O desafio da Autoridade Climática do Presidente Lula

Rodrigo Machado Vilani, Philip Martin Fearnside e Carlos José Saldanha Machado, Amazônia Real, 2 a 22 de abril de 2025

Publicamos na prestigiosa revista Environmental Conservation um trabalho intitulado “O desafio da Autoridade Climática do Presidente Lula: Pragmatismo versus política de coalizão”, disponível em inglês aqui. Aqui, apresentamos o conteúdo do trabalho em português como publicado pelo site Amazônia Real em quatro partes. As notas de rodape das quatro partes podem ser acessadas no Amazônia Real, onde Fearnside mantem uma coluna semanal.

1. Introdução

Em 2024, quando o Brasil estava passando pela sua mais longa seca desde 1950 [2] e incêndios florestais cobriam grande parte do país com fumaça tóxica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (conhecido como ‘Lula’) anunciou a criação de uma ‘Autoridade Climática’. No início do atual mandato de Lula, em janeiro de 2023, a criação de uma Autoridade Climática foi proposta por Marina Silva, uma conhecida ambientalista que chefia o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) do governo Lula, onde a nova autoridade deveria ser instalada. Logo depois, o Congresso Nacional, que é dominado por representantes do agronegócio conhecidos como ‘ruralistas‘, removeu várias responsabilidades importantes do MMA e as transferiu para agências amigáveis aos seus interesses. A proposta da Autoridade Climática, portanto, permaneceu adormecida até o recente anúncio do Presidente Lula e continua sem definição de seus objetivos e atribuições [3].

A Autoridade Climática depende de sua aprovação no legislativo, aguardando a reformulação de um projeto de lei (PL 3961/2020) que exigiria medidas para lidar com ‘emergências climáticas’ [4]. Agora, os políticos ruralistas estão manobrando para separar a Autoridade Climática proposta do MMA e subordiná-la a uma agência como a Casa Civil, que é um gabinete dentro do palácio presidencial por onde praticamente todos os assuntos que entram ou saem da mesa do presidente devem passar e onde esses políticos podem ter grande influência. O presente comentário tem como objetivo analisar as possibilidades de uma Autoridade Climática autônoma e técnica dentro do arcabouço político brasileiro e sugerir alternativas para o desenvolvimento de uma política climática que não seja restringida por acordos partidários. [5]

2: o cenário da política brasileira

Entender a ameaça atual ao meio ambiente do Brasil requer algumas informações básicas sobre a política brasileira. O Brasil tem um sistema presidencial de governo com três poderes no nível federal: executivo, legislativo e judiciário. Os governos estaduais têm um papel crescente em questões ambientais, e os governos municipais são atores importantes em projetos que impactam o meio ambiente. As legislaturas nos níveis estadual e federal são eleitas por totais de votos em todo o estado, em vez de totais em municípios ou distritos congressionais. As cadeiras são distribuídas com base nos totais de votos dos partidos políticos, não nos totais dos candidatos individuais. O Brasil tem muitos partidos políticos, dos quais 20 têm cadeiras no Congresso Nacional em 2025 [1]. O partido com mais cadeiras é o Partido Liberal(PL), o partido do ex-presidente Jaír Bolsonaro cujas ações antiambientais durante seu mandato de 2019-2022 foram notáveis. No Brasil hoje, o termo “liberal” tem um significado diferente daquele em outros países e períodos históricos e implica reduzir o governo e favorecer as grandes empresas.

O poder legislativo federal tem múltiplas formas de influência sobre o poder executivo que não se limitam aos “cordões” do orçamento anual. A maioria dos cargos ministeriais é oferecida a partidos políticos importantes para obter seu apoio para votos no Congresso. Isso dá a esses ministros o poder de direcionar projetos federais para estados ou municípios onde seus partidos (e políticos individuais dentro dos partidos) têm interesses eleitorais. Claro, também há oportunidades para corrupção e para oferecer cargos de alta remuneração a aliados políticos ou seus familiares. Além disso, há um sistema de emendas parlamentares, que são dotações onde membros individuais do congresso recebem quantias significativas de dinheiro para gastar, essencialmente, da maneira que desejarem, geralmente com o objetivo de maximizar votos no estado do político. Existem muitas oportunidades para corrupção neste sistema.

