Para onde vai a China?
Subtítulo original: “Da qualidade à quantidade”: como ver o desenvolvimento histórico da China para além do véu da macroeconomia.
Adam Tooze, Sin Permiso / Economia e complexidade, 28 de junho de 2025
Introdução
No ambiente econômico global, existem poucos fatores mais importantes do que a situação e as perspectivas futuras da economia chinesa. Em termos de paridade de poder de compra, é a maior economia do mundo, com uma participação de 20% do PIB global. Medida em termos de taxas de câmbio atuais, o PIB da China perde apenas para os Estados Unidos.
A China influencia a economia mundial, primeiro, porque é um enorme mercado para exportações de outros países; em segundo lugar, porque é um centro dinâmico de exportações.
As importações da China variam de matérias-primas a marcas de luxo europeias. O preço das ações da LVMH [3], a maior empresa da Europa em capitalização de mercado, sobe e desce com base nos hábitos de consumo das mulheres chinesas; pois, elas formam o segmento de consumo de luxo que mais cresce no mundo.
As exportações da China representam uma grande fatia dos mercados mundiais. À medida que a demanda doméstica chinesa aparece como menos dinâmica, surge a ansiedade sobre o “excesso de capacidade”, com o aumento da pressão sobre as exportações e se começa a falar de “choque chinês”.
Em termos de equilíbrio macroeconômico, conforme discutido em World Economy Now – publicado em maio último – tem-se que o enorme superávit da China é a contrapartida do enorme déficit dos Estados Unidos.
O valor da moeda chinesa está atrelado a uma cesta de outras moedas mundiais. Eis que, assim, se tem uma das regulações da conta capital mais eficazes da economia mundial atualmente. Não é fácil transferir fundos em grande escala para fora da China. Persiste, portanto, incerteza estrutural sobre qual deve ser a taxa de câmbio do renminbi.
A balança comercial sugere uma moeda mais forte. O cenário de fuga maciça de capitais no caso de um relaxamento dos controles de capital sugere uma moeda mais fraca, como aconteceu durante a crise de 2015. Um ajuste repentino da taxa de câmbio chinesa poderia desestabilizar a economia mundial tão severamente quanto as guerras comerciais de Trump.
Por todas essas razões, a China está no centro da macroeconomia global.
Ora, há muitas notícias sobre o desenvolvimento da China que se mostram preocupantes. A sua taxa de crescimento – note-se em primeiro lugar – está bem abaixo das máximas alcançadas há alguns anos. A recuperação da crise da COVID em 2022 – não em 2020! – foi incompleta. A composição da demanda continua a apresentar um desequilíbrio crônico em favor do investimento. Existem sinais perturbadores de pressão deflacionária. O mercado de trabalho, especialmente para os jovens, mantém-se fraco. Tudo isso em um contexto de quase cinco anos de crise no setor imobiliário chinês.
Ver a China dessa maneira, ou seja, como um grande componente do fluxo macroeconômico global, é essencial para entender a economia mundial multipolar no final do primeiro quarto do século XXI.
Mas, por mais útil que seja, essa abordagem macroeconômica também minimiza o drama histórico e a transformação qualitativa vista nas últimas décadas. A economia chinesa é enorme. É preciso notar, em primeiro, que ela está na base da sobrevivência de um sexto da humanidade. Na década de 1970, a renda nacional per capita da China era menor do que a do Sudão e de Zâmbia. Ela não era apenas o país mais populoso do mundo, mas também um dos mais pobres. A ascensão da China durante a era da globalização não é apenas mais uma história econômica entre as muitas que poderiam ser contadas. É, sem dúvida, o evento mais dramático da história econômica mundial.
Para ilustrar esse ponto, considere-se a produção de carvão mineral. Esse insumo tem sido sinônimo de indústria pesada desde a revolução industrial britânica no século XVIII. O gráfico em sequência mostra a produção de carvão mineral ao longo de um quarto de milênio. E ele fornece um bom resumo da história da industrialização no mundo. Em termos gerais, essa história seria escrita em três capítulos: o da era pré-industrial; o da era do industrialismo ocidental clássico, dominado pela Grã-Bretanha, Estados Unidos e Alemanha, que se estendeu da década de 1850 até o final do século XX; e, finalmente, o da era chinesa, que começou no século XXI.
