Os Feminismos Brasileiros
Ao partir das definições do dicionário, o feminismo se resume a um “movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem”. Mas o pequeno substantivo carrega muito mais do que esse simples significado, a autora Chimamanda Ngzi Adichie ressalta em seu livro Sejamos Todos Feministas que ‘a palavra “feminista” tem um peso negativo: a feminista odeia os homens, odeia sutiã, odeia a cultura africana, acha que as mulheres devem mandar nos homens; ela não se pinta, não se depila, está sempre zangada, não tem senso de humor, não usa desodorante’. Além da carga que fora atribuída ao termo — numa tentativa clara de deslegitimação — também não é possível pensar o mesmo no singular. São feminismos, no plural. Composto por muitas vertentes e formas de pensamentos, o movimento tem suas faces variadas. Apesar da luta geral visar a emancipação e libertação das mulheres, as propostas de como atingir o objetivo e compreender o que causa a opressão são múltiplas. “O movimento sempre foi marcado por diferentes agendas, em alguns momentos por questões mais pontuais, outros por temas mais amplos” afirma Livia Magalhães.
Uma maneira de compreender o feminismo, é fazendo a divisão do movimento por ondas. Classificadas cronologicamente, variam entre três e quatro — a depender da interpretação teórica seguida — cada uma com suas bandeiras de luta e características específicas. Sally Scholz formula em seu livro Feminism: a beginner’s guide que o uso da terminologia faz referencia literal ao oceano e suas marés, no sentido de que elas mapeam a “intensidade variável da atividade feminista em diferentes períodos de tempo”. Elas caracterizam momentos históricos onde há uma aglomeração de movimentos organizados em prol do avanço da luta. Logo, uma onda é um tempo de efervescência do debate de certas questões e pautas das mulheres que ali estão — e cada momento tem por consequência suas demandas próprias. Como as ondas do mar, as ondas do feminismo também tem um sentido evolucionista como defende Lena Medeiros de Menezes: o termo implica que cada onda avança mais do que as precedentes, sedimentando a ideia de vitórias advindas através de saltos rumo a ideais a serem alcançados.
A classificação por ondas é usada principalmente para ilustrar e facilitar a compreensão, já que mesmo dentro de cada onda, vemos uma divergência de demandas e multiplicidade de teorias. A heterogeneidade do movimento feminista é parte central dele e de certa forma, legitima sua autenticidade, já que mulheres são plurais e dar voz a cada uma delas é a essência mais profunda do feminismo.
Primeira Onda
Temporalmente localizada entre o final do século XIX e meados do século XX, a Primeira Onda do Feminismo é marcada pela luta das sufragistas. No Brasil, as mulheres eram excluídas da vida pública e portanto, era negado a elas a possibilidade de exercer o voto, baseado na justificativa de que a Constituição de 1889 então regente se referia a “cidadãos” e o termo era lido como relativo apenas aos homens quando conveniente aos mesmos. Uma das protagonistas do sufrágio feminino brasileiro é Leolinda Daltro, que em 1916, envia a primeira manifestação formal feminina por direitos políticos para a Câmara, onde questiona o porquê de mulheres escolarizadas não terem acesso ao voto:
Não é realmente justo que quando se dá ao homem inculto o direito de voto, de intervenção nas coisas públicas, se negue à mulher instruída (que as há em grande número, principalmente nesta Capital) esse mesmo direito. A grande maioria do professorado municipal desta cidade é constituído por mulheres. São elas que dão instrução aos futuros cidadãos, que têm sobre os ombros a difícil tarefa de preparo das novas gerações. Se a lei lhes deu tão grande responsabilidade; se o Estado reconhece a sua capacidade para tão alta função, qual seja a de educar e instruir a mocidade; se a Escola Normal, Oficial, lhes conferiu um diploma que lhes habilita para esse espinhoso mister — como admitir que esse mesmo Estado possa negar-lhes capacidade para a simples escolha dos que devam ser os representantes do país nas assembleias legislativas e nos altos postos da administração pública? É o maior dos absurdos.
Insistia-se na rejeição das mulheres, sem qualquer razão ou fundamento que não a proteção da família e por respeito aos costumes burgueses e isso fica claro na fala do então deputado Muniz Freire, que afirma que a negação do direito se dava por conta da condição doméstica da mulher, alegando que essa teria uma natureza moral que se manifesta por meio de atividades de reprodução social e que sem isso, “nos degradaríamos para as especies animais inferiores, a começar pela dissolução da família”. A opinião de outros parlamentares não era diferente e o deputado Lacerda Coutinho carregava consigo preocupações similares: acreditava que ao se preocupar com o universo politico, a mulher se amesquinharia, saindo de seu pedestal para integrar um âmbito vulgar e não teria mais o cuidado necessário com sua prole.
A relevância dos anos 20 no tocante da luta feminista também se dá pelos esforços de Diva Nazario, que na altura era estudante de direito e graças à seus conhecimentos acadêmicos, afirma que pode ser eleitora e decide requerir seu título eleitoral. Sem sucesso, recebe como resposta do juiz Affonso José de Carvalho um despacho formal que diz:
Não se reconhece ainda, no Brasil, a capacidade social da mulher para o exercício do voto. As restrições que se lhe impor na ordem civil têm reflexo na ordem política. […] A verdade é que prevalecem ainda, entre nós, considerações tradicionais a lembrarem que a missão da mulher é mais domestica do que pública, mais moral do que política. Os publicistas que, entre nós, propugnam arduamente pela emancipação política da mulher, esquecem por completo a concepção que sempre há feito na vida social, da entidade feminina: concepção de uma criatura destinada a dividir harmonicamente com o homem as responsabilidades da vida em comem, ela na tranquilidade do lar cuidando da ordem domestica, ele no trabalho cotidiano, auferindo os meios de prover a subsistência da família.
O documento fica marcado por ser o registro legal de que o voto feminino não era permitido, primeiramente por apego aos costumes mas também pelas restrições da cidadania aplicadas a mulher brasileira da época pelo Código Civil de 1916, que implicavam no fato de que após casada, perdia o acesso à bens e ao poder pátrio. Com a recusa de seu pedido, Diva Nazario insiste ao juiz que o termo “cidadão brasileiro” não se aplica somente ao cidadão do sexo masculino e que ela, portanto, deve ser autorizada a votar. A resposta do mesmo foi que, em especial para as leis eleitorais, o termo era somente referente ao homem.
Em voga na mesma onda sufragista, outro grupo de mulheres composto por Mirtes Campos, Maria Lacerda, Carmen Portinho, Stella Duval, Jerônima Mesquita e encabeçado por Bertha Lutz, se unem para criar a Liga para Emancipação Intelectual da Mulher — que passa a ser chamada de Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) em 1922 tendo seus propósitos reformulados em prol de voltarem suas atividades para a conquista do voto.
Apesar do protagonismo da luta pelo sufrágio, a Primeira Onda do Feminismo já apresentava pluralizações: foi criada em 1919 a ‘Liga Comunista Feminina’ que organizava as mulheres trabalhadoras que não se sentiam representadas pelo movimento sufragista por conta de suas condições materiais.Consideravam que o debate do sufrágio e da igualdade era uma agenda que não seria o suficiente para garantir a liberdade da mulher “enquanto pesarem sobre ela, como sobre o conjunto da classe trabalhadora, a exploração do capital e o domínio da burguesia”. A inspiração parte da Revolução Russa que colocou em pauta a questão da mulher e trouxe à tona nomes como Alexandra Kollontai que publicou o artigo ‘A mulher trabalhadora na sociedade contemporânea’ em 1908, que debate a dualidade dos interesses das mulheres e aponta que “A questão feminina dizem as feministas, é uma questão de direito e justiça. A questão feminina, respondem as proletárias, é questão de um pedaço de pão”.
O feminismo classista — que leva em consideração a classe social em que a mulher se encontra — clamava por melhores condições de trabalho, em primeiro lugar. Quando pensamos nas feministas que atuavam na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), é notório que ali se encontravam mulheres burguesas que buscavam ter os mesmos direitos que homens também burgueses: votar, ocupar cargos públicos e trabalhar fora. Mas sempre houve uma classe de mulheres inserida no universo do trabalho: as mulheres negras, por exemplo, foram escravizadas por um longo período e mesmo após o fim da escravidão continuaram sendo submetidas à condições deploráveis de trabalho. A mulher proletária não possuía escolhas, precisava trabalhar para não morrer de fome e era duplamente explorada: após passar horas em fábricas, voltava para casa e se ocupava com os trabalhos domésticos e de reprodução social.
A distância entre as mulheres de classes sociais diferentes é criticada e o questionamento de ‘à quem servia aquele feminismo’ já era feito, como é possível perceber a partir do comentário extraído do Jornal do Povo, em 1934:
O que as mulheres, não as “damas” têm lucrado com as atividades de Bertha Lutz [figura central da FBPF]? As fábricas estão cheias de operárias tuberculosas, gestando e trabalhando, sujeitas a multas extorsivas e às negaças imorais do Ministério do Trabalho; […] esfomeiam milhões de jovens — ou lançam no mercado da prostituição as que cedem aos apetites sexuais dos patrões e por toda parte a miséria campeia.
A possibilidade de luta das mulheres burguesas por sua libertação estava — e ainda está nos dias atuais — ligada a opressão de outras mulheres, de classes inferiores. O argumento inicial de Leolinda Daltro reclamava o voto para a ‘mulher culta’, deixando de fora grande parte daquelas que compunham a população feminina da época. Logo, não é surpresa a dificuldade encontrada pelas operárias em aderir ao movimento feminista que possuía maior destaque na Primeira Onda. Mas colocar os grupos feministas como adversários ou inimigos seria um grande erro, já que as lutas se entrelaçam, como aponta Menezes:
Na longa história de lutas, duas estratégias principais, portanto, foram forjadas, não necessariamente excludentes, pois se realimentaram continuamente. Uma nutria-se da tradição revolucionária, com tendencias para a radicalidade; a outra deitava suas raízes no embate entre capital e trabalho. No início do século XX, a primeira vertente fortaleceu-se sob a inspiração da virada bolchevique na Rússia, que anunciou ao mundo o advento da revolução social tão sonhada, ao mesmo tempo em que as sufragistas — algumas com inspirações revolucionárias — obtia as primeiras vitórias concretas no caminho do sufrágio feminino.
As sufragistas alegavam que o voto seria um meio para a conquista de mais direitos e suas lutas não podem ser desmerecidas, apesar das falhas. A partir da organização dessas, foi conquistado em 1932 o poder de voto para as mulheres: estavam autorizadas a participar das eleições tanto como eleitoras, quanto como candidatas graças ao artigo 2º que diz: “é eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”. Iniciava-se, então, um processo de inclusão da mulher na vida pública que continuaria em voga até o começo da Ditadura Vargas, em 1937: um projeto fascista marcado pela consagração dos papéis de gênero. O governo defendia um ideal de família que cumpria função estrutural nas políticas do Estado, o que também impactou o desenvolvimento das políticas feministas, dado que o arquétipo aplicado a mulher à colocava de volta na situação doméstica, na qual sua função primária era criar bons cidadãos.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial e o fracasso do projeto nazista, se enfraquece também a ditadura brasileira. Graças à pressão da organização União Democrática Nacional aliada ao exército, Vargas é deposto. No mesmo ano, em 1945, se formava a Organização das Nações Unidas na intenção de previnir outro conflito mundial, numa ‘tentativa de criar um mundo fundamentado na paz e na segurança internacionais’ e foi realizada a 1ª Conferência sobra Organização Internacional, que contava com 160 participantes que representavam os 50 países aliados e entre eles, estava Bertha Lutz em nome do estado brasileiro. A feminista teve papel central na inclusão dos direitos das mulheres na Carta das Nações Unidas que seria assinada ao fim de tal conferência: em um de seus discursos, dizia que “nunca haverá paz no mundo enquanto as mulheres não ajudarem a cria-lá”. Com a Carta, a igualdade entre gêneros passa a ser um compromisso internacional e proclamava em seu preâmbulo:
Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.
Com essa conquista, era possível vislumbrar maiores avanços para o gênero. O feminismo entendia desde então a necessidade de políticas internacionais para atingir seus objetivos, mas apesar dos compromissos assumidos globalmente, ainda eram muitas as resistências internas dentro do Brasil, tornando necessária a continuidade dos esforços das mulheres em prol de sua emancipação.
Segunda Onda
Em meados de 1960, florescia a Segunda Onda do Feminismo e trazia consigo o slogan “o pessoal é político”. Se destacam as teorias de Simone de Beuavoir, que havia publicado alguns anos antes ‘O Segundo Sexo’, onde consta a ideia revolucionária de que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher” e abre espaço para o questionamento dos ‘valores femininos’ e o que caracterizaria a mulher enquanto sujeito, visando desconstruir a “mística feminina”. O livro de Beuavoir deixava claro que aquilo que se entendia por mulher se constituía em relação ao homem — o sujeito universal — e assim, seria sempre o outro, se tornando alienada de si.
É quando se iniciam as distinções entre gênero e sexo, sendo o primeiro uma construção social, um conjunto de características e de papéis imposto à pessoa dependendo de seu sexo, que por sua vez se refere as características biológicas do individuo. Entendiam ali que o impacto da capacidade reprodutiva estava predominando sob o sujeito feminino, pois atrelava a mulher à suas funções reprodutoras, colocando-a em uma posição doméstica e causando sua exclusão da vida pública. Por essa razão, a luta da Segunda Onda é marcada por bandeiras relativas a sexualidade, direitos reprodutivos, família e trabalho.
Mas no Brasil, o movimento adquiria características próprias devido a conjuntura nacional: em meio a Ditadura Militar haviam outras coisas pelas quais as feministas precisariam lutar por, como a liberdade de expressão e outros direitos sociais que vinham sendo negados a população brasileira. Nesse contexto, destaca-se o Movimento Feminino pela Anistia: um grupo de mulheres organizadas que faziam resistência à ditadura e contestava as prisões políticas que vinham ocorrendo, lutando contra a tortura, o exílio e morte dos opositores do governo.
Tudo isso serviu para sedimentar o caráter político do movimento e consolidar as conexões entre o feminismo e a esquerda brasileira, fazendo com que as questões ligadas à mulher trabalhadora adquirissem centralidade no debate: as reivindicações eram por equidade salarial, pela inclusão e participação feminina nos sindicatos, por segurança no local de trabalho e contra o assédio sexual que ali sofriam. Questionavam também a atribuição completa do trabalho doméstico às mulheres, que ocasionava na jornada dupla de trabalho e portanto, demandavam que os afazeres fossem divididos com os homens e iam mais além:
As feministas queriam que os homens dividissem com as mulheres os afazeres domésticos e, mais, que o Estado fizesse sua parte construindo creches nas quais as crianças pudessem ficar enquanto elas e eles iam para o trabalho; lavanderias coletivas, onde pudessem lavar e secar rapidamente as roupas da família; restaurantes populares para não precisarem fazer almoço e jantar em casa todos os dias.
Nesse ponto, é possível constatar grande convergência da Segunda Onda com o que hoje chamamos de feminismo marxista, que ainda luta para que essas demandas sejam atendidas em prol de uma vida mais justa para as mulheres e entende que o patriarcado é inerente ao capitalismo ao passo que ambos exploram a mulher através de suas funções na reprodução social.
Apesar do foco maior nas questões de trabalho, as bandeiras características dessa onda não foram deixadas de lado pelas feministas brasileiras, que seguiam lutando pela liberdade sexual e direitos reprodutivos da mulher.
O âmbito privado da vida da feminina era algo que causava — e ainda causa — grandes preocupações. Ao assumir o título de esposa, a mulher ganhava uma nova fonte de opressão. Foi somente no ano de 1962, com a aprovação do Estatuto da Mulher Casada, que a esposa deixou de ser considerada incapaz e passou a ter direitos iguais aos de seu esposo, tendo também maior autonomia civil e substituindo as prerrogativas antes impostas à mesma no que tange questões como a necessidade de autorização do homem para que realizasse certas atividades, como trabalhar. Mas a conquista do direito civil não repercute, necessariamente, em mudanças domésticas. A subjugação civil feminina ao marido deixou cicatrizes profundas e a violência de gênero imperava como questão latente, resultando na criação de ‘casas da mulher’ que abrigavam as vitimas de abuso doméstico.
Com a conquista ao direito ao divórcio, em 1977, a mulher finalmente pode optar pelo fim de seu casamento — o que até então era permitido somente aos homens — e finalmente não era mais obrigada a permanecer em relacionamentos abusivos contra sua vontade. Nesse mesmo período, foram formados os ‘grupos de consciência’, característicos dessa onda: constituídos apenas por mulheres, visavam a discussão de problemas comuns as mesmas e articulavam meios de se opor ao machismo. A ideia fora importada e facilitou a compreensão dos impactos da opressão sobre todas, já que dividiam ali suas experiências, como explica Joana Maria:
Foi para enfrentar a ignorância e o preconceito sexual que mulheres norte-americanas (brancas e de camadas médias urbanas) inventaram de se reunir formando grupos de consciência/reflexão em que discutiam sobre corpo e sexualidade. Seu exemplo inspirou mulheres no mundo todo. A necessidade de debater sobre tais assuntos e de lutar por mudanças de comportamento que dessem mais liberdade às mulheres foi reconhecida em vários países também graças a uma conjuntura favorável de mudanças. […] Em seus debates, as participantes dos grupos de reflexão/consciência adotavam uma metodologia chamada “linha da vida” que as levava a falar sobre suas vivências pessoais. Conversavam sobre como viam o próprio corpo e o dos homens, contavam sobre a experiência da menstruação ou do aborto, narravam situações em que percebiam terem sido discriminadas por ser mulher na família ou no trabalho, comentavam a relação com o pai, com marido, com outros homens, diziam o que pensavam a respeito do desejo sexual e do prazer.
Os grupos colaboraram também para a formação de uma rede de apoio entre mulheres e fortalecimento da sororidade. Foi deixado como herança para as feministas das ondas seguintes e até hoje vemos uma estrutura similar nos coletivos.
Após o processo de Abertura Política, o feminismo passa a atuar de forma mais livre e plena, facilitando a disseminação do mesmo. Então, cresce a participação das mulheres no campo político, que por sua vez tem como resultado a inclusão dos direitos femininos na Constituição de 1988.
Terceira Onda
Essa onda é motivo de divergências teóricas: alguns pensadores acreditam que devido a maneira que o movimento se formula e se desenvolve, não caracterizaria uma onda em si. A professora e filósofa Cinzia Arruzza explica o porquê da não caracterização em um artigo para a Internacional Viewpoint Magazine:
Nas últimas décadas, tem havido uma certa tendência a rotular como “onda feminista” movimentos de pensamento que ocorreram especialmente dentro dos campi universitários e seus arredores. Essas correntes de pensamento marcaram importantes pontos de mudança na teoria feminista; no entanto, não estavam enraizados em processos de mobilização social e política de massa comparáveis ao movimento feminista dos anos sessenta e setenta. Assim, se com “onda” pretendemos indicar um processo de subjetivação social e política que ocorre através do ascensão de massa, o termo é inadequado para indicar correntes de pensamento ou transformações no debate teórico.
O entendimento de que feminismo não pode ser singular é o que configuraria sua Terceira Onda: a maioria das protagonistas do movimento ainda eram brancas e estavam situadas nas classes mais altas, o que fazia com que suas teorias não abarcassem o todo do universo feminino e por isso, outros grupos reivindicavam que suas particularidades também fossem contempladas. É quando começa a se fazer leituras identitárias e o movimento passa a ser formado por uma multiplicidade de feminismos que não visam à hegemonia de uma tese sobre a outra. A partir da compreensão do conceito da interseccionalidade, foi possível analisar a mulher enquanto sujeito passivo de opressões com origens distintas: ora de gênero, ora classe, ora de raça. Assim, entendia-se que a experiência de ‘ser mulher’ não era uma só e crescem as divisões internas do movimento, dando espaço para o fortalecimento de vertentes como o feminismo negro, que analisa as condições materiais e históricas específicas da mulher negra.
A desconstrução da ideia de uma única ‘mulher’ permite que mais mulheres sejam inclusas no movimento, mas também enfraquece as tentativas de identificação de objetivos comuns. Cronologicamente, a suposta Terceira Onda do Feminismo se inicia nos anos 90 e não eram poucas as mudanças que aconteciam ao redor do mundo, entre elas, a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. O pós-modernismo começa a se fazer presente e o globalismo ganhava uma nova fase com a massificação da internet, com impacto direto na dinâmica das feministas, fazendo com que movimento passe a se difundir mais rapidamente.
Com a ascensão do neoliberalismo, se inicia aqui a cooptação do feminismo pelo capitalismo: as pautas identitárias dão lugar a luta pela defesa ‘da liberdade individual de cada mulher’. É nesse momento que cresce também o feminismo liberal, que se apega na individualização e tem como consequência o apagamento das questões coletivas. É uma vertente que agrada ao status quo ao se apropriar de estereótipos femininos que até então vinham sendo negados pelas feministas da Primeira e Segunda Onda. Reclamam condutas e símbolos de feminilidade enquanto possibilidades de libertação, deturpando as origens do movimento.
Se por um lado, essa Terceira Onda possibilitaria o esclarecimento da necessidade de feminismos plurais, por outro prejudicou a existência de uma unidade entre todas as mulheres, partindo do pressuposto que isso implicaria necessariamente na anulação das particularidades de identidades individuais. Assim, não seria possível elencar as bandeiras da onda — justamente pela incapacidade de formação de unidade entre as vertentes em prol da luta maior pela causa das mulheres.
Ao focar o uso da interseccionalidade numa perspectiva individualista, é atribuído a cada identidade um valor em si mesma, o que por sua vez leva ao esvaziamento de seus significados. O autor Asad Haider trabalha os perigos dessa questão em seu livro Armadilha da Identidade, explicando que “devemos rejeitar a identidade como base para se pensar a política identitária” e a razão para tal fica clara no prefácio escrito por Silvio Luiz de Almeida:
A identidade é fruto de uma história, que só pode ser alcançada caso mergulhemos nas relações sociais concretas. (…) A armadilha de que fala Haider não está em se levar em conta a identidade nas análises sobre a sociedade, mas em analisa-las como se fosse algo exterior às determinações materiais da vida social. Afastada de sua dimensão social, a identidade passa a ser, simultaneamente, ponto de partida e ponto de chegada.
Sendo assim, um feminismo que se afasta da compreensão de que existem estruturas sociais que ditam a forma que se desenvolve cada identidade acaba sendo nocivo a medida que não busca mudanças estruturais, mas sim a valorização do individuo e dos signos que o compõem. Quando uma feminista, por exemplo, se utiliza de estereótipos de gênero para buscar o reconhecimento do seu eu enquanto mulher, ela apenas reafirma essa identidade de forma vazia e não contribui para a transformação do meio, mas sim para uma falsa sensação de pertencimento e aceitação por parte de um sistema que continuará a oprimi-lá. Conquistando, na melhor das hipóteses, uma situação “menos pior” para si própria.
A característica individualista que o feminismo adquire nesse momento é justamente o motivo do não entendimento desse momento como uma onda, já que não há organização unificada em prol da luta emancipatória das mulheres. A feminista marxista Carole Stabile explicita como o individualismo acaba por dividir as mulheres e incapacitar a atuação revolucionária do movimento:
“A tendência anti-organizacional é parte e parcela do pacote pós-moderno. Para organizar qualquer coisa que não seja a mais provisória e espontânea coalizão é — para os teóricos pós-modernos e feministas com visão parecida — reproduzir a opressão, as hierarquias e as formas da dominação intratável. (…) Assim, no lugar da política organizada, a teoria social pós-moderna nos oferta variações de pluralismo, individualismo, agência individualizada e soluções individualizadas que, em última instância, nunca foram — e nunca serão — capazes de resolver os problemas estruturais”.
Porém seria de grande equivoco tratar o reconhecimento de identidades como algo completamente negativo. A representatividade das identidades importa e é essencial que todas tenham espaço para se manifestar, uma vez que isso colabora para o desmantelamento das “narrativas discriminatórias que sempre colocam minorias em locais de subalternidade”. O entendimento mais apropriado seria de que as identidades do sujeito possuem grande importância, mas que isoladas não passam de abstrações que pouco dizem sobre as estruturas sociais que as formam; facilitando a absorção das pautas pelo liberalismo que, por sua vez, as individualiza.
A autora que se destaca no âmbito das teorias feministas desse período é Judith Butler, que apresenta o gênero enquanto performance em seu livro Problemas de Gênero, onde desenvolve a ideia de que a identidade ‘mulher’ precisa ser desconstruída para que se pense a libertação da mesma. Butler acredita que a caracterização e unificação do gênero seria contraria “as próprias possibilidades culturais que o feminismo deveria abrir” e advoga em prol do entendimento da identidade enquanto algo produzido que “não é nem inevitavelmente determinada nem totalmente artificial ou arbitraria”. É a partir das teorias apresentadas nesse livro que se desenvolve a teoria queer nos anos seguintes, que elabora a não-existência de papéis sexuais de caráter biológico presentes na natureza humana.
Apesar de estar cronologicamente situada num momento onde o feminismo assume um caráter individualista que leva a configuração desse como uma pauta identitária vazia, Butler pode ser considerada como uma das mais relevantes críticas à ideia de política de identidade:
A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada. Esse tipo de crítica põe em questão a estrutura fundante em que o feminismo, como política da identidade, vem se articulando. O paradoxo interno desse fundacionismo [construção do conhecimento a partir de crenças básicas ou fundamentos considerados certos ou seguros] é que ele presume, fixa e restringe os próprios “sujeitos” que espera representar e libertar.
É possível entender que a autora não visava desmantelamento do feminismo a partir da desconstrução da identidade feminina como uma só, mas sim a abertura de espaço para todas as possíveis formas de performatividade e para a compreensão de que a formulação de uma identidade singular e própria de um gênero seria nociva.
Ao passo que o feminismo liberal continua a propor a ascensão de mulheres enquanto indivíduos e o empoderamento vazio de uma só a custa de muitas, ele acaba por perder de vista qualquer horizonte que vise o fim da opressão, fazendo com que o movimento se esvazie de significados reais. O cenário começa a mudar com a chegada da Primavera Feminista, que em meados de 2015 toma forma e apresenta um feminismo para os 99%:
Esse feminismo não se limita às “questões das mulheres” como tem sido tradicionalmente definido. Defendendo todas as pessoas que são exploradas, dominadas e oprimidas, ele tem como objetivo se tornar uma fonte de esperança para a humanidade. (…) o feminismo para os 99% busca uma transformação social profunda e de longo alcance. Em outras palavras, é por isso que não pode ser um movimento separatista. Propomos, ao contrário, participar de todo movimento que combate a favor dos 99%, seja lutando por justiça ambiental, educação gratuita de alta qualidade, serviços públicos amplos, habitação de baixo custo, direitos trabalhistas, sistema de saúde gratuito e universal, seja batalhando por um mundo sem racismo nem guerra. É apenas ao se aliar a esses movimentos que conquistamos poder e visão para desmantelar as relações sociais e as instituições que nos oprimem. O feminismo para os 99% abarca a luta de classes e o combate ao racismo institucional. Concentra os interesses das mulheres da classe trabalhadora de todos os tipos: racializadas, migrantes ou brancas; cis, trans ou não alinhadas à conformidade de gênero; que se ocupam da casa ou são trabalhadoras sexuais; remuneradas por hora, semana, mês ou nunca remuneradas; desempregadas ou subempregadas; jovens ou idosas.
Um feminismo que entende as dimensões interccionais e é capaz de converge-lá em uma só luta que se posiciona contra todo e qualquer tipo de opressão: é aí que se encontra o reflorescimento do movimento, configurado de uma maneira que torna possível a superação da questão meramente identitária; levando em consideração que as estruturas que oprimem se retroalimentam e precisam ser combatidas mutuamente.
Potencializado pelo novo modelo comunicacional que o universo digital proporciona, esse feminismo se articula de forma global. Com lutas planetárias, dá as mulheres o protagonismo no combate à violência, à discriminação, à xenofobia; ao mesmo tempo que não deixa para trás as reivindicações relativas apenas ao gênero, como igualdade salarial, libertação sexual e direito ao aborto. Segundo Cinzia Arruza, as manifestações com características grevistas são o cerne do movimento:
Acima de tudo é a greve que constitui a novidade mais importante da nova onda. Não só porque a greve colocou no centro do debate o trabalho das mulheres, o papel das mulheres na reprodução social e a relação entre produção de mercadorias e reprodução, mas porque se tornou o motor principal de um processo de subjetivação através do qual uma nova subjetividade feminista anticapitalista está emergindo.
A disputa pela hegemonia do feminismo revolucionário dentro do movimento ainda está em curso e o feminismo liberal não foi superado — pelo contrário, ainda tem grande força por se apoiar em políticas meritocráticas que favorecem a manutenção das estruturas de exploração, facilitando a inclusão da pauta no sistema neoliberal. Longe do fim, a luta continua e o manifesto aponta que não há qualquer intenção de conformismo: “O feminismo para os 99% é um feminismo anticapitalista inquieto — que não pode nunca se satisfazer com equivalência, até que tenhamos igualdade; nunca satisfeito com direitos legais, até que tenhamos justiça; e nunca satisfeito com a democracia, até que a liberdade individual seja ajustada na base da liberdade para todas as pessoas”.