O sistema de emendas parlamentarescresceu na última década, especialmente no período de 2020-2024, quando R$ 150 bilhões (cercade US$ 30 bilhões) foram distribuídos [2]. Este é essencialmente um meio de comprar legalmente os votos do Congresso; em um período de 20 dias antes de uma votação importante sobre a legislação em dezembro de 2024, o governo Lula distribuiu R$ 8,3 bilhões (US$ 1,5 bilhão) dessa forma [3]. Uma parte da distribuição das emendas parlamentaresé controladopelos presidentes das duas câmaras do Congresso Nacional, mas uma parte substancial é controlada pela poderosa ‘Casa Civil’ dentro do gabinete do Presidente Lula. Deve-se notar que nas administrações anteriores do Presidente Lula uma função equivalente foi alcançada ilegalmente pela distribuição de propinas em dinheiro a membros do congresso para comprar seus votos, como revelado no enorme escândalo do mensalão(por exemplo, [4, 5]).

O Congresso Nacional do Brasil é dominado por dois grupos sobrepostos: os ruralistas e o centrão, sendo este último um grupo de partidos políticos que não se distinguem por classificações como ‘esquerda’ ou ‘direita’, mas sim por serem descaradamente transacionais, essencialmente vendendo seus votos para o maior lance (conhecido no Brasil como “fisiologismo”) [6]. Uma pesquisa com cientistas políticos brasileiros indicou os seguintes oito partidos como atualmente considerados parte do grupo: PP, Republicanos, PL, MDB, União Brasil, Podemos, PSD e PRD (antigos PTB e Patriota) [6]. Os maiores pagadores por seu apoio geralmente estão alinhados com interesses antiambientais; por exemplo, o centrãocolaborou com o bloco de votação ruralista para remover responsabilidades importantes do MMA e do Ministério dos Povos Indígenas logo após o presidente Lula assumir o cargo em 2023 [7]. Em 2025, os partidos do centrãodetêm 69% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 78% do Senado [1], bem como a presidência de ambas as casas do Congresso Nacional e o Ministro do Governo de Lula, que chefia a Casa Civil.

Os ruralistas são grandes proprietários de terras e seusrepresentantes [8]. No Congresso Nacional, estes são membros individuais, em vez de partidos políticos, e são organizados na Frente Parlamentar da Agropecuária, (FPA). Em 2025 a FPA detêm 59% da Câmara dos Deputados e 61% do Senado [9].

O centrãoe os ruralistasnão apenas controlam assentos suficientes em ambas as casas do congresso para aprovar legislação ordinária com mais de 50% dos votos, mas também para ultrapassar os 60% necessários para anular vetos presidenciais ou para emendar a constituição. Emendar a constituição do Brasil é fácil e não requer ratificação pelos estados. A constituição atual foi emendada 135 vezes desde que entrou em vigor em outubro de 1988 [10]. Outros interesses aliados aos ruralistasno enfraquecimento dos controles ambientais incluem aqueles para mineração, exploração madeireira e represas hidrelétricas, aumentando assim as restrições às ações do presidente Lula sobre o meio ambiente. [11]

3: a ameaça na política local

As eleições municipais brasileiras de 27 de outubro de 2024 revelaram um cenário político marcado pela ascensão dos partidos de extrema direita e direita, com posições muito diferentes do Partido dos Trabalhadores(PT) do presidente Lula. Dos aproximadamente 110 milhões de votos válidos para prefeitos, a extrema direita garantiu 23% (26 milhões), enquanto os partidos de direita e centro-direita responderam por 55% (62 milhões) [1]. Essa configuração política – com predominância de partidos de direita, particularmente na Amazônia, onde entre 1º de janeiro e 9 de outubro de 2024, 10 municípios foram responsáveis por 57,3% dos focos de incêndio, oito dos quais (incluindo São Félix do Xingu, Altamira e Lábrea) localizados na região amazônica e estão sob administração de partidos de direita (Tabela 1). A mudança para a direita tem implicações diretas para a conservação ambiental porque esses partidos tendem a apoiar a redução dos controles ambientais, provocando assim mais desmatamento e degradação florestal. Existe um movimento anticonservacionista global enraizado na extrema direita, e o Brasil não é diferente; de fato, o país pode ser visto como um modelo para o movimento anticonservacionista.

