Os evangélicos e os materialismos da moral
Antes de ridicularizar o moralismo alheio, é preciso decifrar os interesses materiais que ele mascara. A adesão evangélica não é mera ignorância, mas uma resposta concreta a um Estado ausente, que troca a assistência social por uma promessa de ordem e prosperidade familiar
John Karley de Sousa Aquino, A terra é redonda, 20 de agosto de 2025
1.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (2018–2022), a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, foi uma das integrantes do governo mais bem avaliadas pela população mais pobre,[i] principalmente pelas mulheres.
Quando eu era professor em uma escola municipal no bairro Jereissati III, em Pacatuba, ouvi muitas pessoas elogiando a proposta do governo de uma suposta “abstinência sexual” como forma de prevenir a gravidez na adolescência. Enquanto isso, uma parcela considerável da esquerda, geralmente de origem pequeno-burguesa, ridicularizava a proposta de Damares Alves.
Já como professor do IFCE, campus Itapipoca,[ii] um aluno me contou que o bairro onde ele morava estava muito perigoso até a chegada de uma igreja. Segundo ele, os “pivetes” começaram a se converter e a sair da “pirangagem” (palavras dele), o que fez com que grande parte da vizinhança também se convertesse, reconhecendo o papel da igreja em afastar a juventude do mundo do crime. Foi um alívio para os pais e trouxe mais segurança ao bairro.
Um dos maiores medos das mães e dos pais dos meus alunos era que suas filhas engravidassem ou que seus filhos entrassem para o crime. São esses pais e mães pobres – em sua grande maioria negros – que estão enchendo as igrejas e adotando o discurso moralista, enquanto nós os ridicularizamos ou menosprezamos, dizendo que são ignorantes e conservadores.
Ridicularizamos e menosprezamos a classe trabalhadora por conta do seu moralismo, enquanto as igrejas e a direita abraçam esse discurso – e, com isso, acabam atraindo os trabalhadores para o seu lado. Essa mesma direita, aliás, surfou tranquilamente na famigerada “onda conservadora”.[iii]
Como sabiamente disse o filósofo Espinosa, a questão não é “nem rir, nem chorar, mas compreender”.
O Brasil está passando por uma transição religiosa: está deixando de ser um país majoritariamente católico para se tornar um país de maioria evangélica. Em 1950, por exemplo, 93,5% da população se declarava católica, enquanto apenas 3,4% se declarava evangélica.[iv] Até os anos 1990 os evangélicos, chamados pejorativamente de “crentes” (e que eram alvo de preconceitos devido modos de se vestir, pela extravagância dos cultos e pelo passado “pecaminoso” de alguns de seus fiéis), eram vítimas de preconceito e discriminação, mas já vinham crescendo em quantidade e em 2010 atingiram 24% da população.[v]
Paralelo ao aumento do número de evangélicos ocorreu o aumento de espíritas, umbandistas/candomblé e mesmo do número de pessoas que se declaram sem religião ou ateias. O catolicismo foi a religião que mais perdeu adeptos, sendo considerado o “doador universal” de fiéis. O Brasil se tornou menos católico e mais plural religiosamente. Estamos vivendo um período de transição e se a projeção estatística continuar como está (1,2% de perda de fiéis pelo catolicismo e aumento de 0,8% de fiéis evangélicos) em 2032 o Brasil se tornará pela primeira vez um país de maioria evangélica.[vi]
2.
O que leva a essa queda do catolicismo e ampliação do protestantismo? Primeiro é o caráter centralizador do catolicismo e o descentralizado do protestantismo. Enquanto a abertura de templos católicos demanda uma série de burocracias e é uma decisão centralizada, os templos evangélicos só demandam a vontade de um pastor e podem ser abertos em qualquer lugar: na área de casa, na garagem ou mesmo no quintal, o importante é pregar a palavra.
Além disso a igreja católica é apenas uma, enquanto existem várias igrejas evangélicas, que apesar de terem discordâncias entre si, compartilham dos mesmos valores (são contra adoração de imagens e de santos, não admitem a santidade de Maria, são contra o celibato, possuem uma estética semelhante etc.). Assim, se é difícil abrir uma paróquia em Manaus, não é difícil iniciar um culto no meio do Amazonas, pois não demanda autorização de nenhuma autoridade superior.
O segundo ponto é o trabalho assistencial e comunitário dos evangélicos, algo que a igreja católica quase deixou de fazer. O que as CEB (Comunidades Eclesiais de Base) faziam nos anos 1980, agora quem faz são os pastores. Os pastores escutam os fiéis, os visitam em suas casas, dão conselhos, ajudam nos momentos de necessidade e até arrumam vagas de emprego. Os pastores estão inseridos na vida comunitária e muitas vezes suas igrejas cumprem um papel assistencial que o Estado deveria cumprir, mas não cumpre.
Até os anos 1980 os evangélicos tinham uma prática de negação da política. Eles preferiam se dedicar as causas religiosas do que se envolver com política, apesar de haver exceções e ensaios de atividade política por algumas agremiações evangélicas. Mas no geral, os evangélicos se eximiam de participar ativamente da política. Isso começa a mudar nos anos 1980 por iniciativa da igreja universal e do seu bispo, Edir Macedo.
