destino promissor que estaria reservado para a economia capitalista que “prospera” nesse país: “Embora não haja dúvida de que a agenda econômica de Donald Trump seja potencialmente estagflacionária, estão se desenvolvendo nos Estados Unidos algumas das inovações tecnológicas mais importantes da história da humanidade. Isso trará benefícios que superam em muito os custos das atuais políticas comerciais, assim como de outras políticas imprudentes”.[i]
Para citar, agora, um economista menos otimista quanto ao futuro do capitalismo nos EUA, veja-se a opinião de Paul Krugman, um opositor ferrenho das manobras econômicas de Donald Trump: “As políticas tarifárias e de deportação do governo Trump estão criando um choque inflacionário significativo. Elas também estão impondo um obstáculo significativo ao crescimento econômico. Hoje, é provável que os Estados Unidos estivessem entrando em recessão sob o peso de preços mais altos e crescimento mais lento se a economia não estivesse sendo apoiada por um grande boom de investimentos relacionados à inteligência artificial (IA)”.[ii]
Pode parecer surpreendente, mas um reconhecido historiador e analista político brasileiro pensa de modo diferente; para ele, as políticas econômicas de Donald Trump farão avançar o capitalismo nos EUA. Eis o que diz Valério Arcary em seu artigo, “Quatro rotas de fuga”,[iii] postado no site A Terra é Redonda: “O argumento deste texto é que estamos diante de uma nova etapa do capitalismo. Os EUA estão numa ofensiva em todos os terrenos. Donald Trump está “tocando o terror”. O programa “incendiário”, que Washington aposta na defesa da supremacia dos EUA, [está] alicerçado num impulso de crescimento econômico nacional-imperialista, que seja capaz de disputar com a China o domínio mundial, exportando a crise para os países periféricos”.
Ele parece acreditar, pois, que o avanço dessa economia capitalista ocorrerá às custas dos trabalhadores norte-americanos e das economias capitalistas nos países periféricos. Aponta, ao longo do artigo, que a “economia de Donald Trump” visa obter um aumento da lucratividade do capital nos EUA por meio de aumento da taxa de exploração, ou seja, da elevação da razão entre o mais-valor (medido como lucro) e o estoque de capital usado, direta e indiretamente, na produção de mercadorias (medido em valores monetários constantes).
A tese do artigo de Valério Arcary está baseada numa evidência estratégica: os EUA estão agindo para manter a ordem unipolar e a hegemonia alcançadas ao fim da década dos anos 1980, quando ocorreu o fim da União Soviética. Para tanto, têm de ganhar agora a corrida imperialista com a China. Contudo, mesmo se expõe com rigor a teoria das crises segundo a tradição iniciada por Karl Marx, não demonstra a sua proposição principal, acima apresentada resumidamente. As políticas do governo Donald Trump serão bem-sucedidas em manter a hegemonia dos EUA num mundo marcado por avanços tecnológicos disruptivos e ameaças de crises devastadoras?
O que esperar das políticas de Donald Trump
Ora, Valério Arcary não mostra, tendo por base o exame dessas políticas, como elas impactarão em efetivo o desenvolvimento do capitalismo na América do Norte. Não o faz, mesmo se elenca, no plano teórico, as “quatro rotas de fuga para frente” mais importantes que o capital dispõe para continuar acumulando. Ora, a questão é difícil já que essas políticas afetam a repartição da renda entre salários e lucros brutos, a absorção de tecnologias poupadoras de trabalho, a troca desigual com as economias periféricas e financeirização da própria capitalista na América do Norte. Ademais, seria necessário considerar os rumos do capitalismo na China e na Europa, assim como as eventuais repostas dos outros países às políticas dos EUA.
Aqui, busca-se examinar, limitadamente, a validade da tese de Valério Arcary, ficando, inclusive, apenas nas questões econômicas. Para começar, pode-se notar que um escrito algo confuso de Stephen Miran, presidente do conselho de assessores econômicos do governo de Donald Trump, parece lhe dar razão. Em seu difundido artigo, “Um guia para reestruturar o sistema global de comércio”,[iv] ele parte da constatação de que há uma grande insatisfação na população norte-americana com o desenvolvimento econômico das últimas décadas.
