Hidrovias: Veias abertas da Amazônia

Entrevista com Auricélia Arapiun, Claudelice dos Santos e Iremar Ferreira, lideranças defensoras dos rios Tapajós, Tocantins e Madeira, por Pedro Charbel e Max Costa, Revista Jatobá, 8 de novembro de 2025

Apresentadas como soluções pouco poluentes para o escoamento de produção agrícola, as hidrovias previstas para a Amazônia representam, na verdade, caminhos fluviais de destruição. Por trás da aparente sustentabilidade, estão práticas colonizadoras que aprofundam os impactos já existentes da expansão do agronegócio monocultor e exportador sobre o Cerrado e a Amazônia. 

Ignorando impactos sinérgicos e cumulativos, e sem qualquer consulta aos povos e comunidades atingidas, as hidrovias e portos ameaçam o curso e a dinâmica  dos rios. Passando por cima de territórios e do modo de vida das pessoas, configuram um sistema de infraestrutura a serviço dos lucros de grandes empresas transnacionais, como a Cargill, ADM, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi.

Nesse contexto, obras de dragagem e a derrocagem de pedrais ameaçam as dinâmicas sociais e biológicas dos rios. Para piorar, o Decreto 12.600 de agosto de 2025, que estabelece privatização das hidrovias do Madeira, Tapajós,  Madeira e Tocantins, abre caminho para a destruição se intensificar. Apenas no Tapajós, o projeto da Ferrogrão promete intensificar em sete vezes o fluxo de barcaças de soja no rio. 

Para explicar melhor os danos causados por esses complexos logísticos, a Jatobá conversou com as lideranças socioambientais Auricélia Arapiun, Claudelice dos Santos e Iremar Ferreira, que são respectivamente, verdadeiros guardiões dos rios Tapajós, Tocantins e Madeira.

Pedro Charbel: O que está acontecemendo hoje nos territórios de vocês? Como está a vida nos rios Tapajós, Tocantins e Madeira nesse cenário de mudanças climáticas?

Auricélia Arapiun: O Tapajós é um rio de muitos povos indígenas. Todos dependemos dele para viver, mas há anos, o rio está sendo ameaçado por grandes empreendimentos, pelo avanço do garimpo, pela multiplicação dos portos e pela expansão do agronegócio — a qual vem acompanhada de contaminação por agrotóxicos e de grandes embarcações que estão tomando conta de tudo, principalmente em Santarém, onde está o maior porto da Cargill. 

Nos últimos anos, vemos os efeitos das mudanças do clima com secas mais duras, e em algumas aldeias falta água potável durante a seca. Mesmo assim, não existem políticas públicas adequadas e, no ano passado, tivemos que comprar água mineral para levar às pessoas dentro do território Kumaruara.

Hoje, o Tapajós já é um rio contaminado por mercúrio e, todos os anos, é invadido pela pesca predatória. Segue ameaçado por projetos de barragens, mas graças à nossa resistência ainda não foi barrado. 

Claudelice dos Santos: No Tocantins, o sentimento é de medo e incerteza. O governo insiste em dizer que não existe um projeto de hidrovia, apenas uma “via navegável” que precisa ser ajustada. Mas sabemos o que isso significa: dragar e explodir pedrais, destruir o leito do rio e afetar a vida de ribeirinhos e pescadores. Tudo isso em um contexto em que nosso rio já está sendo violentado. 

Na nossa região existe a hidrelétrica de Tucuruí – em relação à qual, até hoje, as pessoas não receberam a tal “compensação”. E muitas barcaças já circulam, mesmo que não na quantidade e intensidade que eles querem, causando muitos acidentes e prejudicando a vida, a pesca, e o direito de ir e vir. Uma delas perdeu o controle e bateu no trapiche de uma comunidade, e só não houve tragédia porque as famílias correram para salvar as crianças. Além disso, tem a questão do mexilhão-dourado, uma espécie invasora de peixe que veio nas embarcações e está dominando o rio, inclusive afetando alguns igarapés. 

