Por que Lula se omite sobre o “PL da Devastação”?
Philip Martin Fearnside, Amazônia Real, 13 de junho de 2025
O presidente Lula ficou em silêncio enquanto o “projeto de lei da devastação” (PL 2159/2021) tramitava na Câmara dos Deputados e era aprovado por 290 votos a 115 em 13 de maio [1, 2]. O silêncio continuou [3, 4] enquanto o Senado acrescentou emendas prejudiciais e aprovou o projeto revisado em 23 de maio por uma votação de 54 a 13 [5]. Com o projeto de volta à Câmara dos Deputados, o presidente da Câmara pretende colocá-lo em votação no plenário na terceira semana de junho [6]. Não se espera que o Presidente Lula tente evitar isso [7].
Quando a ministra do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (Marina Silva) sofreu um ataque misógino de três senadores em 27 de maio, o Presidente Lula expressou sua solidariedade a Marina em relação à misoginia, mas não comentou nenhuma das questões ambientais que Marina defendia [8]. O presidente Lula declarou que ainda não leu o “PL da Devastação” e só o fará e formará uma opinião quando chegar à sua mesa [9]. Como pode o presidente do Brasil permanecer deliberadamente desinformado sobre um assunto que ameaça o futuro do país?
O ataque ao sistema de licenciamento ambiental brasileiro, perpetrado por forças antiambientais no Congresso Nacional, expõe o país a uma devastação que vai além de qualquer coisa que até mesmo o governo presidencial notoriamente antiambiental de Jair Bolsonaro foi capaz de alcançar. Quando o Presidente Lula finalmente dedicar algum tempo a esse assunto, sugiro que ele não apenas leia o projeto de lei em si [10], mas também parte do que foi escrito sobre ele, como o texto de Suely Araújo, ex-presidente do IBAMA, intitulado “A farsa da nova lei do licenciamento ambiental”, bem como uma análise minha [11]. Ele pode encontrar mais informações na nota técnica de 114 páginas do Observatório do Clima [12].
Para resumir o projeto de lei atual, ele cria um procedimento de autolicenciamento para projetos considerados de impacto “pequeno” ou “médio”. Esses projetos geralmente não são de impacto tão pequeno quanto se poderia pensar: as barragens de rejeitos de mineração em Mariana e Brumadinho, que se romperam causando dois dos maiores desastres ambientais do Brasil [13, 14], estavam na categoria “médio”. O novo procedimento, oficialmente denominado uma “Licença por Adesão e Compromisso” (LAC), eliminaria qualquer análise por parte de funcionários de agências ambientais federais e estaduais, a submissão de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a realização de audiências públicas e a especificação de medidas compensatórias em caso de acidentes ou outros impactos. O licenciamento seria reduzido a uma autodeclaração que consiste basicamente em marcar uma série de caixas em um formulário online.
Conforme alterado pelo Senado, o projeto de lei atual também inclui uma “Licença Ambiental Especial” (LAE) para projetos, independentemente da magnitude de seus impactos, se eles forem considerados “estratégicos” por um conselho representando interesses políticos. Esta disposição foi adicionada ao projeto de lei em uma emenda de última hora introduzida pelo presidente do Senado, Daví Alocumbre, aparentemente com o objetivo de facilitar a aprovação ambiental dos campos petrolíferos propostos na foz do rio Amazonas, na costa de seu estado do Amapá. Este projeto corre o risco de derramamentos de óleo incontroláveis devido à profundidade da água e às complexas correntes oceânicas no local [15] e põe em movimento um processo que garante a extração muito depois que o mundo tiver que parar de usar petróleo como combustível [16].
A “Licença Ambiental Especial” também abre as portas para outros projetos de alto impacto, como a proposta de reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) que, juntamente com suas estradas secundárias planejadas, abriria ao desmatamento a vasta área de floresta intacta na metade oeste do estado do Amazonas [17, 18]. Esses projetos teriam um prazo de um ano para aprovação, após o qual seriam aprovados automaticamente. Claramente, não se deve presumir que grandes projetos como esses nunca serão rejeitados, com o licenciamento sempre terminando em aprovação. O processo de licenciamento também normalmente leva mais de um ano, em grande parte devido a informações inadequadas fornecidas pelos proponentes nos EIAs e seus atrasos em retificar essas deficiências. A perene falta de pessoal do IBAMA e de outros órgãos ambientais também significa que a aprovação automática dos projetos provavelmente será frequente.
Então, por que o Presidente Lula não se opõe ao “PL da devastação”? A resposta parece ser que ele vive em um “espaço de desinformação”, onde se cercou de apoiadores dos projetos que seriam facilitados pelo projeto de lei [19]. Ele ouve seus ministros de Transportes e Minas e Energia e a presidente da Petrobras (a empresa petrolífera do governo), mas não ouve sua ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima [19]. Fundamentalmente, o problema é que o Presidente Lula apoia os projetos da BR-319 [20] e da foz do Amazonas [21, 22]. Aparentemente, ele não tem conhecimento das consequências desastrosas para o Brasil desses projetos, que incluem a iniciação de processos que emitem gases de efeito estufa em quantidades que correm o risco de elevar as temperaturas globais além de um ponto de não retorno, desencadeando mudanças climáticas que matariam a floresta amazônica e devastariam o Brasil [23-25].
Notas
[1] Câmara dos Deputados. 2025. PL 2159/2021 (Nº Anterior: PL 3729/2004). https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161&fichaAmigavel=nao
[2] Veja. 2025. A voz solitária de Marina enquanto Lula deixava a boiada passar no Senado. Veja, 22 de maio de 2025. https://veja.abril.com.br/coluna/radar/a-voz-solitaria-de-marina-enquanto-lula-deixava-a-boiada-passar-no-senado/
[3] Martins, R.M. 2025. Como o governo Lula colaborou para aprovar o PL da devastação. Sumauma, 28 de maio de 2025. https://sumauma.com/como-o-governo-lula-colaborou-para-aprovar-o-pl-da-devastacao/
[4] Borges, A. 2025. Sem vitimismo no licenciamento. Folha de São Paulo, 22 de maio de 2025. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/andre-borges/2025/05/sem-vitimismo-no-licenciamento.shtml
[5] ClimaInfo. 2025. O que o PL da devastação está pondo em jogo (Dica: seu futuro). ClimaInfo, 04 de junho de 2025. https://climainfo.org.br/2025/06/04/o-que-o-pl-da-devastacao-esta-pondo-em-jogo-dica-seu-futuro/
[6] ClimaInfo. 2025.Câmara adia análise do PL da Devastação “fugindo” da Semana do Meio Ambiente. ClimaInfo, 04 de junho de 2025. https://climainfo.org.br/2025/06/04/camara-adia-analise-do-pl-da-devastacao-fugindo-da-semana-do-meio-ambiente/
[7] ClimaInfo. 2025. Lula não deverá entrar em embate com Câmara contra PL da Devastação. ClimaInfo, 05 de junho de 2025. https://climainfo.org.br/2025/06/05/lula-nao-devera-entrar-em-embate-com-camara-contra-pl-da-devastacao/
[8] Pinto, L.F. 2025. Ministra é atacada, Lula se omite. Amazônia Real, 29 de maio de 2025. https://amazoniareal.com.br/ministra-e-atacada-lula-se-omite/
[9] Stuckert, R. 2025. Lula diz que ainda não leu o PL da Devastação. ClimaInfo, 04 de junho de 2025. https://climainfo.org.br/2025/06/04/lula-diz-que-ainda-nao-leu-o-pl-da-devastacao/
[10] Senado Federal. 2025. Projeto de Lei N° 2159, de 2021. https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8979282&disposition=inline
[11] Fearnside, P.M. 2025. O “PL da devastação” e o sonambulismo do Presidente Lula rumo ao desastre climático. The Conversation – Brasil, 13 de junho de 2025. “PL da devastação” simboliza perigosa contradição entre discurso e prática na política ambiental brasileira
[12] OC (Observatório do Clima). 2025. Análise do PL 2.159/2021 e dos pareceres a ele apresentados no Senado. OC, São Paulo, SP, 114 p. https://oc.eco.br/wp-content/uploads/2025/05/Final-Nota-Tecnica-com-analise-do-PL-2.159-e-emendas-do-Senado1.pdf
[13] Rotta, L.H.S., E. Alcântara, E. Park, R.G. Negri, Y.N. Lin, N. Bernardo, T.S.G. Mendes & C.R. Souza Filho. 2020. The 2019 Brumadinho tailings dam collapse: Possible cause and impacts of the worst human and environmental disaster in Brazil. International Journal of Applied Earth Observation and Geoinformation 90: art. 102119. https://doi.org/10.1016/j.jag.2020.102119
[14] Garcia, L.C., D.B. Ribeiro, F.O. Roque, J.M. Ochoa-Quintero &W.F. Laurence. 2017. Brazil’s worst mining disaster: Corporations must be compelled to pay the actual environmental costs. Ecological Applications 27(1): 5-9. https://doi.org/10.1002/eap.1461
[15] Fearnside, P.M. 2025. O Lula acordará para a crise climática?: 1 – A foz do Amazonas. Amazônia Real, 21 de fevereiro de 2025. https://amazoniareal.com.br/o-lula-acordara-para-a-crise-climatica-1-a-foz-do-amazonas/
[16] Fearnside, P.M. 2025. Por que o Brasil deveria abandonar seus planos de gás e petróleo na Amazônia. Amazônia Real, 21 de maio de 2025. https://amazoniareal.com.br/por-que-o-brasil-deveria-abandonar-seus-planos-de-gas-e-petroleo-na-amazonia/
[17] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real, https://bit.ly/3TuHw9V
[18] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319. Amazônia Real, https://bit.ly/3zTyzTG
[19] Fearnside, P.M. 2025. Clima e a destruição da Amazônia: O “espaço de desinformação” do presidente Lula será penetrado? Amazônia Real, 13 de maio de 2025. https://amazoniareal.com.br/clima-e-a-destruicao-da-amazonia-o-espaco-de-desinformacao-do-presidente-lula-sera-penetrado/
[20] Verdélio, A. 2024. Lula defende reconstrução da BR 319, que corta a Amazônia. Agência Brasil, 10 de setembro de 2024. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-09/lula-defende-reconstrucao-da-br-319-que-corta-amazonia
[21] Vieceli, L. & I. Nogueira. 2024. Lula volta a defender exploração de petróleo na margem equatorial. Folha de São Paulo, 12 de junho de 2024. https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/06/lula-volta-a-defender-exploracao-de-petroleo-na-margem-equatorial.shtml
[22] Prazeres, L. 2025. A estratégia de Lula de usar petróleo da Amazônia na eleição de 2026. BBC News Brasil, 25 de fevereiro de 2025. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c77r7e57ve6o
[23] Fearnside, P.M. 2025. O Lula acordará para a crise climática? 2 – Clima quase fora de controle. Amazônia Real, 26 de fevereiro de 2025. https://amazoniareal.com.br/o-lula-acordara-para-a-crise-climatica-2-clima-quase-fora-de-controle/
[24] Fearnside, P.M. 2025. Última chance para a floresta amazônica brasileira? Amazônia Real. http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2025/Fearnside-2025-Ultima_chance_para_a_floresta_amazonica_brasileira-Serie_completa.pdf
[25] Fearnside, P.M. & W. Leal Filho. 2025. COP 30: políticas brasileiras precisam mudar. Amazônia Real, 27 de março de 2025. https://amazoniareal.com.br/cop-30-politicas-brasileiras-precisam-mudar/