“A profunda insatisfação com a ordem econômica vigente está enraizada na persistente sobrevalorização do dólar e nas condições comerciais assimétricas. Essa supervalorização torna as exportações dos EUA menos competitivas e as importações dos EUA mais baratas, o que prejudica a indústria americana. O emprego na indústria diminui à medida que as fábricas fecham. As economias locais se contraem, muitas famílias trabalhadoras são incapazes de se sustentarem e se tornam viciadas em doações do governo ou em opioides ou se mudam para locais mais prósperos. A infraestrutura se deteriora à medida que os governos deixam de mantê-las; moradias e fábricas ficam abandonadas. As comunidades, em suma, ficam “arruinadas”.[v]
Portanto, segundo esse escrito, a política tarifária encetada visa melhorar as condições de competição da indústria norte-americana em relação ao resto do mundo. Uma tarifação das importações resolveria – supõe – o problema de um dólar persistentemente sobreavaliado e rebalancearia o comércio internacional, reduzindo os grandes déficits do balanço de comércio estadunidense. A reindustrialização sobrevinda seria capaz, então, de recuperar as condições de vida da população trabalhadora deste país que fora perdida após 1980 com a ascensão do neoliberalismo.
O que diz o saber básico sobre o efeito das tarifas? Antes de tudo, sabe-se que as tarifas são uma forma de cobrar impostos sobre as mercadorias importadas. E que são pagos principalmente pelos consumidores que pelejam na economia doméstica do país que as impõem. Ademais, se sabe também que são impostos regressivos já que recaem principalmente sobre a população trabalhadora, em especial, sobre a mais pobre. Logo se vê que a política tarifária de Donald Trump prejudica essa população, assim como as comunidades, ao contrário do que diz a demagogia trumpista, que se expressa de modo claro no escrito de Sthepen Miran.
As tarifas protegem da concorrência estrangeira certos produtores locais que, assim, podem elevar as suas margens de lucro. Elas encarecem os custos dos insumos importados, criam dificuldades para certas empresas locais, mas estas vão acabar transferindo o peso desses custos para os preços. Tudo contribui para reduzir os salários reais. O efeito líquido das tarifas, ao fim e ao cabo, vem a ser uma transferência de renda dos trabalhadores para os capitalistas, especialmente no caso de que eles permaneçam passivos.
Essa política evitará o declínio relativo da maior economia imperialista, tornando-a “grande de novo”? Ou ela apresenta soluções simples – e imaginárias – para problemas complexos que exigiriam transformações estruturais para serem devidamente enfrentados?
Primeiras evidências factuais
Agora, é preciso ver o que está acontecendo na economia norte-americana sob o impacto do choque tarifário. O gráfico em sequência, que reúne dados mensais relativos aos últimos três anos até o presente, mostra que não ocorreu ainda uma queda nos déficits persistentes do balanço de comércio exterior, como seria de se esperar devido à magnitude das tarifas impostas desde que Trump tomou posse no governo dos EUA. De fato, entre maio e outubro do presente ano, esses déficits cresceram devido às antecipações de importações antes que os aumentos tarifários entrassem em vigor. Agora, parecem ter retomado o padrão anterior.
Entretanto, como mostra o gráfico em sequência, o dólar se valorizou no final do governo Biden após a eleição de Trump, mas passou a se desvalorizar depois que ele assumiu o governo. E isso está encarecendo as importações no mercado norte-americano para além dos acréscimos de custos devidos estritamente às elevações das tarifas sobre as mercadorias importadas.
Em consequência, os efeitos da política tarifária já começam a afetar o nível de preços, ainda que moderadamente por enquanto. Eis que já há evidências preliminares de que está ocorrendo um aumento significativo nos preços de varejo das mercadorias importadas. O gráfico abaixo mostra as evoluções dos preços das mercadorias domésticas (linha azul) e das importadas (linha laranja) no comércio varejista. Como era de se esperar, estes últimos começaram já a impulsionar a elevação da taxa de inflação nos Estados Unidos.
Perspectivas futuras
Como foi visto no início, os economistas do sistema, tal como os dois acima citados, consideram a possiblidade de que uma estagflação sobrevenha na economia norte-americana. Presumem, assim, que uma elevação continuada dos preços possa vir acompanhada de recessão, ou seja, de uma queda na taxa de crescimento do PIB com elevação da taxa de desemprego.
Note-se que tanto a inflação quanto a redução da oferta de força de trabalho, devida à perseguição dos trabalhadores estrangeiros, contribuem para o aumento do custo de reprodução da força de trabalho. Se os trabalhadores nos EUA reagirem, se lutarem fortemente por aumentos de salário, isso pressionará para cima os salários reais e as taxas de lucro para abaixo.