Ao se fazer uma análise macroeconômica – e imediata – do lugar da China na economia mundial, em 2025, vale a pena ter em mente esses 250 anos de história.
Hoje, com um PIB per capita em termos de paridade de poder de compra de US$ 24.569, a China é oficialmente classificada como uma economia de “renda média-alta”. Ela ultrapassou em muito a Índia (que em 1990 ainda estava à frente da China). Ela também ultrapassou a Indonésia. Ademais, ultrapassou o Brasil e alcançou o México. A China está agora prestes a subir para a categoria de países de “alta renda”.
Essas medidas estatísticas do Banco Mundial não fornecem uma visão adequada da China. Pelo meu conhecimento superficial, surpreende-me que elas não ponham a China num lugar consideravelmente mais avançado do que aquele ocupado pelo Brasil e pelo México. Longe de exagerar o crescimento da China para fins de propaganda, elas fazem o contrário. Uma anedota diz que os especialistas chineses em comitês internacionais relevantes se esforçam sempre para gerar números de PPC que subestimem o desenvolvimento de seu país.
Macroeconomia e história econômica
De qualquer modo, há duas imagens da China: uma que provém do seu papel macroeconômico global e uma outra que conta a história de seu desenvolvimento histórico mundial. Não se deve, pois, confrontar essas duas versões, mas fazer um esforço para descobrir como elas se inter-relacionam e condicionam uma à outra.
Se podemos falar sensatamente da China atualmente como apenas mais uma grande economia – e não como um país que se debate com problemas básicos de desenvolvimento –, é porque ela realmente experimentou algo verdadeiramente excepcional, ou seja, um desenvolvimento econômico espetacular em menos de duas gerações.
Vamos fazer uma pausa por um momento para refletir sobre essa virada.
A dialética nos oferece uma maneira de pensar o processo pelo qual uma mudança quantitativa contínua se transforma numa transformação qualitativa. E é isso que está acontecendo no caso da China. Por exemplo, uma coisa é ser um participante importante no setor de veículos elétricos, mas outra bem diferente é dominar completamente todas as fases da cadeia de suprimentos global. Nesse ponto, a participação de mercado medida em pontos percentuais – que em si mesmo é apenas uma métrica quantitativa –, revela-se como uma distinção qualitativa, índice de um poder mais elevado.
Mas a China também ilustra dramaticamente o processo oposto. Uma mudança qualitativa em larga escala – “abertura de mercado” e “reforma de mercado” – foi capaz de elevar o padrão de vida da sociedade como um todo. Torna-se questionável, portanto, tratá-la apenas como “outra grande parte da economia mundial”, sem notar como difere em termos macroeconômicos da zona do euro ou da economia dos EUA. Uma história de mudanças qualitativas radicais dá lugar a uma métrica quantitativa enganosa.
Alguns teóricos em ciências sociais, assim como certos profissionais de mercado, usam as mesmas palavras para apreender superficialmente o efeito dessa dialética da mudança da qualidade em quantidade: eles empregam o termo “expansão do mercado”. Pois, se um produto distinto e de distinta marca – eis que possui qualidades específicas e vem por meio de uma narrativa própria –, é posto à venda em larga escala, ele dilata o mercado, mas, ao fazê-lo, apaga também aquilo que o distingue como uma novidade radical. Em termos intelectuais, transformar a história do desenvolvimento radical e transformador da China numa mera questão de “crescimento global” é considerá-lo meramente como causa de mais uma “expansão do mercado”.
