O dilema do “império” americano

Trump quer que o mundo subsidie o império dos EUA

Jomo Kwame Sundaram [1] Ideas; Economia e complexidade, 23 de abril de 2025. Tradução de Eleutério Prado. Veja-se a nota do tradutor ao final.

O principal conselheiro econômico de Donald Trump afirmou há algum tempo que o seu presidente enceta uma política tarifária com o objetivo de “persuadir” as outras nações a pagar aos EUA o ônus de seu império global na suposição de que ele é benéfico para todas as nações.

O economista geopolítico Ben Norton [2] foi um dos primeiros a destacar a importância do briefing do presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Trump, Stephen Miran, no Instituto Hudson.

O Instituto é financiado por bilionários como o czar da mídia Rupert Murdoch, que controla a Fox News, o The Wall Street Journal e outros meios de comunicação conservadores.

Miran fez a defesa desse ponto  logo após a vitória eleitoral de Trump em Um Guia do Usuário para Reestruturar o Sistema de Comércio Global.[3] Miran tentou mostrar a racionalidade implícita das políticas econômicas de Trump, que são amplamente vistas como estando em desacordo com a sabedoria e a razão convencionais. Na seção final deste artigo, as suas contradições serão apontadas.

Aumentar o domínio dos EUA

Miran defende as tarifas de Trump como parte de uma ambiciosa estratégia econômica para fortalecer os interesses dos EUA internacionalmente. Elas permitiram uma “mudança geracional no comércio internacional e nos sistemas financeiros”.

“Nosso domínio militar e financeiro não pode ser tomado como garantido; ora, o governo Trump está determinado a preservá-lo”. Miran afirma que os EUA fornecem dois grandes “bens públicos globais”, os quais acabam ficando bem “caro para nós”.

Primeiro, Miran afirma que os gastos militares dos EUA fornecem ao mundo um “guarda-chuva de segurança”, pelo qual os outros países também precisam pagar. Em segundo lugar, os EUA emitem o dólar e os títulos do Tesouro, os principais ativos de reserva para a liquidez do sistema monetário e financeiro internacional.

Miran parece bem inconsciente das queixas de longa data de outros países sobre o “privilégio exorbitante” dos EUA. O status de moeda de reserva do dólar vem fornecendo renda de senhoriagem para os EUA, enquanto as vendas de títulos do Tesouro há muito financiam a dívida dos EUA a um custo muito baixo.

A defesa de Miran do trumpismo

A Casa Branca está ameaçando outros países com altas tarifas, a menos que eles façam concessões, às suas próprias custas, beneficiando assim os EUA. A defesa das tarifas de Miran é indireta; eis que elas fazem parte de uma grande estratégia ostensiva.

“O presidente deixou claro que os Estados Unidos estão comprometidos em permanecer como provedor da moeda de reserva”, acrescentou Miran. Ele afirma que a hegemonia do dólar americano é “ótima” para todos; ademais, ele nega que “o domínio do dólar seja um problema”.

Embora isso “tenha alguns efeitos colaterais, que podem ser problemáticos”, Miran “gostaria de… minorar esses efeitos para que o domínio do dólar possa continuar por décadas, para sempre”.

Para Miran, esses efeitos colaterais são amplamente adversos para os Estados Unidos – ao fazer essa afirmação, ele ignora os benefícios obtidos pelos EUA. Os déficits comerciais crônicos dos EUA foram possíveis porque foram financiados; a contrapartida foi a crescente dívida pública dos EUA; ao mesmo tempo, permitiu que o dólar servisse como moeda de reserva global.

Assim, os déficits comerciais dos EUA têm sido sustentados desde a década de 1960; ou seja, eles não são “insustentáveis”, como ele alega. A indústria dos EUA foi “dizimada” pelas corporações transnacionais, não por uma conspiração estrangeira.

O texto guia produzido por Miran reconhece como verdadeiro o “dilema de Triffin”. Em 1960, o economista Robert Triffin alertou que o status do dólar como moeda de reserva global representava problemas e riscos para a política monetária dos EUA.

Ele invoca essa tese de Triffin para sustentar que os EUA precisam importar mais do que exportam para fornecer liquidez ao mundo. Eis que os outros países precisam de dólares para realizar comércio internacional e para manter como reservas internacionais.

