Governo Lula: Da “Frente Democrática” à “União Nacional”
Lula e o PT estruturaram o novo governo ampliando a frente democrática que venceu as eleições, incorporando parcelas das tradicionais oligarquias do “Centrão”. Depois de conseguirem avançar para uma postura ofensiva sobre o bolsonarismo - desgastado pelo putsch de janeiro e por escândalos de corrupção - eles seguem buscando um pacto de governabilidade entre o setor financeiro, um dos Congressos mais conservadores da história e os movimentos populares. Seu objetivo é re-estabilizar o regime da Nova República, dar condições aos negócios de sempre, produzir algum crescimento e desfazer boa parte das iniciativas bolsonaristas. Mas esta estratégia vai evidenciando os limites estruturais da improvável aliança de classes no poder.
Com a eleição de Arthur Lira (PP-Alagoas) como presidente da Câmara dos Deputados e de Rodrigo Pacheco (PSD, Minas Gerais) como presidente do Senado, em 1º de fevereiro de 2023, apoiados por Lula, completou-se o desenho político-institucional do terceiro mandato de Lula. “Sem Lira e Pacheco, nós não estaríamos aqui hoje. Eles foram os grandes responsáveis pela transição”, afirmou em 7 de abril o Ministro da Fazenda Fernando Haddad, referindo-se em particular à aprovação de uma emenda constitucional antes da posse, que garantiu orçamento para medidas básicas no primeiro ano de administração, como o Bolsa Família de R$ 600. E completou. “Isso é um reconhecimento justíssimo. (...). Não creio que eles vão faltar [agora], sobretudo com a agenda de recuperação fiscal e aquilo que é política de estado e não é política de governo”.
O governo eleito vem adotando medidas indispensáveis de reconstrução de instituições públicas desmontadas nos últimos anos, em especial nas áreas indígena e ambiental, com destaque para a Amazônia. O Judiciário aprofunda as investigações dos atos antidemocráticos cometidos pelo bolsonarismo radical - em final de abril já tinham sido sido tornados réus 300 dos 1390 presos pelo 8 de janeiro - e investiga um espetacular escândalo de corrupção que golpeia o coração do bolsonarismo - as “jóias das Arábias”. Avançam as iniciativas para reconstituir relações mais tranquilas entre a “frente democrática” e os militares – o Comandante do Exército desobediente foi substituído e os membros das Forças Armadas envolvidos nos atos de 8 de janeiro serão julgados como civis. A atuação do governo começa a ganhar fluidez, em alguns casos frente a situações dramáticas, como o do genocídio dos yanomamis, incentivado pelo governo anterior. Encaminha também um projeto para restringir a autonomia, hoje completa, das plataformas digitais, em especial na difusão de fakenews. Ainda há um tom de grande alívio nas esferas progressistas da sociedade: saiu-se da queda livre no abismo para um terreno firme.
A dura realidade da correlação de forças sociais elimina, contudo, as ilusões de que estaríamos frente a um governo “de esquerda”. A administração se move com bastante lentidão, consciente não só de seus limites legislativos, impostos pelos acordos de toma-lá-dá-cá com o Centrão[1] (sempre ameaçados pelos nada confiáveis parceiros), mas também pelas contradições dentro da “frente democrática” entre progressistas e liberais, como no caso dos atritos públicos entre a presidente do PT, Gleise Hoffman, e o Ministro da Fazenda, em torno do anúncio do novo regime de metas fiscais (a nova regra ou arcabouço já tramita no parlamento, para substituir o ultraliberal Teto de Gastos, de 2016, que transformou em regra constitucional que despesas e investimentos públicos só crescessem na razão direta da inflação do ano anterior.)
A transmutação do governo eleito da “frente democrática” em um governo de “união nacional”, dependente da direita e determinado a não mobilizar suas bases, é o quadro dentro do qual se darão as disputas nos próximos anos. Tudo indica que, depois dos anos de estresse permanente pela ofensiva neofascista, entramos em um período de expectativas rebaixadas. A esquerda social e o povo trabalhador necessitam orientações que não os amarrem nos limites atuais – comprometendo a luta pela democracia, pelas demandas populares e pela recomposição da esquerda – e que, ao contrário, potencializem as mobilizações por mudanças sistêmicas no Brasil.
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Lula apresentou-se, durante a campanha, como a encarnação democrática da rejeição a Bolsonaro e da defesa da ordem institucional, respaldado em seu imenso apoio eleitoral. Tomando posse, ele constituiu um governo da “frente democrática” entre progressistas, setores de esquerda e liberais que o apoiaram no primeiro e segundo turnos, dentro de uma estratégia moderada de reconstrução do aparelho de estado federal. Essas forças dividiram o núcleo político e os setores sociais e ambientais da gestão federal.
Mas o governo foi, desde o início, formado também com parcelas do Centrão (leiam-se parcelas da representação política das oligarquias regionais brasileiras)[2] em um pacto fisiológico de governabilidade. Ou seja, já tomou posse como um governo de “união nacional”. Vieram para o governo central também o MDB (uma federação de oligarcas do Brasil profundo), o PSD de Gilberto Kassab e o União Brasil, de Luciano Bivar (tetraneto do partido da ditadura, a Arena). Cada uma dessas siglas foi contemplada com três ministérios, incluindo alguns dos dotados de maiores orçamentos e valor estratégico, como Comunicações e Minas e Energia. Seus ministros têm extensa ficha corrida de todo tipo de práticas da direita reacionária - como mostram os escândalos que já eclodiram nos ministérios do Turismo (cuja titular teve milicianos do Rio de Janeiro como cabos eleitorais) e das Comunicações. Essas escolhas começam a cobram um preço ideológico junto a setores politizados da opinião pública.
Este trânsito de apoios está longe de se restringir às iniciativas de Lula e ao governo federal. O caso de Gilberto Kassab (ex-prefeito de São Paulo) é particularmente relevante, porque ele co-governa, de fato, o principal estado conquistado por um bolsonarista, o governo de São Paulo, onde ele é braço direito do governador Tarcísio de Freitas, do Partido Republicano e ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro. O militar carioca Tarcísio já tinha uma posição de destaque no governo Dilma I e II, antes de se tornar uma figura chave do bolsonarismo. Um estranho no território paulista em que se candidatou, ele teve que entregar boa parte da montagem de seu governo a Kassab, herdeiro da máquina política conservadora do PSDB no estado. As convivências fisiológicas se multiplicam: o deputado federal Antônio Carlos Rodrigues, do PL (ex-ministro de Dilma e agora no partido de Bolsonaro), foi eleito em 8 de fevereiro coordenador da bancada paulista na Câmara dos Deputados, com o apoio do PT, em um gesto para tentar dividir a base do PL (o partido da família Bolsonaro). A atuação com conservadores é norma na ação política do PT, no que estão chamando de um “seguro democrático”.
O desenho do atual governo é a culminância da estratégia que Lula vinha perseguindo desde que saiu da prisão, em novembro de 2019, e que já estava evidente em 2021, quando se recusou a chamar as mobilizações de rua pelo “Fora Bolsonaro” (remetemos, aqui, ao artigo Quo vadis Lula?). Era uma estratégia perigosa, que quase naufragou no segundo turno de 2022 pela força eleitoral de Bolsonaro. O respaldo da burguesia mais globalizada, do Superior Tribunal Federal e dos governos dos EUA e da Europa e a hesitação das Forças Armadas afinal lhe garantiram a vitória por pequena margem e a posse. Foi uma vitória decisiva para recompor as perspectivas da democracia liberal no mundo globalizado, uma disputa contra uma vasta constelação conservadora de iliberalismos, autoritarismos, integrismos religiosos e neofascismos, que vemos ser travada dos EUA ao Reino Unido, da Itália à Israel, do Perú e à Índia.
E mais: o governo Lula 3 está se tornando, a rigor, um governo Lula-Alckmin-Lira, isto é, o rateio da máquina de estado federal entre três setores: 1) o progressismo reformista em todos os seus matizes (incluindo a esquerda moderada do PSOL, representada por Guilherme Boulos e Juliano Medeiros); 2) o “partido” do grande capital financeiro e dos negócios globalizados; e 3) amplos setores da direita conservadora ou reacionária fisiológica do Centrão simbolizados em Arthur Lira, que negocia, sempre por interesses particulares, com a “frente democrática”. E, na superfície, Lira tem mais peso do que Alckmin, porque as forças que este representa – o capital financeiro e os negócios globalizados - não são tão visíveis no cotidiano.
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A conformação dessas alianças à direita foi facilitada sobremaneira pela tentativa de golpe bolsonarista, uma oportunidade que Lula aproveitou com destreza. Ela forçou, de um lado, boa parte da constelação conservadora e reacionária, que dava musculatura ao bolsonarismo na disputa de hegemonia, a se distanciar do seu núcleo fascista e se aproximar do governo federal. Como exposição da face mais destrutiva do bolsonarismo, a tentativa de golpe também evidenciou os limites das atuais articulações internacionais do neofascismo verde-e-amarelo. De outro, facilitou que o governo equacionasse provisoriamente a séria “questão militar” – leia-se a indisposição, quando não oposição aberta (e golpismo), do alto oficialato a seu governo, maior vulnerabilidade de Lula.
Em 21 de janeiro, Lula substituiu o comandante do Exército por um general que se coloca como defensor da Constituição. Ele também colocou sob o holofote da mídia o genocídio dos yanomamis desencadeado pelo governo Bolsonaro, emparedando-o frente a parcelas significativas da opinião pública internacional e nacional em um tema vinculado à defesa da Amazônia – o que, ao mesmo tempo, desmascara as posições reacionárias da caserna sobre o tema. Lula ganha, assim, condições de adotar posições mais duras em defesa da Amazônia, seu compromisso internacional estratégico.
Como afirmou Jorge Almeida em um artigo em que analisava a tentativa de golpe, esta foi “uma oportunidade para o governo e os movimentos populares tomarem iniciativas que visem uma limpeza da extrema direita dentro das instituições e para reduzir sua influência na sociedade de modo geral (...) Em termos imediatos o governo agiu principalmente com acertos, dentro dos limites de medidas de emergência que poderiam ser esperadas de um governo com os propósitos e alianças com setores burgueses liberais de direita (inclusive golpistas de 2016)”.
A abortada insurreição fascista do dia 8 de janeiro também deu condições ao STF e ao STE (Justiça Eleitoral) – peças-chave na sustentação do governo – avançarem contra o núcleo duro bolsonarista. Jair Bolsonaro perdeu sua imunidade e, segundo muitos analistas, provavelmente se tornará inelegível; com o escândalo das “joias das Arábias” pode, inclusive, ir para a prisão. Figuras como os ex-ministros Damares, Pazuello, Mourão, além de Flávio Bolsonaro (o filho 01), por outro lado, são senadores; Eduardo Bolsonaro (o filho 03) e Ricardo Salles, deputados. Contarão com a cumplicidade de seus “pares” para passarem impunes pelos próximos anos. Isso já parece estar sendo assimilado pela “frente democrática”: um deputado petista, Washington Quaquá, postou sua foto nas redes sociais posando ao lado de Pazuello, gestor criminoso da Saúde sob Bolsonaro!
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Lula opera pragmaticamente dentro da institucionalidade estabelecida – como sempre disse que faria. Sua base partidária na Câmara é integrada por 140 dos 513 deputados (incluídos os 12 do PSOL). O PL bolsonarista elegeu 99 deputados. Entre os 271 “independentes”, aqueles filiados a partidos chamados para integrar formalmente o governo somam 143 deputados (59 da União Brasil, 42 do MDB e 42 do PSD), mais do que a bancada governista. Ainda assim, 284 (nada “garantidos”) é um número distante dos 308 deputados (e 49 senadores) necessários para aprovar uma emenda constitucional. No Senado, dos 81 integrantes (três por estado), o governo tem 32, mas contando aí 16 do PSD de Kassab. Os que se declaram oposição somam 27. Os “independentes” são 22 senadores, 10 do MDB, 9 da União Brasil e 3 do PSDB.
Arthur Lira foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, com o apoio tanto do lulismo como do bolsonarismo. Teve 464 votos, contra 21 dados a Chico Alencar do PSOL e 19 dados a Marcel van Hatten, do ultraliberal Novo. A candidatura própria do PSOL foi uma iniciativa importante para o partido afirmar sua independência frente ao novo governo, mas isso se dá em um braço de ferro com Guilherme Boulos, deputado por São Paulo, novo líder da bancada do partido, que articulou a indicação de Henrique Vieira, do PSOL do Rio de Janeiro, para vice-líder do governo Lula na Câmara. (Ou seja, o PSOL é parte da base parlamentar do governo.)
Lira, que foi aliado de primeira hora de Bolsonaro, foi uma das primeiras autoridades a reconhecer a vitória de Lula e negociou com ele a aprovação da PEC da Transição (com o pagamento de R$ 600 para o Programa Bolsa Família). Lira girou em direção ao governo em função da tentativa de golpe de 8 de janeiro, diferenciando-se fortemente do bolsonarismo-raiz. Ganhou, assim, considerável margem de manobra para negociar cargos de segundo e terceiro escalão do Executivo, ao mesmo tempo que mantém sua autonomia para disputar posições conservadoras contra o governo no Legislativo. Já disse a seus aliados que “enquadrou o governo”; isso significa que o Centrão amplia sua participação no governo e na definição das condições de governabilidade.
Como afirma Aldo Rebelo, um ex-comunista que se tornou conservador e que foi presidente da Câmara de 2005 a 2007, “no governo anterior [Bolsonaro], o Arthur Lira era apontado nos bastidores como o primeiro-ministro do Brasil. Nesse governo, continuará sendo. Isso porque o presidente Lula, com todo respeito, não tem votos na Câmara. Ele tem apenas os votos da coligação que o ajudou a se eleger - o resto ele vai ter de disputar. Mas, a princípio, nessa relação disputada de força, a vantagem é sempre do governo. Quem tem os ministérios, o Tesouro, o Banco Central, o Banco do Brasil, a Caixa e outros instrumentos de poder é o governo. Então, a vantagem é sempre dele. Agora, essa vantagem existe desde que o governo acerte, e não cometa erros graves. (...) É como diz o pessoal: casamento com governo é só na saúde e na alegria. Na doença e na tristeza, esqueça”. As negociações atuais não têm, do ponto de vista das oligarquias brasileiras, nada de excepcional.
No Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o antigo presidente da casa, foi reeleito com 49 votos contra a candidatura de Rogério Marinho (PL-RN), que alcançou 32 votos. Foi o confronto aberto entre o novo bloco governista e o bolsonarismo-raiz. O Senado foi, junto com os governos estaduais, a instância em que a extrema-direita mais se fortaleceu no processo eleitoral de 2022. O governo Lula jogou todo seu peso na disputa e o resultado permitiu visualizar a correlação de forças do esquema de alianças articulado pelo governo.
Notícias veiculadas dão conta de que alguns dos principais governadores de estados estão cogitando mudar de partido de olho no novo ciclo político: Cláudio Castro do Rio de Janeiro parece buscar desembarcar do PL, que se tornou uma armadilha na disputa entre seu presidente, Valdemar Costa Neto, e o bolsonarismo-raiz. Tarcísio de Freitas, de São Paulo, pode deixar os Republicanos pelo mais “respeitável” PSD de Kassab e Pacheco, o que facilitaria sua vida com o governo federal, embora procure manter uma “marca” bolsonarista. Já Romeu Zema, do Novo, governador de Minas Gerais, aposta no caminho de disputar a herença do bolsonarismo e busca se consolidar como referência de oposição a Lula, procurando uma legenda de peso nacional.
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Foram para o governo ou foram mantidos em seus cargos, na última rodada de negociações para o segundo escalão, não apenas uma nova fornada de políticos da União Brasil, mas também do Partido Progressista de Lira, com o qual o União Brasil quer formar uma federação. O PP, outro dos derivados da antiga Arena, partido da ditadura militar, “apoiou” todos os governos desde sua fundação em 1995. Com a federação, a União Brasil e o PP terão a maior bancada na Câmara, com 108 deputados, e a segunda do Senado, com 15 senadores. Para eles ficará o comando de empresas estatais estratégicas como as de obras na Bacia do Rio São Francisco (a Codevasf) e a das obras contra as secas do Nordeste (o DNOCS, este para o Avante, sigla satélite do PP, com sete deputados).
Lula negocia igualmente com os Republicanos, partido dos pastores neopentecostais mais reacionários (que participou da base dos governos Lula 1 e 2 e Dilma até apoiar o impeachment). É o partido do Bispo Marcelo Crivella e da Igreja Universal do Reino de Deus, baluarte do fundamentalismo religioso, mas também da ex-ministra Damares Alves e do ex-vice-presidente (general) Hamilton Mourão, agora senadores.
Foi em um braço de ferro com Arthur Lira que Lula conheceu sua maior derrota até agora, aceitando a pressão para manter no cargo o Ministro da Comunicações, Juscelino Filho, da União Brasil, acusado de utilizar um voo da FAB para tratar de assuntos pessoais e receber diárias para participar de leilão de cavalos em São Paulo. Gleisi Hoffmann, a presidente do PT havia pedido o afastamento do ministro e tudo indicava que ele seria demitido na reunião com Lula em 6 de março. No mesmo dia, o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmava em um evento na Associação Comercial de São Paulo que debatia a reforma tributária: "Teremos um tempo pra que o governo se estabilize internamente, porque hoje o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara, nem no Senado para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matérias de quórum constitucional".
As escolhas de Lula já foram feitas. Ele quer uma situação tranquila no Legislativo, pagando o preço que for necessário para isso. Está oferecendo um valor para emendas parlamentares maior do que Bolsonaro (R$ 46,3 bilhões, ou US$ 9,2 bilhões) e as retira dos cálculos das novas regras de gastos públicos. (Emendas parlamentares são recursos dos quais os parlamentares individualmente, por bancada, e/ou líderes de Comissões do Congresso podem dispor para projetos específicos, em geral em benefício de suas bases eleitorais.) Lula precisa mostrar serviço rapidamente, antes que a lua de mel eleitoral se encerre, para manter uma maioria social que se revelou eleitoralmente muito estreita.
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Lula e os petistas mais dependentes dos humores populares (entre os quais a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann) parecem preocupados principalmente com garantir recursos para políticas redistributivas e para o que consideram desenvolvimento. Eles têm consciência de que, caso não recupere o crescimento, a emprego e a renda dos mais vulneráveis, o governo estará em apuros diante da direita apenas provisoriamente derrotada. Mas esse objetivo “progressista” entra em choque frontal com a determinação do presidente e da equipe econômica liderada por Haddad em demonstrar responsabilidade e confiabilidade ao capital financeiro. Este é o espírito do projeto de nova regra fiscal (ou “arcabouço”, no jargão econômico neoliberal), apresentadas pelo Ministro da Fazenda. Nessa estratégia revela-se a principal contradição alimentada pelo governo de conciliação de classes.
A ideia do governo é substituir o impraticável Teto de Gastos inventado por Temer e a direita ultraliberal, nunca completamente obedecido por Temer e Bolsonaro, por uma nova regra limitante. Nesta, os gastos, incluídos investimentos públicos, podem crescer numa proporção de 70% da arrecadação federal. Se a arrecadação crescer 1% durante um ano, de julho a junho, o governo pode aumentar despesas em 0,7% no período seguinte (ficam de fora os tetos constitucionais da Saúde, Educação, Hospitais Universitários, algumas verbas para o meio ambiente, limite de gastos para emendas parlamentares e outras exceções). No entanto, o aumento das despesas fica limitado a no mínimo 0,6% da arrecadação e 2,6% como máximo, com o compromisso de zerar o déficit público em 2024 e obter superávit (mais receita que despesas) nos anos seguintes. Estabelece-se, ademais, uma faixa (banda) dentro da qual pode variar o chamado resultado primário – a diferença entre as despesas e as receitas da União. Por exemplo, para 2025, o governo se compromete a obter um superávit primário de 0,5% do PIB.
Não é necessário ser versado em Economia para compreender que se trata de um novo Teto de Gastos, flexibilizado. Como o teto anterior, a nova regra baseia-se na ideia-força neoliberal de que é preciso equilibrar as contas, com o PIB e a arrecadação como referências, para garantir uma determinada proporção entre a dívida pública e o total da riqueza do país medido pelo PIB (a muito repetida “relação dívida-PIB”). Tudo para garantir que haja folga de caixa ou uma “economia” de antemão suficiente para o pagamento das parcelas da dívida aos rentistas – os que vivem, no Brasil e no exterior, de rendas dos títulos da dívida do país.
Do ponto de vista econômico, tendo em vista que o Banco Central (tornado independente sob Bolsonaro) se nega a reduzir a taxa básica de juros escorchante de 13,75% ao ano, resta ao governo tratar de fazer a equação funcionar pela via de aumentar a arrecadação, ou seja, os impostos. Como prometeu em campanha eleitoral aliviar a carga de impostos sobre trabalhadores e classe média assalariada, restam por ora os caminhos de (1) acabar com isenções e reduções de impostos concedidas a setores empresariais domésticos – o que cria conflito direto com ramos inteiros do capital; (2) taxar jogos on line (as bets). Infelizmente, não passou pela cabeça dos magos elaboradores do teto flexível passar a taxar operações financeiras isentas no Brasil, especialmente aquelas em que ficam investidas as fortunas dos milionários e bilionários e a distribuição de dividendos das empresas.
Há ainda uma terceira medida teoricamente possível: conseguir fazer passar no Congresso uma reforma tributária capaz de não só simplificar as cobranças como combater o “planejamento tributário” das empresas – um eufemismo para as manobras de sonegação da burguesia – o que aumentaria a arrecadação, juntamente com um provável aumento da taxação sobre a pequena e média burguesia. O problema é que se trata de um desafio gigantesco frente a um parlamento fragmentado e de maioria direitista. Na reforma tributária está em jogo não só um possível embate com o Centrão, mas também os acordos de composição da “frente democrática”. O vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, cobrou que a reforma seja aprovada neste ano: “Temos que fazer a reforma tributária. Não é possível esse manicômio tributário em que nós vivemos. Vai tudo parar na Justiça. A melhor profissão do mundo é advogado tributarista. É uma fábula o valor das ações e judicializa tudo”, afirmou Alckmin, também ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. O problema é que para reformar o sistema tributário brasileiro, todos os movimentos são conflitivos.
Ao se negar a simplesmente revogar o Teto de Temer e mobilizar contra as amarras de gastos, o governo capitula perante o setor financeiro e cria para si mesmo uma enorme e perigosa armadilha. A nova regra fiscal ameaça o desempenho da gestão: o oficial IPEA projeta um crescimento de 1,4% para 2023 e 2,6% para 2024 (para o FMI, as projeções são de 0,9% este ano e 1,5% em 2024). Expectativas muito magras para um país campeão de pobreza e desigualdade, com enorme demandas em saúde, educação, transporte, meio ambiente, previdência e assistência social.
Do ponto de vista político, é uma bandeira branca em direção à banca e à burguesia em geral, que não deixou de aterrorizar a sociedade com seus alarmes frente à “irresponsabilidade do PT”. Porém, em mais uma prova de que não é possível agradar a Faria Lima e as favelas ao mesmo tempo, esse compromisso de responsabilidade com o mercado vai limitar imensamente a capacidade de investimento do Estado na economia (leia-se no social), ainda mais numa conjuntura internacional que faz muito mais difícil bons resultados nas exportações (como foi nos governos Lula 1 e 2).
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Governar com o Centrão para enfrentar o bolsonarismo é andar, o tempo todo, na corda bamba. A articulação política do governo vive uma situação de saturação permanente, já que cada iniciativa no Congresso é utilizada por algum grupo parlamentar para buscar melhorar sua barganha com o governo. No dia 18 de abril, a CNN Brasil divulgou um vídeo com novas imagens do 8 de janeiro, em que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo Lula, general Gonçalves Dias, parece estar facilitando a movimentação dos extremistas ao Palácio do Planalto. Nele, é possível ver militares do GSI abrindo a porta, dando orientações sobre os caminhos dentro do palácio e até servindo água para os invasores. O Gabinete tinha colocado o vídeo em um sigilo de cinco anos. No dia seguinte, o general foi demitido da chefia do GSI. Foi a primeira demissão de um ministro do governo. Para seu lugar foi indicado interinamente o secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli. Gonçalves Dias é um dos poucos militares que têm uma relação de confiança com Lula, tendo sido responsável por sua segurança de 2002 a 2010. Lula acredita que o general não o traiu, mas não tinha mais condições de se manter no cargo. Em um depoimento à Polícia Federal no dia 21, Gonçalves Dias afirmou que a falta de reação do governo no dia 8 de janeiro resultou de “um apagão geral do sistema pela falta de informações para tomada de decisões”.
A divulgação das imagens e a demissão do general tornaram inevitável a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (conjunta da Câmara e do Senado) sobre os “Atos Antidemocráticos”. O governo tentava bloquear a iniciativa da direita, pela qual os defensores do ex-presidente Bolsonaro queriam acusar o governo Lula de omissão em 8 de janeiro. Mas, agora, eles já circulam nas redes que os mentores dos atos seriam petistas infiltrados. Com a criação da CPMI, os apoiadores do governo estão reagindo e brigam para dominá-la. Se conseguirem, vão buscar detalhar os movimentos do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores que levaram à invasão das sedes dos Três Poderes, ampliando as pressões para levá-lo à prisão.
Arthur Lira instalou na Câmara também uma CPI contra o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Isso desagradou lideranças do movimento, aliado histórico do PT e de Lula. Parlamentares governistas buscam agora esvaziar a CPI ou impedir sua instalação, com o argumento de que ela não tem objeto definido; desde 2003, o MST foi investigado em quatro comissões no Congresso. Mas isso dá a Lira e a imprensa conservadora mais munição para pressionar o governo por “moderação” e “enquadrá-lo” ainda mais na governabilidade conservadora. João Paulo Rodrigues, que é coordenador nacional do MST, reagiu aos pedidos de moderação afirmando que o grupo sempre defenderá o governo Lula, mas que não é “correia de transmissão” da gestão do petista nem aceita “nenhum tipo de coleira ou focinheira” sobre a organização. Em entrevista à Folha de São Paulo, ele disse: “O governo é nosso, nós ajudamos a construir. Mas o MST tem autonomia em relação ao PT e ao governo”.