Claro, a comparação quantitativa permitida pela expansão do mercado tem várias dimensões. Em primeiro lugar, novos produtos foram transformados em mais mercadorias. Mas o foco de ambas oblitera as mudanças qualidades envolvidas. Em termos narrativos, implicam numa espécie de cegueira histórica – pois, não questionam como se chegou até esse ponto. Ademais, escondem também o significado social e político mais amplo das tendências atuais e da rede de forças sociais, políticas, culturais e materiais que estão a impulsionar o desenvolvimento futuro. Por isso, não cometemos nenhuma injustiça com a macroeconomia se a considerarmos como uma abordagem heurística e estatística. A sua vocação não vem a ser a busca profunda pelo significado histórico.
Portanto, se quisermos ter essas duas dimensões em nossas análises econômicas, devemos aprender a alternar entre qualidade e quantidade, qualidade e quantidade etc.
Claro, pode-se objetar que tudo o que estou tentando apresentar em termos bastante grandiloquentes não passa do método empregado por qualquer bom jornalista econômico. Uma boa história econômica vai e volta entre o particular e o geral, entre a experiência histórica e os números do PIB. É verdade. Trata-se de um estilo narrativo familiar. Mas há uma diferença entre uma anedota que serve apenas como um “gancho” e o esforço para encontrar realmente uma abertura – uma fechadura que se abre – que nos permita entrar na complexidade da realidade histórica. Como disse certa vez Stuart Hall, o desafio é encontrar um modo de “romper a casca” da conjuntura histórica que estamos tentando decifrar.
Também está claro que essas observações metodológicas gerais se aplicam a qualquer grande processo de mudança socioeconômica e que pode ocorrer em qualquer lugar. Elas se mostram relevantes para refletir sobre as revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, sobre o crescimento ultrarrápido da Europa após 1945 ou sobre a transição para a energia verde. No caso da China – e talvez em todo o Leste Asiático em geral – elas se impõem devido à velocidade e à dramaticidade da transformação socioeconômica.
Contudo, não se trata simplesmente de tomar ciência dessa grande e vertiginosa mudança. Também poderíamos pensar atualmente nos efeitos da falta de desenvolvimento. Será que um crescimento econômico quantitativo muito lento, como aquele que se verifica agora em grande parte da Europa, induz as pessoas a se sentirem passivas, pensando que o “fim da história” chegou?
Observar-se-ia um crescimento mais lento devido à docilidade crescente do “espírito animal” dos investidores? Por outro lado, como a transformação explosiva da China está mudando o significado da relativa falta de crescimento em grande parte da África Subsaariana? Como o desenvolvimento pode ocorrer mesmo sem um crescimento mensurável do PIB e vice-versa?
Todos esses são tópicos requerem novas e informativas notas futuras. Mas, por enquanto, vamos ficar com algo mais específico. Como neste verão europeu inclemente a dialética qualidade-quantidade-qualidade nos ajuda a entender melhor a situação econômica da China e sua relação com a economia mundial?
Tomemos quatro dimensões importantes da situação atual, cada uma das quais pode ser considerada em termos macroeconômicos a-históricos e/ou histórico-evolutivos.
* O processo de urbanização e crise imobiliária
* Mercado de trabalho e o desemprego dos jovens
* Superávit comercial e superpotência industrial
*Deflação e novo regime de acumulação
I – Urbanização e a crise imobiliária
O motor central da história econômica recente da China se encontra na história do setor imobiliário.
Nesse sentido, a China é um caso extremo de um padrão geral. Não é exagero dizer que, na história moderna, o setor imobiliário está na base do ciclo de negócios. Mas vamos dar um passo para trás e pensar sobre o que estamos dizendo. O comportamento do setor imobiliário na China nos últimos trinta anos parece semelhante ao do setor imobiliário de outras economias, em outros momentos da história econômica?
Não, claramente não. O boom imobiliário na China, que parou abruptamente em 2020/2021, não foi simplesmente uma bolha dentro de um mercado bem estabelecido, tal como o de Londres ou da Flórida. A China não tinha ao menos algo parecido com a propriedade privada de imóveis até o final dos anos 1990. Então, no espaço de uma única geração, ela embarcou no maior boom de construção da história, a tal ponto que quase 90% das casas chinesas foram construídas nos últimos trinta anos. Nesses mesmos vinte e cinco anos, aproximadamente 500 milhões de chineses, ou seja, toda a população da Europa, mudaram-se do campo para a cidade.
Logo, não se observou simplesmente um boom imobiliário. Viu-se, isso sim, um processo histórico de reassentamento de uma grande população. O “boom imobiliário” da China foi um dos principais fatores que produziram aquilo que foi chamado de Antropoceno. Eis que foi uma mudança fundamental na relação da humanidade com o sistema econômico planetário. A quantidade de aço e concreto que foi derramada e cravada no solo na China mudou a forma física do planeta.
Dito disso, indaga-se: como terminou o “boom imobiliário” da China? Houve um superaquecimento tal como ocorreu como os outros mercados especulativos anteriores? Ele causou o colapso espontâneo de uma grande incorporadora imobiliária, provocou uma retirada maciça de depósitos de bancos parceiros, tal como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos em 2007/2008?
Não, o impulso de urbanização, tal como ocorreu na China, apesar de ter sido produzido pela atividade mercantil, chegou ao fim pela decisão deliberada dos líderes chineses. A hipótese mais plausível é a de que essa decisão veio no verão de 2020, quando eles arrogantemente acreditavam ter “vencido” a competição global para conter o COVID.
Também nesse sentido, a crise imobiliária chinesa é historicamente excepcional. Eis o que noticiou o The Economist às vésperas da crise de 2020: o setor imobiliário, em termos gerais, chegou a contribuir com cerca de 25% do PIB chines; contudo, atualmente, ele representa 15% ou menos. “É difícil exagerar o impacto depressivo” – avaliou – “da queda dos preços sobre a população. Em 2021, 80% da riqueza familiar estava vinculada aos imóveis; esse número caiu agora para cerca de 70%.”
Enquanto isso acontecia, eu pensava comigo mesmo: se Pequim conseguir realizar o ajuste sem um colapso total como o que ocorreu no Ocidente em 2008, este seria um dos casos mais espetaculares de gestão macroprudencial da história mundial, talvez o mais espetacular. Ora, nesse verão europeu de 2025, os sinais parecem sugerir que alguma estabilização foi alcançada. Nos mercados mais privilegiados, especialmente em Xangai, há sinais de que uma recuperação real está em curso. Como a situação não está mais se deteriorando, como não se fala mais de pânico financeiro relacionado à incorporadora Evergrande, é de se esperar uma virada importante no futuro.
Sem dúvida, o processo de adaptação da sociedade chinesa às novas condições será extremamente prolongado. Nessa sociedade, como se sabe, o setor imobiliário é uma obsessão. A riqueza privada em imóveis continua central. Para os jovens, o setor imobiliário é a chave para o sucesso em mercados competitivos de casamento. Portanto, uma mudança fundamental da “classe de ativos” como tal é altamente improvável. No entanto, é muito incerto que forma a eventual reativação assumirá e onde ela será concentrada.
Se nos atermos à perspectiva de desenvolvimento de longo prazo, uma coisa é clara: afigura-se muito prematuro concluir que o processo de urbanização chegou ao fim na China. Ao se consultar o valioso sítio Pekinology obtém-se uma resposta: um especialista como Zhou Tianyong, que é diretor do Laboratório Nacional de Engenharia Econômica da Universidade de Finanças e Economia de Dongbei, considera que o processo de urbanização está longe de terminar. Eis o que diz:
“Em 2023, a população ativa total da China atingiu 740,41 milhões de pessoas. Embora o setor agrícola tenha contribuído com apenas 6,9% para o PIB, o emprego agrícola ainda representava 23,5% do emprego total, com 168,82 milhões de pessoas trabalhando na agricultura. Este valor é 14 pontos percentuais superior ao dos países de referência com populações semelhantes e níveis de desenvolvimento comparáveis”.
“Ou seja, se não fosse o sistema de ordenamento do território e a gestão administrativa que restringe o acesso dos agricultores aos setores secundário e terciário, assim como o sistema de registo de agregados familiares (conhecido como “hùkǒu”), o emprego agrícola em 2023 não teria ultrapassado os 70,33 milhões. Isso implica que o impacto combinado desses dois sistemas, ocorreu uma perda de 98,5 milhões de empregos nos setores secundário e terciário”.
II – O mercado de trabalho insuficiente
Outra preocupação macroeconômica fundamental é o mercado de trabalho e, em particular, o desemprego juvenil.
Não está claro qual vem a ser a gravidade real da situação atual na China. Mas o que parece bem nítido é que as perspectivas para os graduados se mostram cada vez mais sombrias e se constituem como motivo de profunda preocupação.
O fechamento do mercado de trabalho para os novos entrantes é um efeito clássico das crises cíclicas graves. Aqueles que têm empregos se apegam a eles de tal modo que os novos demandantes de trabalho ficam excluídos. Aqueles que são afetados por essa barreira, precisamente no momento de ascensão de suas carreiras, tendem a sofrer um trauma geracional.
Mas o que a China está experimentando vai além de uma recessão cíclica. Ela experimentou uma desaceleração repentina, passando de uma taxa média de crescimento de 7,7% ao ano na década de 2010 para pouco mais de 5%, de acordo com dados oficiais. A Europa experimentou algo semelhante nas décadas de 1970 e 1980, quando o crescimento desacelerou após a crise do petróleo de 1973. Não ocorreu apenas uma desaceleração temporária, mas uma mudança histórica permanente.
Ora, esse evento figurará como um choque histórico nas biografias de toda uma geração. Embora pelos padrões históricos o crescimento permaneça alto – a China espera um aumento do PIB de 5% neste ano – esse ajuste repentino para baixo nas expectativas causa preocupação.
Novamente aqui, a história é essencial para entender o significado da desaceleração da década de 2020. Os graduados de hoje nasceram no boom dos anos 2000. Eles nasceram após a turbulência do primeiro período de reforma e a reestruturação da indústria pesada maoísta no final dos anos 1990. A sua experiência de vida como crianças e jovens se deu num boom econômico surpreendente.
Por isso, o futuro se apresentou para eles como um solavanco que desequilibrava de modo fundamental os seus planos de vida. Contudo, é preciso somar a isso uma outra mudança histórica. As gerações nascidas no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000 suportaram o peso da política do filho único, com a proporção de filhos únicos excedendo 50% nas áreas urbanas. O fardo das expectativas dos pais e avós de ambos os lados – a famosa estrutura familiar 4: 2: 1 – é enorme.
Os mais sortudos e talentosos das gerações mais jovens são o produto de um sistema educacional competitivo e orientado para o desempenho, o qual se expandiu rapidamente a partir dos anos 2000, trazendo a promessa de mobilidade social ascendente. Entre 1990 e 2020, o número de chineses matriculados na universidade aumentou de cerca de 2,3 milhões para 45 milhões.
Trata-se, pois, de uma expansão na qual as famílias investiram enormes somas de dinheiro em taxas de ingresso e em mensalidades. A perspectiva de que esse investimento não seja recompensado em termos de sucesso na carreira, propriedade imobiliária e um “bom casamento” é devastadora. Foi sem surpresa, portanto, que, no outono de 2022, protestos contrários ao fechamento foram vistos; eles começaram na fábrica do iPhone da Foxconn, mas rapidamente se espalharam para os campi universitários. Uma folha em branco de papel A4 se tornou o símbolo dessa revolta.
O que tudo isso significa em termos macroeconômicos? Além do desemprego juvenil, um outro indício sobressai. Os números indicativos da confiança do consumidor mostraram uma queda dramática, não em 2020 com a chegada da pandemia da COVID, mas em 2022, quando ocorreram os bloqueios devido ao espalhamento da variante Omicron. E eles coincidiram com a implosão do mercado imobiliário. Criou-se, assim, uma atmosfera geral de insatisfação e de desilusão.
Ora, mesmo que o crescimento aumente e que permaneça em torno de 5%, o choque assim relatado “ficou embutido no sistema”.
