Jardim, enxame, fábrica

Quinn Slobodian, Economia e complexidade, 10 de junho de 2025

Os pólipos confundiram os teóricos políticos do século XVIII. As criaturas que coletivamente compõem os recifes de coral atuavam de um modo que desafiava as expectativas relativas ao desígnio divino e à hierarquia estabelecida do reino animal. Como esses organismos tão inferiores poderiam criar estruturas tão enormes, as quais pareciam ser o produto especial de uma única mente?

 Como criaturas microscópicas poderiam entravar a rota dos navios que se moviam por meio das forças mais poderosas da Terra, quebrando seus cascos e os forçando a contornar as metrópoles de pólipos que se elevavam como ilhas? Não é surpreendente que o antropólogo e anarquista James C. Scott tenha feito, mais tarde, uma analogia entre pólipos e camponeses. “Assim como milhões de pólipos antozoários criam, voluntária ou involuntariamente, um recife de coral”, escreveu ele, “milhares e milhares de atos individuais de insubordinação e evasão criam também seu próprio recife político ou econômico”.

A historiadora da ciência Whitney Barlow Robles cita Scott em seu maravilhoso livro Curious Species, em que explica como os corais desestabilizaram certas certezas. Alimentados pela luz do sol tal como a grama, eles vão depositando camadas de calcário com os seus tentáculos. O poder dos pólipos abalou as ideias vigentes sobre a agência; eis que uma massa molecular, pouco visível, agia como se fosse um arquiteto. Robles imaginou uma analogia para explicar o fenômeno: seria o mesmo que “descobrir de repente que borboletas, e não pessoas, plantaram todas as árvores no Central Park”.

Uma maravilha semelhante – dentre os infinitos eventos do mundo natural – levou os liberais clássicos a traçarem conexões entre a ordem da natureza e a ordem criada pela troca humana no mundo profano da economia política. Philip Mirowski lembra que as metáforas naturalísticas têm uma dupla função: são “imagens tranquilizadoras e graficamente concretas de ordem que colocam a humanidade diretamente em sua própria casa, em ‘seu’ universo”, ao mesmo tempo em que domam a desordem da natureza, tornando “compreensível um mundo que pareceria estranho e incompreensível de outro modo”.

A natureza ofereceu aos economistas aquilo que Deirdre McCloskey chamou de “metáforas governantes de teorias”. Como grande parte da política é baseada numa compreensão implícita – mas, por vezes, explícita – do sistema econômico, isso significa que todos os viventes se valem dessas metáforas. O movimento intelectual do neoliberalismo chegou às ideias sobre a boa sociedade pensando com e por meio da natureza. À medida que o consenso pós-Guerra Fria sobre a globalização neoliberal desmoronou e os limites da liberdade individual se estreitaram, novas metáforas vieram ajudar a construir a ideologia sucessora.

O economista e filósofo político anglo-austríaco Friedrich Hayek (1899-1992), pai do neoliberalismo moderno, afirmou em seu último livro que “Darwin encontrou as ideias básicas de sua teoria da evolução na teoria econômica”; de fato, ele as encontrara especificamente em Adam Smith. Para Hayek, a ordem espontânea da sociedade era o resultado das ações de seres humanos que, como pólipos, agiam sem ter a capacidade de compreender a totalidade de seu empreendimento; no entanto, ao fazê-lo, eles criavam algo sublime em sua complexidade e em seu domínio em constante expansão.

A razão, escreveu ele, costuma ser “superestimada”. O avanço humano não se deveu à autorreflexão, mas a uma adaptação continuamente iterativa: o que chamamos de costume e tradição nada mais são do que o resultado de longos projetos de tentativa e erro em direção a resultados melhores, talvez ótimos. A economia política, portanto, não se fundava no individualismo, mas em formações que o falecido grande historiador do pensamento econômico Paul Lewis chamou de “ordens, ordens em todos os lugares”.

De acordo com Hayek e os neoliberais próximos a ele, o desafio político era como criar as condições para o desenvolvimento do recife de coral da economia humana; como ajustar a estrutura em que isso poderia acontecer, equilibrando as necessidades dos organismos de ter recursos suficientes para se expandir sem determinar de antemão como eles cresceriam.

Este sempre foi o quebra-cabeça que atormentou os neoliberais desde o início. A solução consistiu em fazer uma analogia da sociedade com um jardim. Ou seja, não com um recife de coral crescente num mar revolto, mas uma analogia com uma biosfera cercada na qual os elementos adicionados poderiam ser podados ou nutridos para obter os melhores resultados.

 Em seu discurso de aceitação do Prêmio de Economia do Banco da Suécia, Hayek atacou o que chamou de “pretensão de conhecimento” dos planejadores. Em vez disso, ele elogiou “a ação de cultivar, o modo como o fazendeiro ou o jardineiro trata as suas plantas, já que ele conhece e só pode controlar algumas das circunstâncias que determinam como elas crescem. Do mesmo modo, segundo ele, também o sábio legislador ou estadista provavelmente tentará cultivar, em vez de controlar, as forças do processo social”.

Contudo, o jardim como metáfora mestra não perdurou. Foi desafiado pela primeira vez na era da Web 1.0 pela fé mais profunda dos ciberlibertários do Vale do Silício quanto ao poder superior dos mercados auto-organizados. Os novos programadores com suas empresas promissoras tinham uma desconfiança básica em relação ao Estado; este era algo do qual se deveria escapulir.

Enquanto os neoliberais que seguiam Hayek sempre viram um papel para o governo na mão cultivadora do jardineiro, a primeira onda da ideologia californiana abraçou a lógica do enxame. Eis que, para eles, a regulamentação sufocava a inovação. Como os murmúrios de estorninhos se movendo em formações variáveis ao pôr do sol, a internet governaria a si mesma.

Em uma reviravolta mais recente, ocorrida no passado recente, essa mesma classe de fundadores de novas empresas – CEOs, céticos inveterados das elites tradicionais da Costa Leste –, fez as pazes com o autoritarismo centralizado. A fusão do poder de monopólio das plataformas com uma concentração sem precedentes do poder executivo reduziu as margens de tolerância para a expressão individual.

No processo, tanto o jardim quanto o enxame foram substituídos por uma visão da sociedade como uma fábrica. A biologia deu lugar à física. A mente evolucionista foi substituída pela mesma mente de engenharia que Hayek, ao seu tempo, havia se proposto a criticar.

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Frequentemente, as conexões entre neoliberalismo e ciência não são bem estimadas. Para Hayek, um dos primeiros momentos de mobilização para um enfrentamento ocorreu na Grã-Bretanha, já na década de 1930. Tratou-se do esforço de proteger a prática da ciência das incursões vinda da ideologia esquerdista.

Os oponentes da cientificidade oficial estavam organizados sob o lema das “relações sociais de ciência”. Eis que esse movimento incluía os materialistas históricos radicais como J. D. Bernal e J. B. S. Haldane, os quais questionavam a reivindicação de neutralidade da ciência, pois acreditavam que a verdadeira ciência só poderia ser perseguida sob as condições do socialismo.

Esse embate prenunciou os desafios subsequentes dos estudos científicos e dos campos feministas pós-coloniais, os quais puseram em questão aquilo que parece dado e é tomado como certo, ou seja, como objetivo. Pois, eles admitiam que a objetividade vem a ser moldada por um mundo social construído para reproduzir certas hierarquias. Diante disso, o neoliberalismo estava, nas palavras da tese erudita de Martin Beddeleem, “lutando pelo manto da ciência”.

O colaborador de Hayek, Michael Polanyi, um químico, estava profundamente preocupado com as condições em que a pesquisa poderia florescer. Uma de suas ideias mais interessantes foi a crítica dos direitos autorais e das patentes. Ele acreditava que atribuir descobertas científicas a um único indivíduo era uma paródia de como a ciência realmente funcionava. Por analogia, ele o descreveu como uma produção teatral.

“O progresso mental”, escreveu ele, “interage em todos os estágios com toda a rede de conhecimento humano e é nutrido a cada momento pelos mais variados e dispersos estímulos. A invenção, e em particular a invenção moderna, que depende cada vez mais de um processo sistemático de tentativa e erro, é um drama que se desenrola em um palco lotado de atores criativos”.

Polanyi apontou para o fato de que o recife da ciência sempre fora uma obra coletiva, não proveio nunca como resultado de uma única mão orientadora. O seu irmão Karl, autor do influente livro A Grande Transformação, publicado em 1944, no mesmo ano de O Caminho da Servidão, emprestou dele a ideia de que os liberais acreditavam em uma “economia autorregulada”. Tanto para os proponentes quanto para os detratores, a pesquisa científica tornou-se um microcosmo para entender a economia e a sociedade humana como tais.

O trabalho mais influente de Hayek foi dedicado ao problema do conhecimento que se forma de modo distribuído. Ele argumentou que um único sistema centralizado, nem mesmo quando auxiliado por um computador superpotente, não poderia capturar toda a diversidade dos usos dos recursos. O mundo se afigurava, para ele, como um conjunto mutável de necessidades e desejos. Para Hayek, a economia sempre foi um ramo do problema da evolução. É por isso que ele apresentou o líder político por meio da metáfora do jardineiro em vez da metáfora de um construtor de prédios.

Os críticos de Hayek se concentraram na analogia da política com a jardinagem. Ela foi apresentada como parte da obsessão da tecnocracia moderna com o controle. O sociólogo Zygmunt Bauman foi o intérprete mais famoso dessa tendência. Para ele, “o estado como mera jardinagem” introduziu uma lógica de classificação ordinal dos seres humanos, que sustentava tanto a eugenia positiva quanto a negativa. Ao decidir que certas vidas valiam mais ou menos a pena ser vividas com base em sua utilidade e beleza – tal como o jardineiro separa as ervas daninhas das flores – um projeto estatal foi colocado em movimento que terminou com o assassinato mecanizado de “corpos estranhos”, patologias vivas a serem eliminadas nos campos de extermínio. Para Bauman, o estado-jardim era o ponto final distópico da modernidade.

O jardim também se opôs à selva no contraste racializado entre civilização e barbárie. Nas décadas de 1950 e 1960, durante a ascensão do direito econômico internacional, o contraste entre o “império do mercado” e o “direito da selva” era comum, especialmente quando aplicado a nações recém-independentes. Esses países eram vistos como se necessitassem da disciplina do direito internacional de investimentos para impedi-los de agir de acordo com sua “natureza inferior”.

Em 2022, o vice-presidente da Comissão Europeia, Josep Borrell, teve que se desculpar por comentários que pareciam refletir conscientemente a linhagem do paternalismo ocidental e o fardo do homem branco. “A Europa é um jardim”, disse ele. “Construímos um jardim em que tudo funciona.” Mas “a maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim… A selva tem uma grande capacidade de crescimento e o muro nunca será alto o suficiente para proteger o jardim. Os jardineiros têm que colonizar a selva”.

As críticas à metáfora do jardim são obviamente válidas. No entanto, vale lembrar que mesmo os jardins – limpos, cuidados e fumigados – são imprevisíveis; eles, aliás, são valorizados em parte pela harmonia que surge de sua variedade interna. Organismos individuais respondem de maneiras que não são totalmente controláveis. Esta é a tensão volátil que está no cerne da economia política neoliberal: que equilíbrio pode ser alcançado entre coerção e autocriação autônoma? Qual o tamanho do jardim?

A mentalidade de jardinagem se opôs consistentemente à redistribuição radical, preservando as desigualdades postas pelo status quo. Os que estão no poder há muito lucram com a promoção de uma falsa sensação de autonomia individual. “Você é sua própria flor”, diz o refrão enganoso e fortalecedor. E a natureza insustentável e extrativista da relação da humanidade com o mundo natural foi impiedosamente exposta pelo pensamento ecológico marxista e não marxista.

No entanto, pode-se dizer que nos últimos anos avançou-se para algo mais radical. O jardim, como qualquer ecossistema, não precisa apenas de poda, mas também de nutrientes, um certo nível de cuidado. A economia política neoliberal também requer um grau de aceitação, não apenas mero consentimento, mas também investimento emocional. Nos primeiros 100 dias da nova administração presidencial nos EUA, o espetáculo de cidadãos protestando nas prefeituras contra possíveis cortes na Previdência Social e no Medicare foi revelador. Os benefícios sociais oferecidos aos cidadãos americanos podem ser mínimos, mas são uma forma crucial de garantir a legitimidade. As flores requerem água e fertilizante.

A reciprocidade desse acordo parece ter sido perdida entre os escalões superiores do governo Trump. Do chamado Departamento de eficiência governamental, liderado até recentemente por Elon Musk, aos coautores do Projeto 2025 da Heritage Foundation que ocupam cargos no gabinete, a intenção de desmantelar o estado federal – construído iterativamente ao longo de um século – é aberta e deliberada. Há também uma rejeição fragrante de toda a arquitetura multilateral de governança econômica internacional no sistema de comércio global, um produto da mentalidade de “jardinagem econômica” do século XX.

Em suma, há uma vontade latente de fazer com que uma nova lógica assuma o controle. Trata-se de pisotear o jardim, de parar de usar herbicidas. Ou seja, trata-se de lançar as granadas de choque das tarifas tão altas que equivalem a embargos globais, assim como de eliminar as vacinas obrigatórias para doenças infantis que por muito tempo foram consideradas erradicadas.

Se o jardim está morto, o que tomou seu lugar? Aqui temos que seguir os dois passos delineados no início: o passo improvável de abraçar a energia anárquica do enxame no espaço antisséptico da fábrica. Como isso aconteceu?

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Na década de 1990, o emergente mundo tecnológico do Vale do Silício se apaixonou pela ideia de sistemas auto-organizados. Kevin Kelly, editor da Wired, elogiou o potencial desses sistemas que tomavam decisões coletivamente sem coordenação central – eis que formados que sejam por organismos ou por agentes, eles se constituíam como uma versão melhorada dos pólipos.

O livro anunciou “o alvorecer de uma nova era em que as máquinas e ao sistemas que impulsionam a economia se tornam tão complexos e autônomos que são indistinguíveis dos seres vivos”. Esse entusiasmo se estendeu ao laboratório de Nicholas Negroponte (MIT Media Lab), onde Rodney Brooks criou robôs superpotentes e supreendentes. E eles foram apresentados de forma vívida no documentário de Errol Morris intitulado Rápido, barato e fora de controle.

O otimismo da época sugeria que a Internet poderia se tornar um lugar sem regras, ecoando o tom utópico da frequentemente repetida Declaração dos Direitos do Ciberespaço de John Perry Barlow, proferida em Davos em 1996: “O ciberespaço consiste em transações, relacionamentos e o próprio pensamento, dispostos como uma onda estacionária na rede de nossas comunicações. O nosso é um mundo que está em toda parte e em lugar nenhum, mas não é onde os corpos estão vivendo agora”.

Mas como a lógica do jardim se cruzou com a lógica do enxame autogovernado que supostamente emergiu por meio das redes digitais? Ao se olhar para a história de gafanhotos e pulgões, é possível ver como seus imperativos podem entrar em conflito. A lógica do enxame, com sua capacidade de devastação, representava uma ameaça direta aos “jardins” cultivados da economia política.

Na verdade, o consumo do jardim pelo enxame tornou-se um dos grandes tropos imaginativos do início do século XXI. Se Barlow representou a primeira onda, a segunda poderia ser representada pela teoria do empresário de tecnologia Balaji Srinivasan.  Em sua palestra na Combinator Summer School, em 2013, intitulada “A saída definitiva do Vale do Silício“, ele declarou guerra ao que chamou de “cinturão de papel”.

