Projeto militar e obra viária ameaçam área de Mata Atlântica em PE
Construção de escola militar prevê o desmatamento de 94 hectares de floresta na Área de Proteção Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe, que abriga trecho remanescente da Mata Atlântica e importante corredor ecológico na Região Metropolitana de Recife. A isso se soma o Arco Viário Metropolitano, obra que pode aumentar a circulação humana ao redor de áreas protegidas e gerar novos riscos a espécies que já vivem sob a ameaça dos atropelamentos. Segundo especialistas, instalações podem intensificar crise hídrica na região caso levem recursos naturais, como rios e nascentes, à exaustão.
Rafael Dantas, Mongabay Brasil, 25 de junho de 2025
A construção da Escola de Sargentos das Armas (ESA), anunciada em 2021, tornou-se um marco para a Região Metropolitana do Recife (RMR). Por contar com recursos assegurados pelo Exército Brasileiro na casa de R$ 1,8 bilhão, além de contrapartidas de infraestrutura do governo estadual, e diante da expectativa de geração de postos de trabalho, o projeto parecia promissor.
No entanto, a proposta enfrenta a resistência da sociedade civil e de ambientalistas devido aos possíveis impactos ambientais no local que abrigará o empreendimento: a Área de Proteção Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe. Compreendendo oito municípios em seus mais de 30 mil hectares de extensão, a APA acolhe o maior remanescente de Mata Atlântica no trecho entre os estados de Sergipe e Rio Grande do Norte. O pouco que sobrou da floresta tropical nesta parte do mapa é fundamental, uma vez que o bioma já perdeu quase 90% de sua área original no Brasil, como alertam especialistas.
Para a área construída do complexo militar, estima-se o desmatamento de 94 hectares de floresta nativa, consequência de uma estrutura que deve receber 6 mil novos moradores. A ESA, porém, não é a única grande intervenção prevista: antes mesmo da escola, já havia no caminho a construção do chamado Arco Viário Metropolitano, que promete melhorar o tráfego em toda a RMR. O arco também gera preocupação, já que recortaria toda a área da APA, adicionando um novo fator de risco à natureza.
Somados, os dois projetos intensificam a pressão urbana dentro e ao redor da unidade de conservação. Como resultado, crescem as ameaças a regiões de corredores ecológicos, fundamentais para conectar os fragmentos da Mata Atlântica — que, com dificuldade, ainda resistem no nordeste.
As sinalizações em vermelho (áreas de influência direta) mostram os trechos destinados ao Arco Viário Metropolitano e ao projeto original da ESA dentro da APA Aldeia-Beberibe. As linhas em amarelo correspondem às áreas de influência indireta, traçadas a partir de estudos de impacto ambiental. Mapa: Fórum Socioambiental de Aldeia
No projeto inicial, a instalação do centro militar previa a retirada de 188 hectares de Mata Atlântica. Após discussões entre o Exército, o governo de Pernambuco e representantes da sociedade civil, o projeto foi redesenhado, reduzindo a estimativa de desmatamento. Apesar do recuo, pesquisadores de universidades pernambucanas se mantêm vigilantes frente a possíveis impactos, ressaltando que os danos vão além da supressão da área verde.
Segundo Isabelle Meunier, professora do departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), mesmo diante de uma diminuição da natureza potencialmente suprimida, a estrutura ainda pode trazer riscos. “Mesmo realizado em uma APA, onde é possível haver uso sustentável [da floresta], não há justificativa técnica para o desmatamento, nem respaldo no interesse público”, diz.
Empreendimentos vão na contramão de princípios da APA
A APA Aldeia-Beberibe está localizada no Centro de Endemismo Pernambuco, área biogeográfica que compreende trechos ao norte do Rio São Francisco. Essa região prioritária de conservação da Mata Atlântica abriga espécies que não existem em nenhum outro lugar do mundo. Isso aumenta de forma significativa sua importância ecológica, de acordo com Cecília Costa, doutora em Ecologia e professora do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“A Mata Atlântica se estende pelo litoral brasileiro, mas não é homogênea”, ela explica. “Existem barreiras geográficas, como o Rio São Francisco, que, ao longo de milhares de anos, provocaram processos de especiação, dando origem a espécies únicas em determinadas regiões. O sagui Callithrix jacchus que temos aqui, por exemplo, é diferente do que temos na região sul. Há também aves ameaçadas de extinção, como o pintor-verdadeiro (Tangara fastuosa). Por sua plumagem exuberante, o pássaro tem alto valor comercial e é alvo do tráfico de animais silvestres.”