Tabela 1. Municípios brasileiros com maiores números de queimadas em 2024.

Fontes: 1 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, 2024); 2 Tribunal Superior Eleitoral (2024). As classificações partidárias seguem Bolognesi et al. (2023); Pinto (2023).

* = reeleito; DEM = Democratas; MDB (antigo PMDB) = Movimento Democrático Brasileiro; PDT = Partido Democrático Trabalhista; PL = Partido Liberal; PODE = Podemos; PP = Partido Progressista; PSB = Partido Socialista Brasileiro; PSC = Partido Social Cristão; PSD = Partido Social Democrático; PSDB = Partido da Social Democracia Brasileira; União = União Brasil.

Em 2024, São Félix do Xingu liderou o ranking de focos de calor (fogos) com Lábrea em sexto (Tabela 1); ambos têm atualmente governos de direita e elegeram partidos de extrema direita para o mandato de 2025-2028. Essa mudança política representa um desafio significativo para a agenda ambiental e climática defendida pelo presidente Lula. [5]

4: as contradições políticas de Lula

Como a governança climática pode ser promovida no contexto político atual? O governo Lula enfrenta dois desafios centrais na implementação de uma agenda climática compatível com os compromissos internacionais e o novo compromisso nacionalmente determinado (NDC) do país definido em 2023.

Em primeiro lugar, o cenário político: os governos estaduais e municipais da Amazônia promovem uma agenda neoliberal [1], e uma legislatura federal conservadora foi eleita para o período de 2023-2026, incluindo 66 deputados federais e 12 senadores que apoiam o ex-presidente Bolsonaro [2]. Esses grupos também apoiam o desmantelamento de políticas indígenas e ambientais e apoiam a mineração e o desmatamento ilegais na Amazônia, e o negacionismo das mudanças climáticas [1, 2]. Em setembro de 2024, o governo de Lula era composto por 38 ministérios, com ministros de 11 partidos diferentes, com uma maioria de ministros de centro-esquerda (40%) e direita (25%).

Esta coligação multipartidária, combinada com o presidencialismo, o federalismo e um sistema eleitoral proporcional, é conhecida como “presidencialismo de coalizão” [3]. Isto descreve a dinâmica do sistema político brasileiro, caracterizado por uma presidência forte que muitas vezes leva a conflitos entre o Executivo e o Legislativo, onde o presidente detém amplos poderes. No entanto, a fragmentação partidária e a falta de uma base de apoio sólida no Congresso geram tensões e dificuldades para governar, criando um cenário em que o Poder Executivo deve negociar constantemente com vários partidos, muitas vezes resultando em instabilidade política e crises na governabilidade. Assim, esse conceito destaca os desafios de implementar efetivamente políticas públicas porque a relação entre os poderes do governo é marcada por rivalidades e disputas ao invés de colaboração harmoniosa.

Os três governos presidenciais de Lula se basearam nesse modelo. No entanto, o bloco ruralista, apoiado por outros setores conservadores (incluindo votos de partidos com cadeiras ministeriais), aprovou o critério do Marco Temporal para reconhecimento dos direitos territoriais indígenas em outubro de 2023 (Lei Federal 14.701), derrubando os vetos do presidente Lula, ignorando o Ministério dos Povos Indígenas e desconsiderando a revisão em andamento da sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.

Em segundo lugar, há a agenda de desenvolvimento “pragmática” de Lula, e em seus governos passados ele defendeu grandes hidrelétricas como Santo Antônio, Jirau e Belo Monte com impactos significativos sobre povos indígenas, comunidades ribeirinhas, clima e biodiversidade [4-8]. Naquela época, quando Marina Silva ainda era Ministra do Meio Ambiente e estava em conflito com a ex-Ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, Lula decidiu apoiar Dilma Rousseff. Hoje, a situação é ainda mais complicada, mas quando Lula teve que escolher, ele escolheu “desenvolvimento” [9].