O que mais assusta é a desinformação. As reuniões oficiais são feitas para confundir, e o próprio IBAMA, que deveria fiscalizar, se torna conivente, liberando licenças de explosão sem considerar os impactos no rio e na vida da comunidade. O Estado brasileiro está passando por cima de povos e comunidades tradicionais como se não existissem.

Iremar Ferreira: No rio Madeira, a história se repete. Desde o tempo dos nossos ancestrais Mura e outros parentes, enfrentamos invasões coloniais e exploração. Hoje, os nomes mudaram, mas o sentido é o mesmo: hidrelétricas, soja e privatização do rio. As usinas de Santo Antônio e Jirau trouxeram o desastre que os cientistas já previam — enchentes, perda de territórios e destruição dos modos de vida. 

A partir da construção das hidrelétricas, nossas comunidades perderam suas praias, suas áreas de produção, e isso tem se agravado ainda mais com o desmatamento e a expansão da soja. Não à toa, nos últimos anos, vivemos secas severas: o rio ficou intrafegável até para pequenas embarcações, poços secaram, famílias ficaram sem água e também tivemos que fazer campanhas para levar água para as pessoas.

Agora, querem completar o ciclo de destruição com uma hidrovia, ampliando o canal para escoar soja e veneno. E tudo isso ignorando impactos sinérgicos e sem nenhuma consulta aos povos e comunidades.

Max Costa: O que pode piorar com a privatização das hidrovias do Madeira, Tapajós  e Tocantins, prevista pelo Decreto 12.600 de agosto de 2025?

Iremar Ferreira: A hidrovia do Madeira começa a ganhar um corpo mais mercantilista a serviço do “povo do veneno” no final dos anos 1990, quando o grupo Maggi se estabeleceu em Porto Velho. O objetivo era facilitar o escoamento da soja do Mato Grosso e ampliar a produção. Conseguiram: em 2023, Porto Velho se tornou o município com maior produção de soja em Rondônia. Conceder as hidrovias à iniciativa privada é, portanto, desenvolver um modelo pensado para o mercado, não para as comunidades.

Temos que compreender que essa e outras hidrovias são parte de um projeto continental de integração da infraestrutura sul-americana. Desde a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) até o atual Plano Nacional de Logística, o objetivo é o mesmo: abrir caminhos para o agronegócio e os agrotóxicos. No caso do Madeira, isso significa aumentar o calado do rio, com mais dragagens e mais de vinte pontos de destruição de pedrais.

Os sojeiros brasileiros já começam a comprar terras na Bolívia com a perspectiva de uma ponte binacional, pois querem repetir o fenômeno dos Brasiguaios no Paraguai. O projeto maior é conectar a Madeira–Mamoré–Guaporé até a bacia do Paraguai, criando um grande corredor de escoamento: a “República da Soja”, como a própria Syngenta, uma das grandes empresas do agro, projeta.

Auricélia Arapiun:  Eles não nos enxergam como pessoas, só pensam no mercado. Temos que entender que a hidrovia do Tapajós é um grande projeto, combinado com a Ferrogrão – ferrovia que querem construir ligando Sinop (MT) a Miritituba (PA) – para aumentar ainda mais a exportação de soja pelo rio. O governador já declarou ser contra até audiência pública, imagine a posição dele sobre consulta prévia, livre e informada.

Para piorar, a ausência de um veto total ao PL da Devastação permite que o próprio Executivo utilize o PL para atacar nossos rios. Vivemos instabilidade política e temos um Congresso violento que ataca nossos direitos, mas não vemos o Executivo ir contra essa economia baseada na violação de direitos e na devastação. A gente sabe quem vai se beneficiar com as ferrovias, hidrovias privatizadas, exploração de petróleo na foz do Amazonas. Não é o povo, nem o meio ambiente.

No Pará, a Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) autorizou dragagem do Tapajós, já ameaçado, às vésperas da COP, imaginem depois dela? Privatizaram três rios da Amazônia, sendo que dois estão no estado-sede da COP 30. É no mínimo contraditório.

