Junho de 2013: a história tinha que ser assim?
Dez anos depois, as manifestações de Junho de 2013 emergem como o momento decisivo da história recente do país. Após oito anos de governo de FHC e dez anos de governos de Lula e Dilma, que pareciam ter estabilizado o regime da Nova República, o Brasil mergulhava em uma crise da qual ainda não saiu. A resposta às Jornadas de Junho foram o teste no qual a esquerda institucional fracassou e abriu o espaço que a direita ocupou.
Brasília, junho de 2013
José Correa Leite, 9 de junho de 2023
Há hoje um grande debate, entre todos os setores progressistas da sociedade brasileira, sobre Junho de 2013. Trata-se de decifrar este evento não por interesse historiográfico, mas para mover-se no presente para o futuro.
O senso comum vê, em qualquer grande evento do passado, de alguma maneira, a gênese do que veio depois; ai estariam o golpe que tirou Dilma do governo, a perda de limites do Centrão, Bolsonaro e o fascismo contemporâneo, os pastores reacionários e, mais amplamente, a hegemonia dos defensores da bíblia, do boi e da bala. É a tese de que os protestos incubavam o “ovo da serpente”, como expressa no discurso do PT. Veja-se a última revista Focus Brasil da Fundação Perseu Abramo do PT, 12 de Junho de 2023. Os artigos sobre Junho de 2013 são “o canto da sereia”, “a jornada do abismo”, “o começo da guerra contra os brasileiros”. Esta também é, no extremo oposto, a narrativa racionalizada pela direita e pelo fascismo, que afirmava que o Brasil mostrava sua verdadeira cara contra um sistema político que não representava o povo.
Tentando fugir da auto-justificação ideológica, mas ainda prisioneiros das categorias do senso comum, vemos posições algébricas que buscam descrever a realidade complexa, mas nada explicam. Angela Alonso vai, no seu livro Treze, destacar a heterogeneidade política que estava presente nos protestos. Valério Arcary vai dizer-se angustiado e atormentado, destacando a ambiguidade e confusão das mobilizações policlassistas, já que “as massas populares não foram protagonistas principais em junho de 2013”.
Mas as manifestações de junho de 2013 são um Acontecimento com A maiúsculo. Acontecimentos são, como destacam os historiadores, momentos de síntese totalizante do período histórico, de teste dos atores e bifurcação, de escolhas e decisões. Daí serem úteis sobretudo as análises que não fogem do que estava em jogo no momento, do que poderia ter sido feito e do que foi efetivamente feito, dos agenciamentos possíveis, como as de Marcos Nobre (Limites da democracia), Rodrigo Nunes (Do transe à vertigem) e Eugênio Bucci (A forma bruta dos protestos).
O governo da presidente Dilma Roussef, à frente da terceira gestão federal do PT, estava no centro dos acontecimentos e a ele precisava responder à altura. E estavam também sendo submetidos à prova das ruas o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, do PSDB, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, igualmente do PT. Junho de 2013 foi, para o PT e para o regime da Nova República, a hora da verdade.
Os protestos de Junho: estrutura e dinâmica
Foram para as ruas, em Junho de 2013, em centenas de cidades, 24 milhões de pessoas, mais de 10% da população brasileira, principalmente jovens, agrupando-se em torno das bandeiras progressistas de melhores serviços de transporte, educação e saúde. Expressavam, também, um descontentamento contra o sistema político vigente. Articulando-se nas redes sociais, estavam confiantes de que valia a pena ocupar o espaço público para dizer que a situação presente tinha que mudar.
As manifestações de Junho de 2013 tiveram como pano de fundo, no período anterior, lutas de mulheres e LGBTs contra a ofensiva conservadora em curso no Congresso, protestos contra as obras ligadas à Copa do Mundo de 2014 (que, prometia-se, ajudariam a enfrentar os problemas de infraestrutura de mobilidade urbana, mas se limitaram a construção de estádios faraônicos e superfaturados e de aeroportos modernos) e a luta contra iniciativas de predação da natureza e em defesa dos povos indígenas (contra o novo Código Florestal e a usina de Belo Monte, em solidariedade aos Guaranis Kaiowas...). Mas cresceram também mobilizações pela Tarifa Zero nos transportes públicos em várias capitais do país por grupos autonomistas identificados com o Movimento Passe Livre, em especial na capital paulista, núcleo do movimento.
A forte repressão do governo de São Paulo a um ato contra o aumento dos transportes públicos de R$ 3,00 para R$ 3,20, em 13 de Junho, desencadeou manifestações de solidariedade em que 300 mil pessoas saíram às ruas por todo o país. Nos dias seguintes, elas se sucederam em várias cidades, com os governos de São Paulo e do Rio de Janeiro anunciando o recuo no aumento das tarifas dos transportes. As manifestações tomam outro caráter, com a ampliação da pauta: contra as PECs 37 e 33, a "cura" gay, o “ato médico”, violência policial, gastos com a Copa das Confederações de 2013 e com a Copa do Mundo de 2014, má qualidade dos serviços públicos e indignação com a corrupção. Nas manifestações do dia 20 de Junho, milhões de pessoas saem às ruas em mais de 120 cidades; em Brasília, os manifestantes ocuparam a área externa do Congresso Federal.