Miran adota a narrativa trumpiana de culpar apenas os outros. No entanto, os EUA esperavam se beneficiar dos contínuos superávits comerciais em Bretton Woods. Em 1944, opôs-se a acordos alternativos de pagamentos para impedir superávits comerciais excessivos.

Os déficits comerciais dos EUA cresceram desde a década de 1960 com a reconstrução do Norte Global após a Segunda Guerra Mundial e a “industrialização tardia” desigual no Sul Global.

Os supostos beneficiários do Império devem pagar

O governo Trump quer comer o bolo e ainda tê-lo por inteiro. Pretende fortalecer o império dos EUA, minimizando os efeitos colaterais e os ônus adversos da hegemonia tal como foram ventilados acima.

Miran quer que as nações estrangeiras “paguem a sua justa parte ” de cinco maneiras:

Primeiro, “os países devem aceitar tarifas sobre suas exportações para os EUA sem retaliação”. As tarifas são uma compensação; elas vão supostamente financiar uma provisão global de bens públicos fornecida pelos EUA (ou seja, a segurança global e o dinheiro mundial).[4]

Em segundo lugar, eles deveriam comprar “mais produtos fabricados nos EUA”.

Terceiro, eles devem “aumentar os gastos com defesa comprando armas dos EUA”.

Quarto, eles devem “investir e instalar fábricas na América”.

Quinto, eles deveriam “simplesmente … nos ajudar a financiar bens públicos globais”, ou seja, a “ajuda externa” proporcionada pelos EUA.

Miran então enfatiza que Trump “não tolerará mais o caronismo de outras nações”; nesse sentido, ele quer que haja um “melhor compartilhamento de tais encargos em nível global”.

“Se outras nações quiserem se beneficiar do guarda-chuva geopolítico e financeiro dos EUA, elas precisam … pagam sua parte justa”, ou seja, o mundo deve “arcar com os custos” de manter o império dos EUA.

Dilemas de Trump 2.0

Trump quer usar tarifas para forçar os países com superávits comerciais com os EUA a comprar mais dos EUA. Contudo, acabar com esses déficits minaria a hegemonia do dólar, a qual, paradoxalmente, Trump quer obsessivamente preservar.

Miran quer que outros países convertam seus títulos do Tesouro dos EUA em títulos de 100 anos a taxas de juros muito baixas, subsidiando efetivamente os EUA no longo prazo. Ele também quer que as nações com superávits comerciais com os EUA – a serem eliminados – comprem mais títulos do Tesouro dos EUA de longo prazo.

Trump ameaçou impor tarifas de 100% sobre os membros do BRICS e todos os países que promovem a desdolarização ou minam a hegemonia do dólar no sistema monetário internacional.

Durante seu primeiro mandato, Trump queria fazer algo quase impossível, ou seja, aumentar as exportações, preservando um dólar forte!

Miran reconhece que a “raiz dos desequilíbrios econômicos está na persistente sobrevalorização do dólar que impede o equilíbrio do comércio internacional”. Mas ele também insiste que a “supervalorização do dólar é impulsionada pela demanda inelástica por ativos de reserva”.

Trump agora espera resolver o problema do déficit comercial e do déficit fiscal dos EUA, cortando importações e aumentando a receita com tarifas mais altas. Ele também quer que o mundo continue usando dólares, apesar do orçamento dos EUA e dos déficits comerciais e das incertezas políticas.

Enquanto isso, a dívida oficial dos EUA, financiada pela venda de títulos do Tesouro, continua a crescer. Trump tem que entregar seus cortes de impostos prometidos logo antes que suas medidas anteriores se tornem ineficazes. Trump está caindo em desgraça com sua fanfarronice e pode ter que voltar ao status quo anterior, ao mesmo tempo que nega fazer esse movimento.

Como foi visto, apesar dos esforços de Miran, ele não conseguiu fornecer uma justificativa coerente para a retórica e para a política de Trump. Contudo, descartar Trump como “louco” ou “estúpido” obscurece o dilema do domínio dos EUA no pós-guerra.

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N. T.: O autor apresentou antes esse dilema da seguinte forma:  manter o império, usufruir dele, sem querer arcar com os ônus de mantê-lo. Em outras palavras, manter o bolo e, ao mesmo tempo, comê-lo. Eis que querer duas coisas contraditórias – e, portanto, simultaneamente impossíveis –esconde de fato um dilema: manter o império incorrendo nos ônus ou se desfazer desses ônus arriscando perder o império.