As trombadas envolvem também os erros de Lula. Ele enfrentou artilharia pesada pelas repercussões das declarações em sua viagem à China e aos Emirados Árabes Unidos, em que dizia que tanto a Rússia como a Ucrânia eram responsáveis pela guerra. O presidente brasileiro ambiciona ter um protagonismo pessoal em uma mediação na guerra. Mas este é um terreno minado, que envolve as relações não só com a Ucrânia invadida e com a Rússia invasora, mas também com os Estados Unidos e a Alemanha, que apoiam a Ucrânia, e a China, aliada da Rússia. Lula assumiu, na prática, a posição da China, que em fevereiro apresentou um plano de paz de 12 pontos, que não exige a retirada prévia da Rússia do país invadido.
As reações dos Estados Unidos e dos países da União Europeia foram contundentes e cobraram de Lula uma retificação da posição. Em discurso no Itamaraty, no dia 18, Lula teve que recuar e afirmou que a posição brasileira adotada nas Nações Unidas é de compromisso com a defesa da inviolabilidade de fronteiras de países soberanos. "Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política e negociada para o conflito", afirmou. Em sua nova viagem, agora a Portugal e Espanha, Lula se posicionou com mais cautela.
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Tudo se torna muito mais difícil e desafiador para o governo Lula porque, apesar do desgaste e momentânea derrota de Bolsonaro e da ultradireita-raiz, o Brasil mostrou-se dividido. O bolsonarismo fanático, golpista, pode ser uma minoria (importante) de 20% ou 25%, segundo as pesquisas, mas arrasta eleitoralmente quase a metade da população votante.
Bolsonaro e a ultradireita não nascem do conservadorismo histórico da sociedade brasileira. A fábrica social de precarização neoliberal, que não nasceu mas cresceu geometricamente depois do golpe de 2016, interage organicamente com o bolsonarismo-raiz, expressão de uma lumpenburguesia que depende de espoliar de forma muito mais intensa a força de trabalho, depredar a natureza, promover os novos empreendedores de si ideologizados e mobilizar as tradições reacionárias nas guerras culturais contra a esquerda e as pautas sociais. Para enfrentar o monstro, é preciso entender também como o progressismo o alimentou, na transformação que promoveu na sociedade brasileira entre 2002 e 2016.
No espaço aberto pelo catolicismo para o neopentecostalismo e na conciliação com os pastores promovida pelo PT em seus governos, cresceu a ofensiva conservadora para precarizar a reprodução social – o que se expressa no patriarcalismo, na violência em geral e contra mulheres em particular, na homofobia, na transfobia raivosa, no racismo descarado – outro ponto de unidade da atual constelação reacionária que desafia o globalismo pelo mundo afora. A ausência de mobilização político-ideológica pelo lulo-petismo favoreceram, em conjunto com a política colocada em marcha na Igreja Católica por João Paulo II, a contrarrevolução mental que já estava em curso na sociedade brasileira: a população evangélica cresceu de 9% do total em 1990, para 32% em 2020.
O neopentecostalismo vem acompanhado do empreendedorismo popular, do individualismo e da competitividade como valores que se difundem pelo tecido social, dando ao liberalismo uma organicidade que ele jamais tivera até então no país. O abandono pela esquerda majoritária do horizonte de um projeto político e de uma utopia de igualdade e justiça social, política cidadã e reconhecimento da diversidade, que poderia ter ajudado a contrarrestar esta tendência, propiciou um enraizamento de um novo tipo de conservadorismo, um passivo que perdurará para muito além da vida dos protagonistas políticos. Este é um problema central ignorado por esquerdas produtivistas e doutrinárias, que tratam a vaga de neofascismos como uma radicalização do neoliberalismo.
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Os governos petistas, nostálgicos do imaginário desenvolvimentista que os moldou, e pragmáticos diante das elites agrárias, foram passivos e conservadores frente aos três processos mais estratégicos do mundo contemporâneo: os cercamento dos “comuns” da natureza, com seu séquito de predação ambiental; o cercamento dos “comuns” do conhecimento, pelo avanço das tecnologias digitais monopolizadas pelas corporações de plataforma; e a deterioração da unipolaridade geopolítica centrada nos EUA em crescentes disputas interimperialistas.
Soja, madeira, carne, petróleo, celulose, cana-de-açúcar, minério de ferro - cada um destes “complexos econômicos” são focos de destruição do país, do seu bioma e de desumanização das pessoas que o habitam; eles deveriam sobreviver de maneira apenas subsidiária em uma sociedade racional. São “complexos” ligados a processos de expropriação que forçam as populações de miseráveis a aceitá-los porque precisam sobreviver. Esta estrutura econômica (e de poder), tratada pelos economistas e políticos progressistas como um dado a ser gerido, é uma ameaça à sobrevivência da humanidade, como nos lembram Eleuterio Prado e Luiz Marques. Estes também introduziram o país, em nome da inovação tecnológica vista como incontornável, na sociedade das conexões algorítmicas, o que desfez todo o esforço meritório dos oito anos de governos Lula de formalizar as relações de trabalho. E não compreenderam que, na nova base tecnológica do capitalismo, a dependência internacional mudava de forma e os negócios com a China, depois de 2009 a principal parceira comercial do Brasil, aprofundavam ainda mais o papel subalterno do país na divisão internacional do trabalho. Uma transição energética na Europa e EUA vai se apoiar na ampliação de novas zonas de sacrificio neoextrativista aqui.