A região também conta com uma peculiaridade em sua história evolutiva, o que amplia a relevância dessa área específica, segundo a pesquisadora. Ela diz que já houve períodos de conexão entre o local e a Amazônia, o que explica a presença de espécies típicas dos dois biomas mais biodiversos do mundo em um mesmo território. Para Costa, essa rara combinação reforça o valor de se conservar a natureza que vive ali.
Além dos dois futuros empreendimentos, o crescimento acelerado da região de Aldeia, na Região Metropolitana de Recife, é outro fator que impõe riscos à Mata Atlântica. O problema não é novo: em 2010, o decreto estadual que criou a APA mencionava, entre outros objetivos, a organização do desenvolvimento local, estabelecendo delimitações geográficas para proteger mananciais e nascentes, bem como a fauna e flora. A criação da área protegida também estabelecia o pagamento por serviços ambientais, medida amparada por lei e que busca incentivar proprietários de áreas de florestas nativas a preservá-las. As duas obras que estão por vir avançam na contramão desses objetivos.
Segundo Costa, “infelizmente, os projetos institucionais previstos são incompatíveis com os objetivos da APA. Em 2020, o governo de Pernambuco inseriu no decreto um trecho sobre possíveis estratégias para que o Arco Metropolitano respeite a implantação dos corredores ecológicos. No entanto, isso não encontra nenhum respaldo técnico-científico. Hoje encontramos animais atropelados, ainda que haja na região gente sensível e que, muitas vezes, para [o carro com o objetivo de ajudar]. No caso das preguiças da espécie Bradypus variegatus, [as pessoas] até ajudam o bicho a atravessar a rua. O que vai acontecer quando uma via de fluxo rápido atravessar o maior trecho de floresta da região?”.
Atualmente, Costa coordena um projeto de monitoramento da biodiversidade que analisa os impactos antrópicos (relacionados aos efeitos da atividade humana) em território pernambucano. Entre os animais sobre os quais paira o risco de extinção, ela cita a jaguatirica (Leopardus pardalis), vítima recorrente em casos de atropelamento. Apenas na Estrada de Aldeia, que conecta o município de Camaragibe à RMR, três animais foram encontrados mortos entre 2019 e 2023.
“A presença desse felino é um forte indicativo da existência de uma cadeia alimentar equilibrada, com abundância de pequenos mamíferos e outros animais que compõem sua base alimentar”, diz Costa. “Além disso, indica boa qualidade de habitat e baixa pressão de caça. Esse é mais um sinal da vitalidade ecológica da área.”
Imagem aérea de um trecho habitado da APA. Foto: Agência Estadual de Meio Ambiente/Divulgação
Projetos podem desatar crise hídrica e comprometer recursos naturais
Por si só, a presença de fauna silvestre na APA já justificaria a preocupação de organizações e especialistas. Há, no entanto, outra possível crise adiante: os novos projetos também podem aumentar ainda mais a escassez hídrica, trazendo imprevistos ao abastecimento público pelo uso excessivo de recursos naturais e risco de aterramento das nascentes.
A Região Metropolitana do Recife, como grande parte dos municípios pernambucanos, convive há anos com o sistema de rodízio para o abastecimento – a restrição, que varia de tempos em tempos, é diretamente ligada à falta de água disponível. Agora, várias cidades estão diante de um novo drama, uma vez que o local destinado à construção da ESA abriga as nascentes do Rio Catucá, cuja bacia e afluentes alimentam a Barragem de Botafogo. Essa estrutura é responsável pelo fornecimento da água utilizada pelos municípios de Olinda, Igarassu, Paulista e Abreu e Lima, atendendo mais de 700 mil consumidores, segundo dados da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa).
“Contamos com duas áreas de abastecimento público [de água] dentro da APA”, explica Costa. “Uma delas é a Barragem de Botafogo e outra a Barragem do Prata, que fica dentro do Parque Estadual de Dois Irmãos. Além disso, a Aldeia-Beberibe abrange uma importante reserva de água subterrânea que abastece empresas do setor de bebidas e água mineral. É a água engarrafada que chega à RMR.” Segundo ela, para manter esse serviço essencial, é necessário priorizar a conservação. “Por ser uma área de recarga de aquíferos, a APA necessita de baixa densidade populacional, de modo a permitir a manutenção das florestas. Isso, por sua vez, possibilita que a água das chuvas se infiltre, recarregando o lençol freático.”