Mas quais são os ônus que os EUA querem transferir para os outros países como se eles fizessem parte de seu império e fossem beneficiados por isso? São os seguintes: a) desindustrialização e necessidade de importar mercadorias cruciais produzidas no exterior; b) déficits públicos persistentes; c) déficits em conta corrente enormes e persistentes; d) dívida pública crescente e, em parte, detida por estrangeiros. 

Parece importante lembrar porque o “império” chegou a essa situação. Para sair da crise de lucratividade dos anos 1970, mantendo desse modo ilesa a hegemonia mundial, os EUA tiveram que aceitar a partir dos anos 1980 a desindustrialização e a ascensão da China e outros países da Ásia como potências concorrentes. Pior do que isso: eis que, nesse processo, tornam-se dependentes desses países da Ásia; ao não se verem mais como potência hegemônica absoluta, passam a clamar que querem se tornar grande de novo.

É preciso lembrar aqui que a indústria é o motor do crescimento acelerado por causa de seus ligamentos para frente e para trás e de seu dinamismo na elevação da produtividade do trabalho. Quando o seu impulso de crescimento acaba devido ao crescimento da composição orgânica do capital, o sistema passa a evolver com base na economia de serviços, que é sempre mais lenta. É a desindustrialização dos EUA e a industrialização da China que explica e o declínio relativo do primeiro e a ascensão do segundo país.

Como o dilema acima apresentado aparece nas contas nacionais dos EUA? Os custos do Estado (seguro social, saúde etc.), da hegemonia (defesa e veteranos) e da dívida pública (juros) não têm sido sustentados sem incorrer enormes déficits públicos que se mantêm no tempo. Reduções de impostos sobre as corporações e sobre os mais ricos, visando melhorar a lucratividade das empresas e garantir o crescimento das fortunas, também respondem por tais déficits. Ora, eles precisam ser financiados, elevando assim a dívida pública a níveis perigosos. Um dólar valorizado é necessário para financiar a dívida pública com custo baixo, inclusive porque ela passa a ser sustentada em parte por estrangeiros.

Os EUA têm mantido déficits persistentes do balanço em conta corrente, o qual é financiado pela emissão de dinheiro fiduciário, o qual volta para os EUA na forma de investimento estrangeiro especialmente – mas não só – em títulos do tesouro. Esses déficits, que provém em grande parte da externalização da produção de certas mercadorias que passam a ser importadas, aparecem então como um sinal contábil do declínio relativo do país que se imagina como um império. O tamanho da dívida pública como porcentagem do PIB é outro sinal desse declínio ou mesmo de um colapso mais a frente.  

Nessa perspectiva, o argumento de que manter a moeda de reserva mundial tem um ônus para os EUA aparece, então, como uma justificativa necessária para a ofensiva econômica da potência hegemônica sobre o resto do seu pretenso império. A perspectiva da reindustrialização é, por sua vez, o sonho impossível, mas necessário, para animar o nacionalismo e justificar a imposição das tarifas. A guerra tarifária como manifestação patente de imperialismo suscita reações nacionalistas (econômicas e políticas) dos outros países, o que pode enfraquecer ainda mais a América!

[1] Economista malaio. Ele é consultor sênior do Instituto de Pesquisa Khazanah, pesquisador visitante da Iniciativa para o Diálogo Político da Universidade de Columbia e professor adjunto da Universidade Islâmica Internacional da Malásia.

[2] Norton, Ben – Trump advisor reveals tariff strategy: Force countries to pay tribute to maintain US empire. Endereço: https://geopoliticaleconomy.com/2025/04/10/trump-advisor-miran-tariff-pay-us-empire/?utm_source=substack&utm_medium=email

[3] Miran, Stephen – A user’s guide to restructuring the global trading system. Hudson Bay Capital, 2024. Endereço: https://www.hudsonbaycapital.com/documents/FG/hudsonbay/research/638199_A_Users_Guide_to_Restructuring_the_Global_Trading_System.pdf?utm_source=substack&utm_medium=email

[4] N. T.: Na verdade, os EUA gostariam que os outros países reduzissem os preços dos seus bens exportados que foram tarifados – ou que valorizem o câmbio –, arcando assim, implicitamente, com o custo das tarifas.  

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