Claudelice dos Santos:  O governador do Pará já disse que para ele a hidrovia é uma questão de honra e foi, com ódio, atacar uma audiência pública sobre isso nas redes sociais. Ao mesmo tempo, o presidente não vetou tudo do PL da Devastação e deixou as principais brechas para grandes empreendimentos passarem. 

A Licença Ambiental Especial abre as portas para novos empreendimentos, passando por cima de quem for, criando “linhas retas” para escoar produtos que não são da agricultura familiar. Para eles, a gente não existe.

Em breve, vão falar de clima e tirar fotos com povos tradicionais, mas, no enfrentamento, somos os primeiros invisibilizados. Mas seguiremos em resistência. Não somos bobos. Nós resistimos. A licença de destruição do Pedral de Lourenção Tocantins está suspensa — prova de que vale a resistência.

Pedro Charbel: Como vocês tem organizado essa resistência e construído alternativas?

Claudelice dos Santos: Além de nos aliarmos com povos de outras bacias hidrográficas, aqui no Tocantins, temos duas frentes de resistência. A primeira é no campo jurídico: estamos trabalhando com o Ministério Público Federal e organizações parceiras para denunciar a ausência de consulta e as falhas nos estudos ambientais, questões técnicas graves que não estão sendo pautadas, inclusive em relação aos impactos sinérgicos. Para nós, foi uma grande vitória termos a inspeção judicial aqui no nosso território diante da suspensão da obra que destruiria o Pedral do Lourenção.

A segunda frente é educativa e comunitária. Fazemos oficinas nas comunidades para explicar o que são impactos sinérgicos, e as próprias pessoas apresentam essa realidade em outras palavras: quebradeiras de coco e babaçu que usam o rio para transporte, mães que levam crianças à escola pelo rio. Levar informação e fortalecer pesquisas independentes é uma forma de resistência, porque o Estado quer manter o povo na ignorância. 

Iremar Ferreira: No Madeira, organizamos o Comitê Binacional com Vida, que reúne comunidades do Brasil e da Bolívia para defender a bacia. Já criamos protocolos de consulta, acordos de pesca e desenvolvemos planos de uso coletivo. Fazemos parte de diversas articulações para incidir em Brasília juntos, inclusive sobre o Plano Nacional de Logística 2050, buscando atuar na origem dos projetos, não só no licenciamento. É desafiador, mas necessário, sempre com o pé no território.

Eleger representantes comprometidos também é importante. No município de Guajará-Mirim, incluímos na Lei Orgânica os direitos da natureza e reconhecemos o rio Laje como primeiro rio brasileiro sujeito de direitos. Mas quando propusemos proibir a pulverização aérea de agrotóxicos nesse mesmo município, eles barraram. Perceberam aonde nós queríamos chegar para proteger nossos territórios. Não é fácil, o ambiente de cooptação é brutal e o bolsonarismo evangélico tem corrompido consciências, inclusive de pessoas que estavam conosco.

Auricélia Arapiun: Nossa perspectiva de futuro está na resistência. Temos guardiões nos territórios Tupinambá, Kumaruara, Munduruku… Além da extensão territorial, eles guardam o rio, sendo responsáveis por inúmeras denúncias de pesca predatória. Fizemos várias ações para barrar isso, principalmente na seca, quando os peixes ficam concentrados e pescadores chegam com inúmeros barcos.

Nosso maior gargalo está no Congresso Nacional, e esperamos mudar esse cenário para corrigir as legislações. Mas independente disso, a luta dos povos continua, nossa aliança entre diferentes povos de diferentes rios é muito importante para a luta popular e jurídica. Faremos os enfrentamentos que forem necessários em defesa dos nossos rios e das florestas, em defesa das nossas comunidades. Os rios fazem parte da nossa vida e atacá-los é atacar quem mora ali e depende deles. Somos filhos do rio.

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