Por outro lado, novas gerações estão surgindo. À medida que a geração nascida por volta do ano 2000 chega à meia-idade, 163 milhões de chineses, nascidos na década de 2010, entrarão no ensino superior e no mercado de trabalho. O que os espera é um crescimento mais lento. E eles, por outro lado, são a primeira geração de chineses a crescer num mundo digital, em que a mídia social se tornou onipresente e consumidora. Porém, o mundo exterior à China permanece vagamente vislumbrado devido a “barreira de proteção” mantida pelo governo do PCC; contudo, ela não se afigura para a grande maioria como uma cortina de ferro intimidante, mas como um perímetro do “mundo conhecido”.
III – Uma economia movida pela exportação
A preocupação mais recente no debate macroeconômico global sobre a China concerne à elevação de seus superávits comerciais.
E esse ponto tem suscitado questionamento em todo o mundo; pois, ele foi capaz de reacender certas ansiedades antigas sobre a possibilidade da dominação chinesa. Ora, não se apreende o que está acontecendo na China se olharmos simplesmente para os montantes da balança comercial e seu impacto nos mercados mundiais. O que é verdadeiramente espetacular é o surgimento da China como a maior superpotência manufatureira que o mundo já viu.
Note-se, de início, que a primeira fase do crescimento da China a partir da década de 1990 foi apenas um prelúdio para o estrondo que veio depois. O crescimento nesse período foi impulsionado por uma combinação de indústria pesada – carvão, aço, cimento – e manufatura leve. Já a fase seguinte e atual de expansão industrial está baseada em avanço tecnológico.
Eis que a China está se tornando a única economia do mundo que tem capacidade, experiência e mão de obra para fabricar praticamente qualquer coisa, desde têxteis baratos até caças supersônicos e microchips. A demanda de exportação é importante para a indústria da China; porém, após a crise de 2008, o seu esteio passou a ser a demanda doméstica. Com a crise da pandemia do coronavírus, contudo, a demanda do resto do mundo ressurgiu como uma grande força de expansão.
Ora, onde se encontra a força da indústria chinesa? Tim Cook, CEO da Apple, explicou que ela não se encontra precisamente na mão de obra barata: aqueles que pensam que a Apple foi para a China, que a sua cadeia de suprimentos está na China. por causa do baixo custo da mão de obra não compreende o seu processo de fabricação. A Apple está na China porque encontra lá uma extensa rede de produtores com os quais ela pode colaborar.
E esse resultado se deve em parte às políticas específicas do governo chinês. O exemplo mais notório é o programa “made in China”, lançado em 2015. Mas as características estruturais do desenvolvimento da China também são importantes. Eis que foi capaz de construir um processo autossustentável de desenvolvimento econômico familiar e regional, baseado em economias de rede e em distritos industriais.
Aquilo que está acontecendo na China, também reflete a dramática expansão do ensino técnico e superior em particular nas disciplinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática. E isso não ocorre apenas no interior da própria China. Há também um enorme fluxo de estudantes chineses que estudam no exterior, particularmente em programas que privilegiam as disciplinas acima elencadas. E isso também aponta para uma diferença significativa entre a China e seu grande concorrente asiático, a Índia, que colocou muito menos ênfase na educação técnica.
É claro que a macroeconomia é fundamental para o entendimento do desequilíbrio entre exportações e importações. Um enorme superávit comercial pode ser considerado como um sinal de demanda interna insuficiente. Mas mesmo que esses desequilíbrios fossem resolvidos por ambos os lados – ou seja, por meio de um aumento da demanda de consumo na China e de uma redução do consumo nos Estados Unidos –, isso afetaria pouco a centralização da produção industrial do mundo na China.
IV – Sobre a tendência deflacionária
Nenhum setor mostra essa tendência, e de forma mais espetacular, do que aquele das novas fontes de energias, no qual o domínio chinês é enorme. E é precisamente esse setor que nos leva à última questão a ser aqui abordada, uma questão, aliás, que deveria estar no topo da agenda da política macroeconômica: a deflação.
Ao contrário da tendência inflacionária global, a China flerta com a deflação há cerca de cinco anos: em seus mercados de bens de consumo e investimento, os preços estão caindo ou mal subindo.