O PT jamais entendeu o colapso da União Soviética e de seu regime, a debacle da social-democracia tornada “terceira via” e a desaparição do “terceiro-mundismo”. Ficou congelado na visão do mundo unipolar da década de 1990, carregando a ilusão de uma China supostamente socialista. Favoreceu, em nome de uma ideologia do progresso, tanto a manutenção da inércia da predação ambiental (redução do desmatamento na Amazônia com expansão do agronegócio!), como a produção de uma nova e vasta classe ainda mais amorfa de proletários “empreendedores de si”, escravizados pelas plataformas e dirigidos por pastores neopentecostais.
Esta foi a fábrica do bolsonarismo entre gente pobre e classes médias decadentes que assimilam a ideologia individualista, caem nas garras dos algoritmos das redes sociais e terminam reconstituindo suas teias de sociabilidade nas igrejas evangélicas neopentecostais. É muita falta de visão, quase cegueira, ver o neofascismo apenas como um processo político-ideológico, sem vislumbrar sua base material, ou identificá-lo genericamente com o neoliberalismo. É o que faz, infelizmente, Guilherme Boulos, que louva o governo Lula por saber “utilizar como poucos o boom do preço das commodities, motivado pelo crescimento do PIB chinês a dois dígitos, para impulsionar o crescimento econômico brasileiro” (Sem medo do futuro, p.126). A fábrica social de fascistização do Brasil pela “inclusão pelo mercado” continua funcionando a pleno vapor e nada indica que não terá resposta agora pelo governo de união nacional.
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Lula e Alckmin estão trabalhando com o STF para fechar a crise do regime, o interregno caótico aberto em 2013. Mas eles precisam do Centrão, e precisam hoje muito mais do que precisavam em 2013, pelos erros que cometeram e pelo espaço que abriram para a reação. No passado, Getúlio Vargas precisava das oligarquias agrárias, que bloqueavam seu projeto nacional-industrializante, uma crise que escalou em 1954. Vargas ganhou a queda-de-braço naquele momento, oferecendo sua própria vida, o que deu uma sobrevida de uma década ao estado nacional-desenvolvimentista, até o golpe de 1964. O governo Lula está em uma armadilha, como tem analisado Jean Marc van der Weid em uma série de artigos. Paulo Arantes visualiza este dilema com precisão em uma entrevista recente – trata-se de ganhar tempo –, o que produziu reflexões estimulantes de Gabriel Feltran e Bruno Cava.
Não são meras escolhas táticas, mas enraizadas na dinâmica estrutural do regime de 1988, sobredeterminada pelas disputas mundiais entre o globalismo neoliberal e o nacionalismo conservador, que definem se Bolsonaro ou Lula podem se tornar (de novo) presidentes do Brasil disputas cujo epicentro é a crise de regime vivida pelos Estados Unidos e não as disputas geopolíticas. A política de reformismo fraco do PT, ancorada na adesão eleitoral das massas desorganizadas tornadas clientelas das políticas públicas, depende, desde 2006, de acordos com setores oligárquicos; não pode nem formular um projeto de ruptura nem apelar para a mobilização de massas. Estas duas são tarefas para uma esquerda sem amarras com o “progressismo”. A governabilidade conservadora, ao lado da manutenção do modelo econômico, acorrenta o progressismo na defesa de um status quo que podemos resumir na defesa do regime político constitucionalmente estabelecido. Isso deixa uma avenida para a extrema-direita reconstituir sua força política como expressão (deformada) do inconformismo social - que vai ser direcionado por ela contra a democracia liberal. O destino da Nova República revela-se estruturalmente instável nas condições críticas do capitalismo que se abriram em 2008.
Lula pode aproveitar o quadro atual para modificar coisas importantes, como o papel dos militares ou a regulação das plataformas. No passado, o PT sempre preteriu mudanças políticas estratégicas em detrimento de ganhos sociais imediatos – um eco do economicismo que marca o progressismo brasileiro. Lula já assumiu, em princípio, um compromisso fundamental que confronta o governo não só com a extrema-direita mas com o conjunto dos conservadores organizados no Centrão – a defesa da Amazônia, sem a qual a âncora externa do seu governo desaparecerá (embora ele tenha preferido se dedicar, nas últimas semanas, a discutir a guerra na Ucrânia). Seu governo dá espaço para que pautas dos diferentes movimentos sociais voltem a ecoar mesmo que sua efetivação vá ser encaminhada para os corredores misteriosos das burocracias dos ministérios ou do Congresso. Devemos apoiar o governo em todas as iniciativas positivas que tome, embora a história pretérita indique que elas serão limitadas; nada indica que ele empreenderá mudanças que possam colocar o núcleo do governo – o co-governo com os liberais – batendo de frente com o Centrão. Mais ainda, sua agenda carrega um elemento reacionário incontornável, a conciliação com o grande agronegócio exportador, inimigo da humanidade, evidente em “detalhes” na comitiva que viajou antes de Lula à China!
Não se trata de fazer oposição ao governo, mas sua atuação é e será cada vez mais limitada. Passada a lua de mel da maioria da população com ele, a insatisfação social retornará. E não na sociedade brasileira de 2010, mas na de 2022. Uma reviravolta política nos EUA, com a volta dos republicanos ao governo em 2026, pode alterar os humores de parcelas significativas das classes dominantes brasileiras. Caso isso ocorra, o reacionarismo e o neofascismo tentarão casar isso com a insatisfação popular e, graças às plataformas digitais, têm as ferramentas para tanto, embora não mais com a mesma facilidade que em 2018.