Na mesma linha, apesar do parecer desfavorável do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Lula apoia publicamente a altamente controversa perfuração de petróleo na foz do Rio Amazonas [10]. A reconstrução da BR-319 – uma estrada que liga uma das áreas de floresta mais preservadas da Amazônia central ao infame “arco do desmatamento” no sul da Amazônia [11] – aumentaria a mineração e a exploração madeireira ilegais, ameaçaria os povos indígenas [12] e aumentaria os riscos de uma nova pandemia [11]. Ambos os megaprojetos são de interesse dos governos locais e estaduais eleitos em 2022.

Ciente desse cenário político e de uma disputa interna entre o MMA e a Casa Civil, Lula decidiu adiar o diálogo com o Congresso Nacional para o primeiro trimestre de 2025, após a eleição de um novo presidente da Câmara dos Deputados [13]. Em 2025, após essa eleição, as presidências das duas casas do Congresso Nacional continuam sendo controladas pelo centrão, e, no caso do Senado, o novo presidente é um senador do Amapá com forte interesse eleitoral no projeto de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.

Considerações finais

Internamente, a administração Lula pode usar o Fundo Amazônia (estabelecido para receber doações em apoio à conservação na Amazônia, que teve grande apoio da Noruega e da Alemanha) para “reconstruir a cidadania do povo amazônico em favor da conservação da floresta” [1]. Só podemos esperar que as eleições futuras favoreçam candidatos comprometidos com a conservação da floresta.

Concessões feitas a partidos de direita têm se mostrado ineficazes na promoção da proteção ambiental e dos direitos indígenas, e Lula deve reconhecer essa realidade e buscar apoio externo. Embora interromper a perda da floresta amazônica seja muito do interesse nacional do Brasil [14], outros países têm um papel a desempenhar ao se conformarem às diretrizes internacionais aplicáveis às commodities brasileiras, como aquelas do Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR), particularmente aquelas provenientes da Amazônia [15]. Zonas livres de mineração precisam ser definidas na Amazônia em colaboração com os povos indígenas [16], e o Ministério dos Povos Indígenas e a implementação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) precisam ser fortalecidos, garantindo a participação indígena nas decisões relativas a seus territórios e projetos de infraestrutura na Amazônia. Embora os povos indígenas e as terras indígenas tenham benefícios significativos para o meio ambiente amazônico [17, 18], os direitos indígenas precisam ser respeitados independentemente desses papéis, porque são direitos humanos.

Na abertura da 79ª sessãoda Assembleia Geral da ONU em setembro de 2024, Lula criticou o mundo em geral por suas promessas não cumpridas de mitigação climática. Agora Lula tem que decidir qual caminho tomará na questão climática. A proposta da Autoridade Climática visa genuinamente promover a governança climática ou é apenas um meio de legitimar a dinâmica econômica que avança na Amazônia? Adiar a decisão deixa duas sérias incertezas pendentes: a conservação da Amazônia brasileira pode se dar ao luxo de esperar por um momento favorável no sistema presidencialista de coalizão e como a realização dessa esperança é complicada pela discrepância entre o ritmo lento da política e a aceleração das mudanças climáticas e eventos extremos?

Uma certeza parece indiscutível neste momento. Após dois anos de sua atual administração, deve estar claro para Lula que uma coalizão interna para lidar com a mudança climática é inatingível. [19]

Sobre os autores:

Rodrigo Machado Vilani Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000) e em Direito pela Faculdade Vianna Júnior (2003). Possui mestrado em Direito (2006) e doutorado em Meio Ambiente (2010) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Realizou pós-doutorado no Programa de Biodiversidade e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (2014). É professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde ingressou em 2014. Suas áreas de interesse são: Direito Ambiental; Política Ambiental; Áreas protegidas; Conflitos Ambientais; Ecoturismo.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Carlos José Saldanha Machado é Graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Política de Ciência e Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Paris V (Sciences Sociales Sorbonne). Atualmente é pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, no Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (LICTS/Icict). É professor colaborador de Programas de Pós-Graduação da Fiocruz (Informação e Comunicação em Saúde – PPGICS/Icict, em Biodiversidade e Saúde – PPGBS/IOC), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Doutorado em Meio Ambiente – PPG-MA/UERJ) e do Mestrado Profissional em Rede Nacional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos (PROFÁGUA / UNESP / USP / UERJ / UFRGS / UFPE / UEA / UFES).

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