A deflação é perigosa para a economia tanto em sua forma aguda e repentina, como durante a Grande Depressão da década de 1930, quanto em sua variedade lenta e constante, como ficou demonstrado no Japão desde a década de 1990. Fundamentalmente, a queda dos preços, embora seja boa para os consumidores e possa ser considerada um sinal de “competitividade”, muda os termos de troca em detrimento dos produtores, afetando negativamente as taxas de lucro.
Ao deprimir a rentabilidade, a deflação tende a tornar os novos investimentos cada vez menos atraentes, especialmente se eles precisarem ser financiados com empréstimos, pois as dívidas decorrentes aumentarão em termos reais à medida que os preços caem. Ao mesmo tempo, os consumidores passam a esperar novas reduções de preços e, por isso, adiam os seus gastos até o último momento. Ademais, a acumulação de dinheiro, cujo valor aumenta à medida que os preços caem, torna-se um investimento mais seguro.
A resposta óbvia da macroeconomia à deflação consiste basicamente em impulsionar a demanda agregada, estimulando as famílias a aumentarem o consumo. Eis que o investimento nessa situação só tenderá a aumentar o excesso de capacidade.
Ao invés de aceitar essa recomendação da macroeconomia, o governo chinês respondeu aos crescentes sinais de deflação com um discurso cada vez enganoso sobre a necessidade de regular a concorrência excessiva. O exemplo mais claro de tal competição “excessiva”, especialmente para comentários jornalísticos – aqui o termo “gancho” é realmente apropriado – encontra-se na indústria chinesa de veículos elétricos. A BYD, líder mundial, surpreendeu recentemente a concorrência com a apresentação de um novo modelo básico, o Seagull, ao qual está aplicando descontos a preços sem precedentes.
Os macroeconomistas não apreciam misturar as questões atinentes ao nível da demanda agregada e à inflação/deflação, por um lado, com as decisões gerenciais sobre os preços, por outro. Conter os esforços da BYD para esmagar a concorrência não poderia acabar com o risco deflacionário na economia chinesa. Contudo, é igualmente claro que, para que haja deflação, tem de haver empresas que baixam os preços; logo, para impedir a deflação, é preciso convencer as empresas que não precisam continuar a reduzi-los.
Na perspectiva da política macroeconômica, a questão é como garantir uma demanda agregada suficiente para que o enorme potencial produtivo das novas tecnologias não se torne uma maldição, mas um meio de impulsionar o crescimento econômico sustentável. Como a China, pois, pode evitar que choques de oferta milagrosos e devastadores agravem a pressão deflacionária? Como evitar que o novo sector da energia, que está em processo de mudança no mundo, entre numa espiral deflacionária descendente?
Como as cidades e governos provinciais da China podem reiniciar o processo de urbanização de forma mais inclusiva e sustentável? Como a economia da China pode continuar a se reequilibrar, longe do crescimento impulsionado pela indústria pesada e pela construção, e com maior ênfase na reprodução social, no cuidado e em um conceito mais amplo de bem-estar?
Seja de cima para baixo ou de baixo para cima, a questão mais básica que resta a ser respondida é que novo significado dar ao “sonho chinês”, especialmente para os jovens na casa dos vinte anos, que correm o risco de se tornar uma “geração perdida”. Nesse sentido, a revolução dos veículos elétricos liderada pela China na década de 2020 também é significativa. Entre os jovens, tanto os mais liberais quanto os mais nacionalistas, os veículos elétricos são vistos como um símbolo da modernidade sob a liderança mundial da China.
Conclusão
Este ensaio foi escrito em marcha forçada com o objetivo de conectar quatro pontos de interesse comum sobre a situação macroeconômica da China: a evolução do setor imobiliário, o desemprego juvenil, a balança comercial e a deflação. Sob esse rótulos encontram-se as questões mais relevantes sobre a história e o desenvolvimento recentes da China.
Fazer justiça a qualquer uma dessas questões exigiria muito mais espaço e muito mais conhecimento do que possuo. O meu objetivo aqui foi simplesmente o de demonstrar o valor desse tipo de abordagem. O meu propósito foi alertar para os momentos em que a qualidade se transforma em quantidade e vice-versa.