Para a sociedade civil, representada pelo Fórum Socioambiental de Aldeia, é uma prioridade garantir que os projetos de instalação do complexo militar estejam a uma distância segura da margem de rios e de outras áreas de elevada importância ecológica. A demanda segue o que é previsto no Código Florestal Brasileiro e levantou discussões que tiveram musculatura para alterar elementos do projeto: enquanto o local de construção da escola e de um batalhão segue sob análise técnica, diante de possíveis irregularidades, as vilas militares foram realocadas para um terreno próximo – já desmatado.
Os perigos ao meio ambiente também são observados em um recente estudo disponível no The Journal for Nature Conservation e produzido por pesquisadores da UFPE, UFRPE e da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Nele, cientistas dizem que a ESA e o Arco Metropolitano poderiam provocar a remoção de 335 mil árvores que fazem parte dos 198 remanescentes florestais compreendidos pela APA.
De acordo com a pesquisa, é crucial que futuras abordagens estejam amparadas em critérios científicos, sobretudo nas fases que demandem a supressão florestal em paisagens já fragmentadas. “Isso se mostra crucial para mitigar os cenários alarmantes de clima extremo e perda de biodiversidade vistos no Brasil e no mundo atualmente”, diz o estudo.
Os desafios que cercam o corredor ecológico
Em um horizonte de médio e longo prazo, há expectativa de piora na qualidade do habitat sob a mira dos empreendimentos. Segundo a pesquisa, “a probabilidade de conectividade [entre os trechos de floresta] diminuirá, restringindo consideravelmente a mobilidade das espécies dependentes.” O corte de território promovido pelo Arco Metropolitano (dimensionado no mapa abaixo) também aumentaria a fragmentação dos remanescentes de Mata Atlântica, colocando entraves ao desenvolvimento de um corredor ecológico que permita o fluxo de animais, de sementes e de pólen (também chamado fluxo gênico) na região.
Na ausência dessa dinâmica natural, há maior incidência de endogamia, nome dado à reprodução entre indivíduos aparentados. Com o tempo, esse fenômeno pode aumentar anomalias genéticas e doenças, reduzindo o número de certas espécies.
Garantir o fluxo gênico por meio do deslocamento adequado é fundamental para alguns animais, ainda segundo a professora Cecília Costa. Afinal, nem todos se desenvolvem como os saguis e quatis (Nasua nasua), cujos comportamentos naturais já funcionam como uma “barreira” à endogamia. Enquanto saguis machos e fêmeas migram para outros bandos, os quatis machos, ao atingirem a maturidade, são expulsos de seus grupos e forçados a buscar novos núcleos. Nesse momento, a conservação volta a revelar sua importância: para que esses animais possam encontrar novos indivíduos semelhantes, é vital que haja conexão entre grandes áreas de florestas. Se os espaços estão separados, os animais são impedidos de atravessar – ou morrem no percurso.
Diante desse cenário, o governo do estado desenvolveu em 2019 um projeto voltado à identificação de áreas propícias à criação de corredores ecológicos. A iniciativa pretende facilitar o deslocamento da fauna e promover a dispersão de sementes e pólen, dois processos fundamentais para a manutenção dos serviços ecossistêmicos. Com a ameaça das construções, eventuais entraves a esse funcionamento são colocados à luz das discussões.
Falta de licenciamento gera preocupação
Um outro impasse se soma aos riscos ambientais apontados previamente. Segundo a professora Meunier, o projeto ainda carece de licenciamento ambiental, o que impede a sociedade de conhecer as questões de forma ampla. “Não sabemos quais impactos a obra trará à medida que não há licenciamento. Isso é um retrocesso enorme. A licença é justamente o instrumento que permite avaliar os danos ambientais, permitindo a apresentação de medidas mitigadoras e compensatórias. A sociedade está no escuro.”
Em parte, a ausência de licenciamento é fruto de uma interpretação da Lei Complementar 140/2011, que isenta empreendimentos e atividades de caráter militar de apresentá-lo. “Essa situação se assemelha ao Projeto de Lei 2.159/2021, que tramita no Senado e fere profundamente os instrumentos da política nacional de meio ambiente”, diz a especialista. No final de maio, em nota, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima disse que o PL “representa risco à segurança ambiental e social” no Brasil.
