O Plano Diretor (nos) ataca
Um diálogo franco com Guilherme Boulos
ou Cidade sem ambiente sofre enchente.
A linguagem militarista impregna o Brasil há 523 anos. É assim com o Plano Diretor Estratégico (PDE) estabelecido em São Paulo, em 2014, durante a gestão de Fernando Haddad. A Lei de 2014 estaria, segundo Guilherme Boulos, sob ataque da “gestão municipal atual”, nomeando Ricardo Nunes, do MDB. Assim, a Lei precisaria ser defendida. Mas defendida por quê e para que(m)?
A defesa do PDE de 2014 surpreende, mas é compreensível. Trata-se de uma clássica avaliação tecnicista da legislação urbanística, como se ela fosse neutra e positiva, a serviço de uma entidade metafísica, o “interesse público”.
A lógica do “plano-discurso”, cheio de “conceitos, princípios e objetivos”, já foi identificada há décadas, sob denominações, métodos e enfoques plurais - Flávio Villaça, Raquel Rolnik, Milton Santos, Otília Arantes, Erminia Maricato, Carlos Vainer etc. A Lei de 2014 é um longo filme (209 páginas) dessa prática ilusionista: cria a expectativa de um mundo ideal de mais de 100 objetivos, incluindo os “estratégicos” (Art. 7º), a serem cumpridos pela Prefeitura até 2029.
Porém, no mundo real, a mesma lei escrita na gestão Haddad possui “travas”, mas contra a democracia: a Lei de 2014 oficialmente amarrou os potenciais avanços socioambientais à elaboração de vários outros Planos (Habitação, Mobilidade, Áreas Verdes etc.) e declaradamente estimulou a entrega de porções imensas da cidade a “parceiros” privados do “público” - ou conglomerados empresariais apoiados pelo governo de ocasião. Talvez Haddad acreditasse permanecer no poder até 2029 para efetuar seu projeto total - apesar do terremoto político de Junho de 2013.
Ao encampar pressupostos muito equivocados do Plano Diretor vigente, Boulos omite que nele sobram conceitos, métodos e instrumentos caros à privatização e, por consequência, à segregação da população mais vulnerabilizada da cidade. A linguagem hermética, extensa e capciosa (ao longo de 393 Artigos) tem permitido, afinal, a aplicação seletiva da Lei, independente do "gestor", como: a continuidade da aberração jurídica do “direito de protocolo”, ou o privilégio de destruir o futuro com normas do passado; a permissão a construir empreendimentos imobiliários antes da inauguração de linhas de metrô e de corredores de ônibus nos bairros; a verticalização e a impermeabilização, incluindo de fundos de vale e junto a nascentes, sem estudos de impacto socioambiental, cultural e de vizinhança, aumentando nossa vulnerabilidade sócio-climática; a privatização da terra urbana, com a remoção (sob bombardeio) de populações e a destruição de memórias; a saturação do espaço público por veículos poluentes e aumento dos custos do sistema de ônibus; a substituição do comércio local por redes de produtos ultraprocessados, degradando a saúde individual, coletiva e pública paulistanas etc. A inconsistência da propaganda se revela: afinal, quantas pessoas de 0 a 3 salários mínimos passaram a habitar o entorno das estações do metrô, da Vila Prudente a Vila Madalena, do Tatuapé ao Butantã para “morar perto do emprego”?
As inúmeras externalidades negativas da Lei do PDE hoje se multiplicam nas condições de vida nos 96 distritos de São Paulo, especialmente nos mais negligenciados, e nos distanciam ainda mais dos objetivos firmados em 2014 para serem cumpridos até 2029.
É assim que o debate da Cidade se rebaixa a termos tão abstratos como desumanos, tão anacrônicos como irresponsáveis, como "eixos", "coeficientes", “índices” etc. A origem desses dispositivos legais repousa também na “visão” tecnocrática neoliberal, ainda que com um viés neodesenvolvimentista - incluindo aí dos círculos de arquiteturas e engenharias. Tudo isso sob casuísticos silêncios ou arbitrários entendimentos de alguns especialistas envolvidos na formulação da Lei em 2014. Sem base científica alguma, essa “tentativa-e-erro” discursiva produz a necropolítica urbana.
Não devemos ecoar uma narrativa que tem servido a interesses do poder, Guilherme. Até mesmo o relator do PDE em 2014 já chegou a esboçar, timidamente, algumas autocríticas à criatura que operou para forjar. Agora que ela ganhou musculatura - e o fará cada vez mais de forma implacável - qual o sentido em defendê-la? A quem serve defender um Plano Diretor que se materializou nos territórios de forma tão arbitrária, autoritária, desequilibrada, antiecológica e pasteurizadora, sem nenhum respeito por suas populações residentes e trabalhadoras? Seria esse um daqueles “sinais, fortes sinais” vinculados a interesses a serem contemplados nas eleições municipais do próximo ano?
O PDE de 2014 impede, frente às necessidades da sobrevivência na emergência climática, que rompamos com a lógica antiecológica secular que determina a re/produção das cidades no Brasil. De onde virão a água e o clima para que mais de vinte milhões de pessoas possam viver na metrópole se não recuperarmos os mananciais, não desimpermeabilizarmos o solo, não rearborizamos o espaço urbano, não contivermos a metástase do crescimento pelo crescimento (da acumulação)? O neocolonialismo urbano financeirizado, predatório e extrativista, que destrói e constrói irresponsavelmente, continua a guerra de lugares de 523 anos. A solução é redistribuir essa acumulação, e não produzir mais destruição.
Seguimos sob ataque, silencioso ou aberto, em simulacros de democracia em reuniões e “audiências públicas”, cujas demandas são, sem solenidades ou justificativas científicas, ignoradas parcial ou totalmente. Tudo em privilégio dos salões público-privados da academia, da alta burocracia estatal, e, sobretudo, das oligarquias da terra e das finanças, incensados pelas mídias.
A “visão de cidade” de 2014, dependente do governo de ocasião e do permanente produtivismo capitalista, ambiental e socialmente insustentável, ignora que transformações revolucionárias e solidárias provêm da população organizada. Consciente, por um lado, de seu lugar de classe atravessado por marcadores de raça, etnia, gênero e sexualidade, e, por outro, dos laços firmados em seus territórios de identidade local (seus bairros), trabalho e organização política. Suas demandas devem reverberar em Conselhos de decisão direta e vinculante à Administração Pública, qualquer que seja o governo.
Muita gente pisou na terra árida da revisão do Plano Diretor nos debates nos últimos 30 meses, seja no Conselho Municipal de Política Urbana, seja nas quase 500 organizações da Frente São Paulo pela Vida. Acumulou-se muito em debates de política urbanística, tudo ignorado pelos interesses imobiliário-financeiros dominantes. Precisamos de um “Plano Diretor” e de uma “revisão” que elimine o muito que não deu certo e atenda à preservação do meio ambiente natural, construído e cultural. Tal re-visão deve atender quem mais precisa de moradia e ser feita com a participação de quem vive no local, construindo planos de bairros resilientes, igualitários e sustentáveis, numa democracia de alta intensidade.
Esse é o método que pode nos emancipar de armadilhas urbanísticas arcaicas, limitantes e viciadas, que nos atacam a serviço do Capital, agravando a barbárie socioambiental enquanto lutamos contra o risco de extinções em massa. Temos até 2029.