Em seu livro Plano de Poder: Deus, Cristão e a Política, Edir Macedo defende que os evangélicos devem participar da política para defender suas pautas, em geral uma defesa da “moral e dos bons costumes” e que não é errado se aproximar do poder, mas que é através das instituições que os evangélicos seriam capazes de fortalecer a “palavra de Deus”. Sua iniciativa colhe resultados em curto espaço de tempo, pois em 1987 já se articula uma bancada evangélica, apesar de pequena. Mas é nos anos de 2010 que os evangélicos começam a demonstrar sua força política.
Eles se destacam e ganham influencia devido o apoio que deram ao governo Lula (que não esqueçamos fortaleceu a Record como forma de enfraquecer a Globo), mas que já em 2010 iniciaram uma tímida desaproximação, quando começaram a acusar a candidata Dilma Roussef de ser a favor do aborto, mas é com o deputado Marco Feliciano na comissão de direitos humanos (2013) que os evangélicos despontam no cenário nacional.
3.
Os evangélicos se apresentam como defensores das crianças (antipedofilia), da família tradicional (contra o casamento gay, papéis de gênero definido), da vida (anti-aborto) e contra as drogas. Mais recentemente adicionaram ao seu repertório pautas neoliberais, defendendo a meritocracia, privatizações e o empreendedorismo (se colocando contra leis trabalhistas consideradas encargos para os que querem empreender).
Ainda segundo José Eustáquio, o que definiu as eleições de 2018 foi o voto das mulheres pobres evangélicas que na sua maioria votou em Jair Bolsonaro. Historicamente as mulheres são antiarmas (por motivos óbvios, pois são as principais vítimas dos homens armados) e com certeza não foi essa pauta que chamou atenção dessa parcela do eleitorado.
Há um texto de Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt, intitulado O destino histórico da democracia burguesa, no qual ele defende que a democracia burguesa teria atingido seu limite – chegando a um impasse em que não apenas permitia a divulgação, mas também a eleição de candidatos com tendências claramente fascistas e com forte apoio popular.
Em determinado momento do texto, Herbert Marcuse se pergunta por que a população norte-americana, diante do pior e do “menos pior”, preferiu o pior – o candidato que deixava claro, em seu discurso, que manteria tudo como estava: a guerra, a saúde privatizada, o desemprego, a inflação – confiando única e exclusivamente nas “leis do mercado”, enquanto reforçava o conservadorismo do senso comum.
Para Herbert Marcuse, a eleição de Nixon – e de qualquer candidato com tendências fascistas – não é compreensível se as motivações morais forem negligenciadas. Segundo ele, existem “conteúdos materiais em questões morais”, e tais conteúdos não podem ser descurados.
4.
Segundo pesquisas,[vii] as famílias que se convertem ao protestantismo acabam, em certa medida, melhorando de vida. Isso ocorre, por exemplo, quando o marido deixa de beber – o que, consequentemente, reduz a violência doméstica e aumenta a renda da família, já que, em vez de literalmente “beber” o dinheiro da casa, ele passa a utilizá-lo para fazer uma feira.
Da mesma forma, quando os filhos preferem ir ao culto a frequentar os “proibidões” com drogas e bebidas nos finais de semana, diminuem-se as preocupações dos pais e mães com esses filhos. Em suma, as pessoas tendem a ver na conversão ao protestantismo – e na ajuda do pastor – a causa da paz e da “prosperidade” de suas famílias.
Daí, o que o pastor pedir será facilmente atendido. Afinal, existe uma dívida simbólica com aquela instituição e sua liderança, responsáveis, aos olhos da família, por essa melhora concreta em sua vida.
Portanto, antes de ridicularizarmos o discurso moralista dos trabalhadores, precisamos identificar quais os interesses materiais subjacentes a esse discurso ideológico. Toda ideologia, afinal, camufla – intencionalmente ou não – interesses materiais. Esse é o b-a-bá do materialismo histórico.
O “moralismo” dos trabalhadores tem um fundamento bastante material. Não é fruto da ignorância, tampouco de um conservadorismo essencial. Já o moralismo da classe média, esse sim, costuma carecer de fundamento material: baseia-se, em grande parte, no ressentimento.
*John Karley de Sousa Aquino é professor de filosofia no Instituto Federal do Ceará (IFCE).
Notas
[i] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-28/damares-demonstra-forca-entre-os-mais-pobres-e-acende-alerta-na-esquerda.html
[ii] Cidade do interior do Ceará.
[iii] “Parte da sociedade brasileira atrela os partidos, lideranças e militantes de esquerda a ideias de caos, conflito, defesa de pautas identitárias, arrogância e doutrinação. A direita, por sua vez, é atribuída às noções de ordem, hierarquia, respeito pela opinião do próximo, igualdade, valorização da família, e defesa do esforço individual/livre- mercado” (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasileiro-atrela-esquerda-a-conflito-e-direita-a-ordem-diz-pesquisa/).
[iv] AZEVEDO, Dermi. A igreja católica e seu papel político no Brasil. ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004, p.113.
[v] Uma projeção linear da transição religiosa no Brasil: 1991-2040:
[vi] A aceleração da transição religiosa no Brasil: 1872-2032:
[vii] Indico os textos e pesquisas do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves sobre o perfil do evangélico brasileiro, suas projeções, como vota o eleitorado protestante e como o voto das mulheres evangélicas foi decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro.