Chico Whitaker: outro legislativo é possível?
CHICO WHITAKER*
A terra é redonda, 1 de julho de 2025
Se o Congresso atual parece uma caricatura da sociedade brasileira – branco, masculino e milionário –, a culpa não é só do sistema eleitoral, mas da nossa passividade. Aceitar a compra de votos como “normal” é compactuar com a distorção da democracia
1.
O atual noticiário político nacional das últimas semanas, centrado quase unicamente no enfrentamento do Presidente Lula com o atual Congresso, está levando muitos a se perguntarem por que isso acontece. Seria possível um Legislativo que não criasse tantos obstáculos à realização das promessas de campanha do candidato eleito para chefiar o Executivo?
Na verdade, a Câmara dos Deputados, está tentando, associada ao Senado, impor ao país não o que o povo esperava, ao eleger Lula, mas o que as maiorias do Poder Legislativo teriam como objetivo se fossem o governo do país: que ele continue dividido em dois, em cima minorias privilegiadas em tudo na sua vida e em baixo maiorias pobres e mesmo na miséria.
O que é totalmente diferente – e antagônico – à construção, é disso que se trata, da sociedade igualitária e justa em que Lula, em sua campanha, prometeu se engajar.
Sabemos que vivemos num Estado democrático de direito – um regime de governo do povo, pelo povo e para o povo, sob o império da lei. Ou, em outras palavras, um regime em que todo cidadão ou cidadã, organização social ou empresa, e mesmo governo, só pode fazer o que está autorizado por lei. Ora, o Executivo não pode mexer uma palha sem autorização legal, e é o Poder Legislativo que lhe dá essa autorização, por meio das leis que aprova.
Mas ele pode com isso imobilizar totalmente o Executivo, como está tentando? Não existe desde o século XVIII o sistema de freios e contrapesos proposto em 1748 por Montesquieu, na França, e desenvolvido por Madison nos Estados Unidos em 1787, para equilibrar o poder dos três Poderes?
É por esse sistema que o Executivo pode vetar partes ou toda uma lei aprovada pelo Legislativo. Mas este Poder pode derrubar esses vetos e promulgar ele mesmo a lei. Por outro lado, o Executivo tem o poder de baixar decretos como se fossem leis, de validade imediata, as chamadas Medidas Provisórias. Mas o Legislativo tem que aprová-las dentro do prazo fixado na Constituição e elas caem por terra se não o forem.
2.
Não foi assim que há poucos dias a Câmara impôs uma fragorosa derrota ao Executivo, ao recusar uma de suas Medidas Provisórias exatamente em torno da principal diferença que existe entre os modelos de sociedade que o Executivo e a maioria do Legislativo defendem?
Ela juntou 293 votos dos 513 deputados que tinha a Câmara (“tinha” porque esse número acaba de ser aumentado pelo próprio Legislativo) para dizer “não” à proposta do Executivo de “tirar” uma pequena parcela dos recursos dos ricos do país – a minoria da sociedade, que essa maioria de fato representa – para atender necessidades da maioria de “pobres”, que o governo Lula tenta atender até porque foi por ela eleito para fazer exatamente isso. Com o detalhe de que foram ignoradas negociações para diminuir o impacto no bolso dos ricos.
Para nós, cidadãos e cidadãs leigos no assunto, parece faltar algum elo nessas engrenagens, porque na prática a palavra final está ficando com o Legislativo, que não deixa de o usar para que prevaleçam suas escolhas, a não ser que o Poder Judiciário possa intervir nessa disputa de poder.
Qualquer que seja o desfecho deste embate, com a intervenção ou não de outro Poder da República na lógica dos freios e contrapesos, ele nos fornece um argumento essencial para a apresentar o objetivo deste texto: uma proposta para interferir na composição de nosso Legislativo, para que ele represente nossas maiorias mais do que carentes e não nossas minorias privilegiadas.
Ou seja, sobre o que nós, cidadãos e cidadãs, nossas organizações sociais e nossos partidos podem fazer para que não assistamos a tudo como espectadores passivos, para a alegria somente de jornalistas bem pagos para transformar tudo em espetáculo.
Como essa enorme maioria se formou? Contando com uma das maiores bancadas temáticas da oposição ao governo Lula, a do agronegócio, com seus 306 membros segundo estatísticas recentes. Note-se que formar bancadas temáticas – do boi, da bala, evangélica – é muito mais eficaz (porque elas podem crescer sem limites), do que as tradicionais “frentes” e bancadas partidárias, controladas em sua composição pelo Regimento Interno da Câmara. Mas só agora os apoiadores do governo Lula estão acordando para essa estratégia.
Ora, já sem isso as últimas eleições deram como resultado uma representatividade completamente falsa – praticamente de ponta cabeça – da população do país: nossos deputados e deputadas são 143 empresários, 103 agropecuaristas e grandes proprietários rurais, 54 militares e policiais, 51 advogados e operadores de direito, 29 profissionais da saúde, 25 religiosos, 21 professores, 19 funcionários públicos não militares, 9 jornalistas comunicadores e artistas, 2 de sindicatos e movimentos sociais, 50 não informados.
E o quadro fica ainda menos representativo se considerarmos que 422 são homens e só 91 mulheres; por cor são 345 brancos, 139 negros, 28 amarelos e outros; e 5 indígenas.