Pode-se julgar que a “urbanização de centenas de milhões muda o mundo”, mas esse evolver pode ser reduzido a nada mais do que um boom imobiliário. É assim que surgem diferentes possibilidades análise e diferentes narrativas. O desse ensaio foi tentar ver além dos esquemas macroeconômicos, enxergado as forças historicamente específicas e, em última análise, mais poderosas em jogo.
Não sou o primeiro a levantar esse tipo de questão. Sabe-se que é precisamente isso o que uma boa história e uma boa análise social crítica devem fazer quando confrontadas com as limitações de conceitos macroeconômicos familiares. Neste caso particular, estou em dívida com o trabalho de Lan Xiaohuan, da Universidade de Fudan, cujo livro How China Works: An Introduction to China’s State-led Economic Development oferece uma perspectiva de desenvolvimento fascinante sobre a história econômica recente da China.
Mas uma das atrações dessa abordagem é que ela nos permite ouvir – trata-se realmente de ouvir – como os chineses descrevem sua própria situação. A China insiste em se referir a si mesma como um país em “desenvolvimento”; ela assume que o “desenvolvimento” consiste no objetivo principal de sua política. A expressão 发展 (fāzhǎn) aparece repetidamente nos títulos postos pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, que é como se sabe, o centro de fato do planejamento chinês, assim como nos títulos apresentados pelo Conselho de Pesquisa de Desenvolvimento do Conselho de Estado.
Com muita frequência, a questão de saber se a China deve ser ainda considerada como uma “economia em desenvolvimento” é tratada como uma questão astuciosa pouco importante. Os críticos ocidentais alegam que a China está se esquivando de suas responsabilidades ao insistir em seu status de país em desenvolvimento. Mas, trivialidades à parte, como argumentei aqui, a questão é realmente fundamental. A China é uma sociedade enorme e complexa, com um regime poderoso que está passando pelo processo mais dramático de mudança socioeconômica da história mundial. Descrever, poia, esse processo contínuo como um processo de desenvolvimento é, no mínimo, um eufemismo.
Na verdade, um questão avulta: por que não aprendemos com os chineses? Não seria sensato que as economias avançadas ocidentais também fossem consideradas “em desenvolvimento”? Ou a dificuldade de proceder desse modo denota um ponto cego revelador?
Ora, o desenvolvimento enquanto um conceito de mudança econômica implica em grande abrangência, em mudança qualitativa e em propósito deliberado, os quais desafiam as políticas dos países ricos. Nos Estados Unidos, a visão ousada do “green New Deal” do presidente Biden se resumiu à Lei de Redução da Inflação. As tarifas de Trump e o seu orçamento chamado de Big Beautiful Bill são uma paródia do nacionalismo econômico. O melhor que a UE poderia fazer era implementar o NextGen EU em 2020.
Eis para finalizar, o que Wang Yiwei, da Academia de Pensamento Xi Jinping da Universidade Renmin, apontou: “O desenvolvimento é uma ‘questão política’ permanente… A legitimidade do partido depende em parte da riqueza que está por vir… Se não estamos está ‘avançando’” – diz – “é porque estamos já em declínio.”
Ora, essa franqueza desarma… Contudo, o Ocidente realmente teria outro modo de se expressar sobre o problema?
[1] Ocupa a cadeira de história Shelby Cullom Davis na Universidade de Columbia e é diretor do Instituto Europeu. Em 2019, a revista Foreign Policy o nomeou um dos principais pensadores globais da década. O seu último livro é “Shutdown: How Covid Shook the World’s Economy”.
[2] Fonte: https://adamtooze.substack.com/p/chartbook-393-whither-china-world
[3] LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton SE, ou simplesmente LVMH é uma holding francesa especializada em artigos de luxo. Dois grupos Moët et Chandon e Hennessy foram formados pelas fusões dos grupos Moët et Chandon e Hennessy e, posteriormente, do grupo resultante com a Louis Vuitton.