Assim, ele comparou Washington, Boston e Nova York, com suas leis, seus títulos e seus jornais, ao velho “cinturão da ferrugem” decadente. A visão da lógica do enxame voltava-se agora contra as instituições tradicionais de governo, ensino superior, publicidade, jornalismo e finanças. A retórica de Srinivasan retratou o Vale do Silício como o enxame vital que varreu o jardim decrépito e excessivamente regulamentado da democracia e da experiência americanas.

No entanto, uma reflexão simples revela que a economia política do enxame não produz autonomamente a sua própria estabilidade. Eis que ela se define pela volatilidade, por uma fome cada vez maior por insumos: dados, energia, atenção, capital. Se a metáfora dominante para a internet nos anos 2000 era a nuvem, o enxame deixa claro que a nuvem nunca é autossustentável: ela deve descer constantemente em novos campos, novas bases de usuários, novos mercados, para extrair valor.

O enxame tinha apenas uma relação tênue com a economia política neoliberal. É difícil imaginar Hayek endossando o tipo de ruptura implícita na lógica do enxame. Apesar de seu fascínio pela complexidade do mundo natural, ele sempre teve o cuidado de apontar que os seres humanos precisavam do que ele chamava de “fina camada de regras” deliberadamente projetadas.

O Estado, portanto, nunca poderia desaparecer. Parte dessa opção pode ser explicada por sua biografia. Havendo testemunhado o colapso da ordem mundial duas vezes antes de atingir a meia-idade, Hayek se preocupou com a questão de como restaurar a estabilidade; ele não queria abalá-la ou mesmo destrui-la. Aqueles que viveram a longa paz do pós-guerra no Norte Global, por outro lado, podiam se dar ao luxo de ser indiferentes sobre quais instituições poderiam sobreviver.

Podemos ver o enxame como a metáfora biológica em seu limite mais extremo: ordem espontânea sem a mão do jardineiro. E em muitas comunidades libertárias, essa forma extrema de ordem desordenada – capitalismo irrestrito – é simplesmente chamada de “liberdade”.

Essa facção renegada da direita libertária, particularmente aqueles em sua franja anarcocapitalista e tecnoconservadora, costumava considerar Hayek como um traidor, um servo do estado de bem-estar social. Seu estilo era mais descarado, mais apocalíptico, mais inclinado a destronar o cientista e abrir o laboratório ao caos. Deixe os organismos correrem soltos.

Em nenhum lugar o fervor especulativo foi mais longe do que nos debates sobre inteligência artificial geral, ou IAG. O medo – ou fantasia – era que uma singularidade pudesse ser alcançada na qual uma inteligência artificial descontrolada subordinasse a humanidade ou simplesmente a transformasse em clipes de papel ou uma massa cinza. Jogos como Katamari Damacy, em que se tem que rolar pelo mundo acumulando objetos em uma bola gigante, eram analogias lúdicas dessa lógica devoradora.

Por um tempo, essa mentalidade de enxame prevaleceu. No entanto, a realidade material das tecnologias em questão – e os incentivos reais dos mercados – nunca corresponderam ao espírito de anarquia. Em seu bizarro best-seller de 2018, A Era do Capitalismo de Vigilância, Shoshana Zuboff conduziu os leitores pelo processo pelo qual empresas como Google e Facebook pegaram para si mesmo aquilo que se configurava como o caos da autoexpressão e o transformaram em um modelo de negócios. Monetizando a participação nas redes, eles  passaram a vender anúncios para os vendedores de mercadorias.

Se a adoção do AdSense pelo Google em 2003, na qual eles descobriram como transformar o “esgotamento de dados” no ouro da publicidade, foi um ponto de virada, outros vieram em 2007 e 2008. Primeiro, Steve Jobs apresentou o iPhone, um dispositivo famoso por ser “projetado pela Apple na Califórnia e montado na China”. Como o lápis de Milton Friedman, o iPhone incorporou cadeias de produção globalizadas e anônimas: das minas artesanais de cobalto da República Democrática do Congo às linhas de produção de Shenzhen.

Em segundo lugar, Elon Musk anunciou que o Tesla Roadster que ele estava desenvolvendo teria seu componente mais importante, a bateria, fabricado nos EUA. Ao contrário do iPhone, o componente principal do Tesla não seria apenas projetado, mas seria também montado na Califórnia. E Musk, crucialmente, buscaria a supervisão total de sua produção. Isso foi uma traição à lógica do enxame. Musk estava trazendo o enxame de volta para a empresa, para uma fábrica sob seu controle direto.

Nos anos que se seguiram, a filosofia de Musk provou ser profundamente antitética ao neoliberalismo policêntrico e improvisado de Hayek ou mesmo às sensibilidades ecológicas e de conhecimento de pensadores como Michael Polanyi. Os pensadores neoliberais toleraram a imprevisibilidade não apenas como um efeito colateral, mas como a própria fonte da inovação. O que parecia ser uma “anomalia” muitas vezes acabava sendo uma mutação adaptativa.

Musk não tinha tempo para tais heterodoxias. A sua fúria contra a lógica do enxame do Twitter o levou a comprá-lo imediatamente em 2022. Isso ocorreu  aparentemente em um momento de raiva, provocado por usuários anônimos que costumavam zombar dele. O que os neoliberais mais tolerantes poderiam ter visto como uma celebração da ordem espontânea e da expressão igualitária – ou como saídas funcionais para a dessublimação repressiva – Musk interpretou como uma afronta intolerável. Havia apenas uma pessoa que tinha permissão para fazer piadas ruins às custas dos outros: o chefe.

Musk disse repetidamente que as únicas leis em que acredita são as leis da física. Mas mesmo isso é seletivo. A filosofia que ele compartilha com Peter Thiel favorece uma visão estreita e mecanicista da física, que enfatiza o controle, a força e o determinismo sobre a incerteza ou a emergência. Daí o seu entusiasmo pela fábrica, não apenas como local de produção, mas também como metáfora da própria sociedade. Eis aí um lugar onde o comportamento é monitorado, otimizado e disciplinado, no qual, enfim, a imprevisibilidade é eliminada.

O neoliberalismo hayekiano, por outro lado, considerava as fábricas como espaços necessários, mas limitados. A sociedade como um todo não poderia – e não deveria – funcionar como uma linha de montagem. Sem espaço para julgamento independente e para eventuais falhas, as ineficiências se calcificam. A inovação morreria. Para Musk e Thiel, no entanto, o controle total é auto justificado. O objetivo é o monopólio. Os primeiros argumentos liberais para a descentralização, o pluralismo e a luta contra os monopólios são descartados como fracos. Controle é pureza. Vigilância é higiene. A competição, como Thiel disse, é para perdedores.

O parceiro de Peter Thiel, Alexander Karp, oferece um retrato vívido da mentalidade dos engenheiros em seu livro recente, em coautoria com outros autores, The technological republic: hard power, soft belief, and the future of the West, que se tornou um best-seller e alcançou o número 1 na lista do New York Times.

O primeiro argumento do livro é uma exortação ao Vale do Silício para abandonar sua apreensão e abraçar totalmente o estado de segurança nacional. A pesquisa de defesa federal e as parcerias no estilo DARPA não são anomalias embaraçosas, mas o verdadeiro legado da inovação tecnológica. O segundo argumento do livro é ainda mais ousado: a capacidade tecnológica deve ser usada para refazer o próprio Estado, otimizar sua burocracia, digitalizar suas funções e se preparar para novas ameaças à segurança.