Mas esse quadro é de difícil superação – porque depende, para ser modificado, de processos eleitorais a cada quatro anos. Assim, não será fácil compor no Congresso uma maioria que represente realmente nosso povo. E sabemos que no Legislativo suas decisões enquanto corpo legislativo não são tomadas pelos seus Presidentes e nem pela sua Mesa diretora, mas pelo voto da maioria de seus membros.
3.
Como sair desse impasse, e sonhar com outro Legislativo? Começando já – nas eleições de 2026 – um processo de tomada democrática do poder, antes que toda a nossa democracia seja empurrada para o brejo, como está acontecendo em muitos países do mundo, o que está levando a guerras bárbaras, que levam muita gente – e nós mesmos, longe delas, se temos algum sentimento de solidariedade humana – a sofrer.
Eu ousaria dizer que, a partir da experiência na qual alguns partidos e muitas organizações sociais – como a CNBB – já se envolveram, com grande sucesso, temos que atacar uma das distorções fundamentais do nosso processo eleitoral e da nossa democracia: a possibilidade de um candidato ser eleito comprando votos de eleitores.
Temos que erradicar definitivamente de nossas práticas eleitorais, em pelo menos três campanhas seguidas (2026, 2028 e 2030) um crime pela primeira vez tipificado em 1932, há quase cem anos, em nosso primeiro Código Eleitoral. “dar, oferecer, prometer ou receber, para si ou para outra pessoa, qualquer vantagem, como dinheiro, bens ou favores, em troca de votos.”
Era uma nova maneira de manter no poder a elite dominante, que antes contava com o voto de cabresto e com o voto a bico de pena nas atas eleitorais, que ela mesma escrevia. Não podemos chegar em 2032 comemorando cem anos de crimes eleitorais impunes.
Ora essa prática foi se transformando, ao longo desse longo tempo, uma parte integrante de nossa cultura política, como a de todos os países com grande desigualdade social.
Isto simplesmente porque os legisladores da ocasião, e todos os outros que se seguiram até o fim do século passado, cometeram um pequeno grande erro: tipificaram o crime – como podendo ser cometido tanto por quem compra como por quem vende o seu voto – mas não deram à Justiça Eleitoral, então também criada, instrumentos e meios legais para coibir esse crime. Resultado conta-se nos dedos aqueles que ao longo desses anos foram punidos por comprarem votos.
4.
Isso de fato só começou a acontecer quando a sociedade civil decidiu utilizar o poder que lhe foi dado na Constituinte de 1988 de apresentar Iniciativas Populares de Lei. E ela enfrentou um tema que nunca seria abordado pelo próprio Legislativo, cujos membros eram os principais beneficiários desse crime (e por isso mesmo quando ela foi encaminhada ao Congresso se dizia que ela nunca seria aprovada…).
E liderada pela Comissão Brasileira Justiça e Paz, com o forte apoio da CNBB, decidido em Assembleia Geral, recolheu o milhão de assinaturas exigidas, num esforço de dois anos, que resultou na lei 9840/99, promulgada em setembro no último ano do século passado.
A surpresa de sua aprovação ensejou a criação do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral) associado a esta proposta, que dez anos depois apresentou a iniciativa popular da Lei da Ficha Limpa, também apoiada em Assembleia Geral pela CNBB. E levou também à surpresa dos seus resultados: nas eleições seguintes 623 candidatos não conseguiram se eleger porque foram punidos pelo crime da compra de votos, perdendo seus registros de candidatos e até mandatos, e ficando inelegíveis por oito anos (conforme a Justiça Eleitoral).
Na verdade, quem se candidata a um cargo do Legislativo tem que obter um grande número de votos porque os quocientes eleitorais são bastante altos. E é difícil obter esse número somente com belos discursos e provas de todas as próprias qualidades e de que vai cumprir suas belas promessas.
Mas o caminho da compra de votos é muito mais fácil – basta ter dinheiro para se obter muitos votos e com muito dinheiro colhê-los aos milhares. Naturalmente isso foi imediatamente percebido pelos sucessores da elite, cujo objetivo fosse somente entrar na classe política para enriquecer.
Entre esses candidatos há muitos que podemos classificar como oportunistas e aproveitadores, sendo ou não – seres humanos que todos somos – da elite dominante. Eles logo viram que no Brasil – país que no mundo ostenta as maiores taxas de desigualdade social – era enorme o mercado de eventuais compradores de votos, até por necessidade de sobrevivência.
O resultado é a baixa qualidade ética e política de muitos de nossos parlamentares, especialmente aqueles mais gananciosos que nem precisam entrar em bancadas da direita para incharem suas maiorias e receberem as compensações que buscam.
Não podemos criar, ao longo dos próximos três anos, em cada um dos municípios brasileiros, pequenos coletivos de eleitores dispostos a fiscalizar as eleições quanto a compra de votos, para denunciá-las ao MP que as encaminhará ao Juiz que as punirá? Para isso seguramente contaremos com o apoio dos aguerridos membros do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), uma entidade que reúne mais de 70 organizações sociais nacionais! Vamos em frente nessa revolução pela democracia! Pelo menos nossos netos nos agradecerão.
*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.