Meunier diz que estudos e relatórios de impacto ambiental deveriam analisar de forma detalhada os diferentes aspectos envolvidos na implantação da ESA. Em sua análise, não se trata apenas da fase de construção, mas também do funcionamento pleno da obra – incluindo a circulação de pessoas e veículos, o uso das estradas, o estacionamento dos carros, a poluição gerada e as relações socioeconômicas que a população desenvolverá nas proximidades.
Projeto enfrenta protesto de moradores e da sociedade civil
Morador da APA há cinco anos, o autônomo Frederico Silva convive com um sentimento de indignação. Para ele, tanto o arco quanto a escola resultam de iniciativas que desconsideram possíveis impactos socioambientais em uma área já fragilizada pela falta de fiscalização. “O projeto viário foi muito mal elaborado e não levou em conta as mazelas que o acompanham, como a grilagem da terra e o risco elevado de acidentes envolvendo animais silvestres.”
Silva também questiona o desmatamento para a instalação de mais uma representação militar, uma vez que o Exército já possui estruturas em cidades como Garanhuns, Olinda e Jaboatão dos Guararapes. “Por que destruir a APA? Fala-se muito da quantidade de árvores que serão derrubadas para a construção da escola e de como as Forças Armadas alegam que vão reflorestar [a área] como forma de ‘compensar’. A questão, é: como compensarão a vida de animais silvestres mortos nesse processo?”.
A sociedade civil também traz críticas ao projeto. Parte delas vem em forma de manifestações, como uma passeata convocada pelo Coletivo Inter Religioso em Defesa da APA Aldeia-Beberibe, na capital Recife, no final de abril. A marcha contou com a participação da classe artística, ambientalistas, indígenas e parlamentares sob o lema “Para construir, não é preciso desmatar.”
Baseando-se em análises técnicas, a ONG Fórum Socioambiental de Aldeia também propôs locais alternativos para a construção dos dois empreendimentos, sugerindo regiões próximas, mas fora de pontos sensíveis da Mata Atlântica. Até aqui, no entanto, todas as propostas foram rejeitadas pelo Exército.
Morador de Aldeia e presidente da organização, o mestre em gestão ambiental Herbert Tejo representa diferentes vozes locais em audiências públicas, debates acadêmicos e reuniões com o poder público para alertar sobre o que está por vir: “Há inúmeras ameaças ao território de Aldeia – e de toda a ordem. Do ponto de vista ambiental, pode ser desastroso. Quando se trata da defesa do meio ambiente, as negociações com o poder público são sempre desafiadoras. Contudo, temos um arcabouço legal e muitos estudos que visam a proteção dessa área. A sociedade civil, por meio de um esforço conjunto, formulou propostas alternativas para a localização das obras. Esperamos que haja bom senso e respeito à ciência na tomada de decisão por parte de órgãos públicos.”
Tejo negocia com as entidades competentes para que ao menos a instalação da escola seja feita em um terreno que se encontra a cerca de 5 quilômetros do local originalmente escolhido – em uma área que abriga plantações de cana-de-açúcar. “Estudamos uma área de 1.700 hectares, dos quais 915 são terrenos já desmatados e de relevo plano. O Exército necessita de apenas 146 hectares para o complexo [inteiro]”, diz o representante.
Poder público promete encontrar soluções, mas futuro é incerto
Em meio a denúncias, alertas e burburinhos, o governo de Pernambuco tem se posicionado de forma cautelosa diante do impasse ambiental gerado por suas propostas. Embora reconheça o compromisso institucional assumido em 2022, a atual gestão da governadora Raquel Lyra criou um grupo de trabalho intersetorial para discutir o tema. A iniciativa é liderada pela Secretaria de Meio Ambiente e conta com a participação de universidades e da sociedade civil.
Em junho deste ano, Lyra assinou termos aditivos do acordo entre o estado e os militares, ressaltando “melhorias de infraestrutura para a região”, o que reforça o interesse do atual governo em levar o projeto adiante.
Enquanto isso, autoridades da área ambiental prometem encontrar um caminho intermediário que respeite a preservação da natureza. Ana Luiza Ferreira, secretária de Meio Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha, projeta uma solução negociada. “É uma questão muito complexa. O Exército tem, efetivamente, um papel fundamental na proteção daquela área. Para o governo, também não é simples [intermediar a alteração do projeto] quando há um compromisso já firmado entre as instituições. Seguimos comprometidos em buscar a redução do impacto ambiental.”
A APA e seus habitantes, humanos ou não, seguem no aguardo dos novos capítulos de uma história tão arrastada quanto imprevisível.