Aqui a lógica do enxame ressurge, mas totalmente subsumida à máquina de guerra. Karp e seu coautor invocam abelhas, estorninhos e outros elementos recorrentes do gênero “wired” dos anos 1990, mas as referências a enxames de drones autônomos como o futuro da guerra são muito mais frequentes. Com base nas inovações do campo de batalha na Ucrânia e em Gaza, eles sugerem que os militares devem se adaptar a sistemas de armas de pequena escala e auto-organizados. Trata-se de uma inversão dialética: o enxame livre agora é domesticado, disciplinado e redesenhado dentro da arquitetura de comando e controle do estado. O enxame entrou na fábrica. O caos deve ser controlado; que se elimine a vulnerabilidade; é preciso limpar os dados.

Não é difícil imaginar que isso se torne o modelo para uma nova sociedade: uma economia fervilhante sob vigilância constante, onde liberdade significa conformidade e onde cada expressão particular se torna legível para uma autoridade central. O que pode parecer uma contradição será resolvido; pessoas como Karp garantem que isso ocorrerá graças à capacidade de processamento inimaginável de futuros modelos de inteligência artificial.

As necessidades energéticas projetadas para a IA já levaram ao abandono de qualquer perspectiva de transição energética para o “net zero”, até recentemente um objetivo maioritariamente global. A selva foi pavimentada e o jardineiro substituído por um programador que, por sua vez, foi substituído por um grande modelo linguístico que, segundo Karp, um dia tomará decisões sem intervenção humana.

O governo por algoritmos aceita as preocupações de Hayek sobre a reivindicação de conhecimento, mas com uma reviravolta. Em vez de usar a linguagem da modéstia epistemológica para minar as demandas por justiça social redistributiva ou planejamento de longo prazo, o engenheiro de mentalidade industrial diz: nunca podemos conhecer o todo, então devemos confiar na máquina.

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Em Curious Species, Whitney Robles lembrou que as aglomerações de pólipos – aquelas estruturas de coral construídas por minúsculos trabalhos coletivos – foram apelidadas de “colônias” na linguagem dos impérios mercantis europeus e, antes deles, dos romanos. A metáfora não foi acidental. A ciência colonial projetou fantasias políticas em formas biológicas.

Robles insiste que os pólipos nunca foram temas dóceis. No entanto, não importa o quão resistentes sejam, os pólipos não são imortais. Quando as águas ao seu redor se tornam acidificadas e quentes, essas vastas estruturas de recife branqueiam e se desintegram. Os microrganismos que antes formavam uma comunidade se desprendem do todo e flutuam, piscam e se tornam quase invisíveis. Um nada. Uma dispersão. A política do pólipo não nos ensina apenas sobre a criação, pois ela ensina sobre o fim.

A imaginação neoliberal, quando olhou para a natureza, viu ordem espontânea, complexidade não planejada e a bela imprevisibilidade dos sistemas emergentes. Mas ela subestimou muitas vezes a possibilidade do colapso, não como uma falha de planejamento, mas como uma consequência sistêmica da própria liberdade econômica que ele tanto valorizava.

O que acontece quando as águas mudam de frias para quentes? Ou seja, quando os recifes começam a se dissolver?

Neste momento, não se pergunta mais apenas como surge a ordem, mas como ela desaparece. Vê-se como o jardim é pisoteado, como o enxame é militarizado, como a fábrica é reinstalada como um sistema total de comando. E nessa longa mudança – de pólipos para protocolos, de borboletas para drones – há uma profunda lição política.

A liberdade, quando é real, é frágil. Assim como a espontaneidade e a improvisação. A aplicação da lei pode começar em um recife de coral ou em uma pradaria do Central Park, mas pode terminar em uma base de código, uma nuvem de drones ou uma sala de reuniões sem janelas.

A questão não é mais se é possível encontrar metáforas no mundo natural para descrever a sociedade humana. É se é possível preservar os tipos de vida que essas metáforas tornaram pensáveis em sua época.

[1] Professor de história internacional na Universidade de Boston. Seu livro mais recente é Hayek’s bastards: race, gold, IQ, and the capitalism of the far right (Os bastardos de Hayek: raça, ouro, QI e o capitalismo da extrema direita). Fonte original do presente artigo: https://www.theideasletter.org/essay/garden-swarm-factory/

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