Como o rebaixamento da lucratividade leva eventualmente as empresas a aumentarem os preços para garantir as suas margens, a economia norte-americana pode cair numa dinâmica estagflacionária. Se essa possibilidade tem sido considerada é porque, implicitamente, tais economistas julgam possível que ocorra a mencionada reação dos trabalhadores; pois, eles se mostram, como indicou o próprio Sthepen Miran, muito insatisfeitos.
No entanto, o que os economistas do sistema parecem temer mesmo é que uma recessão prolongada possa acontecer. Como as políticas econômicas de Donald Trump são erráticas, elas elevam substancialmente a incerteza sobre o futuro, turvando o horizonte de cálculo dos capitalistas; ora, como se sabe bem desde Keynes, isso tende a abater fortemente os investimentos na produção de mercadorias. Como mostra o gráfico em sequência, a criação de empregos nos EUA está desacelerando.
Menciona-se também, frequentemente, que essas políticas são isolacionistas e que, por isso, entram em contradição com o caráter globalizado da economia mundial. Pois, tendem a danificar as cadeias de insumo-produto que se espalham pelo mundo tal como ocorreu durante a pandemia da Covid. Sob outra leitura, pode-se dizer que a política protecionista do estado nacional está em contradição com a tendência imanente do capital para a mundialização.
E o quadro geral não é bom: exceto nas grandes empresas de tecnologia, a lucratividade está baixa nessa economia capitalista. Sobrevivem aí, ademais, muitas empresas zumbis que mal conseguem pagar os juros de seus empréstimos. Julga-se também que um nível de atividade rastejante tem se mantido nessa economia devido aos excessos de investimento na produção dos serviços de Inteligência artificial; ora, espera-se que a bolha assim formada ainda vá estourar.[vi]
Talvez essa opinião final de Paul Krugman mostre bem o estado ânimo dos economistas do sistema com as perspectivas futuras da economia capitalista nos EUA: “É provável que os Estados Unidos estivessem entrando agora em recessão sob o peso de preços mais altos e crescimento mais lento se a economia não estivesse sendo apoiada por um grande boom de investimentos associados à inteligência artificial. E esse perigo permanece: se a bolha de inteligência artificial estourar, as chances são altas de que a economia dos EUA mergulhe numa recessão”.[vii]
Por fim, é preciso atacar uma última questão deixada pelo artigo de Valério Arcary: há uma nova fase do capitalismo? Sim, desde a crise de 2008. Neofascista? Não, pois chamá-la de neoliberal reacionária parece mais acurado. Vai produzir progresso? Não, vai levá-lo ao ocaso por meio de catástrofes[viii], ao mesmo tempo em que inovações tecnológicas rompedoras são introduzidas. Por isso, a pergunta crucial que agora se alevanta no horizonte da civilização humana é bem terrível: está-se vivendo doravante o fim material da história?
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).
Notas
[i] Roubini, Nouriel – The US Economy Will Thrive despite Trumponomics. Social Europe/Project Syndicate – 16/05/2025. Uma tradução do artigo original pode ser encontra aqui: https://eleuterioprado.blog/2025/05/29/trump-nao-vai-matar-o-boom/
[ii] Krugman, Paul – The Economics of Stagflation – part I. Substack, 17/08/2025. Eis uma tradução do artigo original: https://eleuterioprado.wordpress.com/wp-admin/post.php?post=8012&action=edit
[iii] Arcary, Valério – “Quatro rotas de fuga”. Em A terra é redonda:
[iv] Miran, Stephen – A user’s guide to restructuring the global trading system. Hudson Bay Capital, nov. 2024.
[v] Nesse trecho, Miran diz que o objetivo da política tarifária é desvalorizar o dólar. Contudo, em outro trecho, ele diz que isso não ocorrerá: “As tarifas fornecem receita e, se compensadas por ajustes cambiais, apresentam efeitos colaterais inflacionários ou adversos mínimos (…). Embora a variação cambial possa inibir os ajustes nos fluxos comerciais, as tarifas serão, em última análise, financiadas pelos países tarifados, cujo poder de compra real e riqueza diminuirão; assim, a receita arrecadada melhorará a divisão dos encargos da provisão do dólar como ativo de reserva internacional. As tarifas serão implementadas provavelmente de uma maneira profundamente entrelaçada com as preocupações de segurança nacional”.
[vi] Ver Roberts, Michael – O investimento em inteligência artificial. A terra é redonda: https://aterraeredonda.com.br/o-investimento-em-inteligencia-artificial/
[vii] Krugman, Paul – The Economics of Stagflation – part II. Substack, 24/08/2025.
[viii] Prado, Eleuterio F. S. – Capitalismo no século XXI – Ocaso por meio de eventos catastróficos. CEFA Editorial, 2023.