Os protestos configuravam uma adesão de setores progressistas da sociedade brasileira à onda global de reações tardias à crise econômica de 2008 (Primavera Árabe, Indignados, Occupy Wall Street), emulados por seus exemplos, partilhando de suas reivindicações, seus métodos de ação e seu rechaço do sistema político estabelecido. A identificação com os movimentos globais se faziam, em boa medida, através da constatação de que os regimes políticos neoliberais funcionavam para manter o poder do 1% em detrimento dos 99%, de que os mercados controlavam a política para além da alternância dos partidos no poder e de que a “corrupção” dos governantes - sua subordinação ao poder do dinheiro - era intrínseca ao sistema. Evidente que esta não identificação ou desconfiança para com o poder incluía setores conservadores, que no Brasil já vinham expressando suas críticas às medidas progressistas desde 2010 e que tinham problemas de natureza variada com o governo Dilma - embora, no terreno das opressões estas medidas viessem sendo tomadas principalmente pelo Judiciário. Mas, por todo o mundo, os movimentos tinham um caráter progressista, levantavam horizontes políticos similares, sintetizados no slogan “Democracia real já”. Junho de 2013 não era diferente.
Se André Singer vê o lulismo como o deslocamento da base social do PT dos setores organizados da classe trabalhadora e das classes médias progressistas para as massas pauperizadas e excluídas, até então ausentes da cena política, 2013 foi uma mobilização de amplas camadas da população urbana, incluindo sua antiga base social e também os novos beneficiários das políticas dos governos Lula e Dilma. 2013 é o resultado de uma década de políticas bem-sucedidas, conduzidas pelo PT, de integração da maioria da classe trabalhadora brasileira ao mercado de consumo de massas, mas agora demandando direitos, serviços públicos e moralização da vida política. Isso poderia transitar para a ampliação de um novo bloco histórico popular - para utilizar os termos de Singer, a passagem de um “reformismo fraco” para um “reformismo forte” - ou para a crise do que tinha se configurado até então.
As reações dos poderes
A questão que desnorteava a esquerda institucionalizada é que o grande consenso nacional que se conformava na crítica do sistema de representação e a defesa de direitos (transporte, educação e saúde) se dava por fora das instituições e, potencialmente, contra elas.
A magnitude das mobilizações aterrorizou os políticos de quase todos os partidos – no governo, na oposição de direita e, mesmo, em setores da extrema esquerda. Foram corretamente encaradas pelo poder como manifestações contra o establishment político. O PT inicialmente viu nos protestos uma mobilização da direita e só lentamente se moveu para disputar as ruas; as organizações sociais ligadas a ele (CUT, MST...) nunca entenderam o que aconteceu e trabalharam para construir protestos “verdadeiros” liderados pela "classe trabalhadora organizada", que fracassaram de forma caricatural. O PSTU apostou na entrada em cena do "verdadeiro" sujeito revolucionário, a classe operária, e terminou em uma fracassada mobilização unitária com os pelegos. Mas os políticos no poder entenderam rapidamente o que acontecia e moveram-se para esvaziar os movimentos – encaminhando recuos e promessas mirabolantes de medidas que pudessem tirar as pessoas das ruas. O então Ministro do Esporte e depois da Defesa, Aldo Rebelo, do PCdoB, hoje nas fileiras do agronegócio, defendeu a atuação das polícias e o rechaço de manifestações que atrapalhassem os jogos da Copa das Confederações.
Esse foi o momento em que, frente a este espetáculo de erros políticos, o PSOL se tornou, de fato, a expressão de uma esquerda socialista, na oposição ao petismo como projeto político, obtendo uma identificação mais ampla nas vanguardas sociais.
Em um pronunciamento à Nação em 21 de Junho, Dilma prometeu um pacto pela melhoria dos serviços públicos, em especial de mobilidade urbana e destinar 100% dos royalties do petróleo à educação, além deu uma ampla reforma política. No dia 24, ela se reuniu com prefeitos de capitais e governadores para apresentar cinco pactos nacionais sobre transporte público, reforma política e combate à corrupção, saúde, educação e responsabilidade fiscal. Mas sua proposta de convocar uma Constituinte foi descartada, após ser rejeitada por Temer, pela OAB e pela oposição.
Olhando retrospectivamente, este foi o último momento em que o PT – e concretamente Dilma – poderia ter virado o jogo e mudado o curso da política institucional do país. Por todo o mundo, estava evidente que a globalização neoliberal, mesmo nos poucos lugares onde produzia avanços sociais (como a China), impulsionava a corrosão do tecido social pelo hiperindividualismo e continuava a aprofundar as desigualdades. No Brasil, as consequências disso já eram evidentes em 2010, tanto nas pesquisas sobre valores como no crescimento do neopentecostalismo. Da mesma maneira, a oligarquização da política, materializada aqui na aceitação de governar com o Centrão, levaria em breve à revolta trumpista contra a democracia e à ascensão global da constelação conservadora e, nela, dos neofascismos.
Alterar a lógica do jogo político exigiria subverter as regras da governabilidade conservadora e introduzir na cena brasileira a carta da radicalização das mobilizações de massa contra a direita e o establishment político, algo tentado pela última vez no país por Jango. Foi o que fizeram, em diferentes níveis e em momentos passados, Chavez, Evo, Correa e, até mesmo, Cristina Kirchner - sem nunca transitarem para alternativas sistêmicas, de superação do capitalismo. Se uma atitude análoga à “bolivarianista” esteve, no passado, no horizonte de setores petistas, desapareceu no primeiro governo Lula, que encabeçou a onda dos governos cor-de-rosa no continente. A aceitação da globalização neoliberal (vista como inevitável), da integração dos pobres pelo mercado sem sua mobilização política (opção de Lula desde 2003) e o recuo para aceitar as regras da governabilidade conservadora consagradas na Constituição de 1988 (Lula estava na bancada de parlamentares petistas que decidiram, então, não votar nela, no final dos trabalhos).
A opção da radicalização pela mobilização de massas estava colocada no leque de possibilidades de ação para o PT. As manifestações dirigiram-se contra as instituições políticas do Estado e os políticos, demandando uma vasta reforma do sistema de representação. Uma proposta sintética apresentada pela Coalizão pela Reforma Política Democrática e por Eleições Limpas, dialogava diretamente com os anseios dos movimentos (em especial na proibição da doação empresarial para as campanhas eleitorais – que, depois, foi o coração da “Operação Lava-Jato”), além da discussão acumulada pela Plataforma pela Reforma do Sistema Político. Isso poderia ter aproximado o Brasil da “democracia real”.
Mas o PT dividiu-se sobre como enfrentar as demandas, com o setor vinculado a Lula rechaçando o movimento e Dilma - que parecia buscar dialogar com ele - recuando, temerosa de perder o apoio do PMDB na disputa presidencial do ano seguinte. Foi essa inação do PT que abriu espaço para a direita e para a extrema-direta. E conhecemos o destino irônico dessas escolhas tanto para Dilma como para Lula. Esse caminho não percorrido teria sido frutífero? Não sabemos, mas podemos ter certeza que dificilmente alguma coisa teria sido pior do que os sete anos de Temer e Bolsonaro, que agora condicionam nosso presente e futuro. A história certamente não tinha que ter sido assim!
Uma conclusão política
Junho de 2013 foi o teste decisivo da luta de classes que condicionou o destino do Brasil por toda nossa época histórica, o momento da verdade da nossa formação social contemporânea. Dez anos depois - após o impeachment de Dilma, o governo do Centrão sob Temer, quatro anos de barbárie bolsonarista, avanço avassalador do agro e o domínio da política pelas redes digitais - estamos sob um governo Lula-Alckmin… e Lira. A síntese e convergência das trajetórias petistas e tucanas têm que aceitar o “primeiro-ministro” da República de Alagoas, que já fizera de Fernando Collor presidente.
Mas tudo isso resultou das escolhas feitas sob os governos FHC, Lula e Dilma, que assumiram o caminho de desconstrução do Brasil em que a Constituinte de 1988 e o governo Collor colocaram o país, construção interrompida que levou a sua desindustrialização, regressão neocolonial, desarticulação social e crise da nossa precária democracia. Sob a prosperidade ilusória da liberalização econômica e do boom das commodities, o Brasil moderno se desfazia. O agro antidemocrático e seus aliados urbanos são hoje mais poderosos do que em qualquer momento desde 1930.
Mas a roda da história não tinha que voltar um século, positivamente não tinha que ser assim! A ideia de uma teleologia da história, interpretada como lógica da necessidade e da inevitabilidade, é uma perversão que nega a condição humana. Contra essa visão determinista, precisamos afirmar a história como cenário onde a liberdade humana pode ser exercida, com suas bifurcações e momento de escolhas. 2013 é um “acontecimento” no sentido forte do termo, momento de confluência e síntese de variados processos estruturantes nacionais e internacionais e de tomada de decisões que definiram todo um período histórico, não pelas massas, mas pelos governantes. 2013 foi um breve instante onde a presença das massas na política poderia ter produzido uma pedagogia política democrática em um país de fortes raízes autoritárias e nos conduzido por uma trajetória diferente.
Daniel Bensaid não gostava da metáfora dos jogos. Lutar não é jogar, dizia. O que estava acontecendo em 2013 era luta de classes. Mas o PT já não sabia mais lidar com isso e, ao jogar o jogo político da conciliação, conduziu o povo brasileiro a uma derrota fragorosa. A esquerda e o vasto campo popular precisam hoje superar a “razão populista” para poderem voltar a lutar nas ruas e constituir o bloco histórico potencial que se perdeu nas respostas dos poderes às Jornadas de Junho.