Ninguém progressista gosta de ouvir que, depois de quatro anos de bolsonarismo, os horizontes do governo Lula, que foi tão difícil de ser conquistado, são tão problemáticos. Devemos contribuir para que ele possa avançar o máximo possível. Mas a esquerda só pode fazer isso se avançar as demandas populares com independência desde os movimentos e orientadas por outro programa, liberta da armadilha da governabilidade conservadora que acorrenta Lula e o PT.
Vivemos uma época de mudanças disruptivas globais que mergulharam a esquerda em uma grande confusão, já que o passado não oferece a bússola necessária para o presente. Não podemos antever todas as consequências das mutações em curso, mas podemos visualizar tendências que balizam posicionamentos programáticos e estratégicos. Foi o que fizeram, por exemplo, os socialistas no século XIX face à industrialização e os das primeiras décadas do século XX frente às guerras e revoluções, assim como os das décadas de 30 e 40 diante da luta contra o fascismo clássico e, depois, da revolução anticolonial.
Um primeiro marco, frente aos fascismos e conservadorismos que assomam pelo planeta, é a tarefa de qualificar a esquerda com um olhar estratégico na luta pela democracia política e social em todas as frentes, recusando os apelos populistas de adaptação a vitórias eleitorais fugazes, de um lado, e, de outro, a tentação de substituir o velho “socialismo real” pelo modelo chinês (ou russo!). Não há alternativas autoritárias frente ao fascismo. As liberdades e direitos democráticos importam e importam muito. Precisam estar ancorados em processos de auto-organização popular que não podem ser tratados de forma instrumental por esta ou aquela força política. Conquistar governos sem lastro social não é conquistar poder, é gerir o estado e o poder estabelecidos em benefício da lógica do capital.
Um segundo marco, frente a um mundo qualitativamente mais integrado, conectado e interdependente, em que o capital se universalizou e produz um emergência ambiental, é dar centralidade e um significado novo ao internacionalismo e ao ecologismo. Há uma herança universalista concreta e uma solidariedade fundamental a ser defendida frente à reação, sem a qual não há avanço político e social. Ela tem uma forma material, econômico-ambiental. Vencer a desigualdade requer outra economia, que rejeite os impulsos quantitativos do crescimento do PIB, e promova uma redistribuição fundamental da riqueza e do poder. Necessitamos uma proposta de economia à altura da inteligência, que rompa com o bloqueio imaginativo estabelecido, no Brasil, pela nostalgia do desenvolvimentismo. Ecossocialismo, decrescimento dos ricos e desglobalização econômica, acompanhados de uma integração regional qualitativamente superior, não serão conduzidas por forças políticas nacionalistas, mas em nome da defesa da teia da vida e de toda a humanidade.
Um terceiro marco é, frente ao mundo das plataformas, redes sociais e big techs, construir poder social e político antissistêmico. Vemos, por toda parte, processos poderosos de auto-organização popular que não se cristalizam em ferramentas políticas independentes dos trabalhadores. Uma alternativa sistêmica se organizará com um programa que permita que o mundo do trabalho possa abarcar toda sua heterogeneidade e construir as alianças sociais e políticas necessárias para disputar o poder político e estatal. Por todo o mundo as mulheres têm se colocado na dianteira da mudança social e política. Por outra parte, as estratégias cegas de disputas de governo deixaram, há já quatro décadas, de acumular força social, destruindo todas as promessas de esquerda que chegaram à direção de aparelhos de estados. Construção de novas ferramentas sociais e estratégias de luta pelo poder são inseparáveis.
Somente avançando programatica, organizativa e estrategicamente nestas agendas, os setores populares brasileiros terão a ancoragem necessária para disputar uma alternativa de organização da sociedade com a extrema-direita. Somente assim os socialistas poderão incidir sobre todo o espectro político que vai da centro-direita à centro-esquerda e ao progressismo, disputar e não serem disputados, dirigir e não serem dirigidos. Se o governo de “união nacional" de Lula-Alckmin-Lira tragar para dentro de si a esquerda socialista, seus limites e impasses - combinados com novas vitórias dos fascismos contemporâneos no exterior e desmobilização social e política no país - darão condições para que a extrema-direita retome a iniciativa. Ela já se articula para 2026 e não teremos a chance de repetir 2022.
[1] No sistema político brasileiro, Centrão denomina um conjunto de partidos (hoje 14) que não possuem uma orientação ideológica específica e que têm como objetivo estar sempre perto do poder executivo, ou diretamente dentro dele, para obter vantagens na distribuição de cargos em órgãos públicos e estatais e obter recursos para redes clientelistas. Apesar do nome, o Centrão não é um grupo de “centro” mas um agrupamento de políticos de orientação conservadora, geralmente composto por parlamentares do "baixo clero", que atuam conforme interesses próprios de poder local, regional ou estadual (quando não familiar), ligado a práticas fisiológicas. A maior parte do Centrão esteve com Bolsonaro.
[2] São do Centrão atualmente Progressistas, PTB, MDB, União Brasil, Republicanos, PSD, Avante, Podemos, PSC, Patriota, Agir, Solidariedade, PROS. O Partido Liberal (PL), que já foi centrão, hoje é o partido de boa parte do bolsonarismo.