Da economia da ocupação à economia do genocídio: relatora da ONU expõe lucros das empresas
O novo relatório de Francesca Albanese expõe a cumplicidade e o lucro de dezenas de empresas com a ocupação, o apartheid e o genocídio levado a cabo por Israel na Palestina. Microsoft, Amazon, Google ou BlackRock são algumas das empresas que têm ajudado Israel no genocídio, obtendo com isso lucros sem precedentes.
Esquerda.net, 4 de julho de 2025
“Nos últimos 21 meses, enquanto o genocídio de Israel destruiu vidas e terras palestinianas, a bolsa de valores de Tel Aviv disparou 213% (em dólares americanos), acumulando 225,7 mil milhões de dólares em ganhos de mercado — incluindo 67,8 mil milhões somente no último mês. Como se vê, para alguns, o genocídio é lucrativo», afirmou Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinianos Ocupados, na apresentação do relatório.
O relatório “Da economia da ocupação à economia do genocídio” expõe como a economia de décadas de ocupação se transformou numa economia de genocídio, sustentada por redes económicas, políticas e militares que perpetuam a violência e a destruição sistemática da população palestiniana. A análise centra-se especialmente em Gaza, devastada por ataques que excedem em muito as "operações militares" típicas, aproximando-se de uma estratégia de aniquilação.
O foco principal deste relatório é o papel das empresas nesta economia do genocídio, expondo a sua cumplicidade e lucro com o financiamento, desenvolvimento e fornecimento de mecanismos de controle, exclusão e destruição, desde equipamentos militares, munições e tecnologias de vigilância, até às infraestrutura de checkpoints, sistemas de exclusão (muros, barreiras) ou construção de colonatos ilegais. Muitas operam sob contratos públicos israelitas ou em consórcio com grandes multinacionais. Trata-se de uma cadeia de lucro político-militar baseada na impunidade institucional e ideológica de que beneficiam a ocupação e repressão israelita nos territórios palestinianos ocupados, proporcionando enormes lucros financeiros a quem a sustenta.
O relatório recomenda, entre outras medidas, o uso de iniciativas de “boicote, desinvestimento e sanções” (BDS) como um dos mecanismos mais importantes e eficazes para quebrar esta cadeia de lucro político-militar.
Economia da Ocupação em transição para uma Economia de Genocídio
O relatório identifica quatro pilares que sempre sustentaram a economia da ocupação dos territórios palestinianos por Israel: controle territorial, exploração de recursos naturais (como água, terra e infraestruturas), segregação sistemática e integração económica enviesada. Esta economia da ocupação era caracterizada por uma dinâmica de agravamento da assimetria económica, na qual Israel beneficiava de investimentos, tecnologia e proteção institucional, enquanto os palestinianos ficavam reféns de uma economia submissa, com acesso restrito a mercados, água potável e eletricidade. A ocupação era estruturada para maximizar o poder israelita, mantendo os palestinianos num ciclo de insegurança e dependência.
Da economia de ocupação para a economia do genocídio: os setores económicos envolvidos nos grupos de desalojamento e substituição. Em ambos os grupos estão os facilitadores desta transição. Imagem publicada por Francesca Albanese nas redes sociais.
Ao longo das 27 páginas vemos documentado como a repressão económica foi acompanhada de uma crescente militarização, com o uso sistemático da força letal, bombardeamentos extensivos e bloqueios severos. A partir de outubro de 2023 a economia da ocupação evoluiu para uma economia de genocídio, na qual o objetivo de “limpeza étnica” do território é apoiado por sistemas de comando militar que tratam civis como alvos, verificando-se a cumplicidade ativa de empresas e instituições que lucram com armamento, vigilância e infraestruturas de ocupação e possibilitada por uma instrumentalização de falhas no direito internacional e inação das potências internacionais perante crimes continuados.
O papel das empresas no genocídio
“A ocupação eterna [por Israel] tornou-se o campo de testes ideal para fabricantes de armas e grandes empresas de tecnologia – proporcionando oferta e procura significativas, pouca supervisão e nenhuma responsabilização – enquanto investidores e instituições privadas e públicas lucram livremente”.
Albanese denuncia o envolvimento de dezenas de empresas no empreendimento colonialista de Israel e na destruição e genocídio em curso contra Gaza, acusando empresas, quer privadas quer associadas ao Estado de Israel, de facilitar o apartheid, os crimes de guerra e o genocídio. Segundo ela, este envolvimento empresarial ocorre desde há muito na ocupação israelita, mas ganhou uma nova dimensão após outubro de 2023 e o início do genocídio em Gaza cometido por Israel.
“As empresas estão profundamente envolvidas no sistema de ocupação, apartheid e genocídio nos territórios palestinianos ocupados”, afirmou a Relatora Especial. “Durante décadas, a repressão foi sustentada por empresas, plenamente conscientes e, ainda assim, indiferentes às décadas de violações dos direitos humanos e crimes internacionais.”
A relatora especial da ONU alerta para o facto destas ações das empresas constituírem “contribuições materiais” para crimes internacionais (como o apartheid e genocídio) e poderem colocar empresas e dirigentes em risco de acusações judiciais, instando para que cessem imediatamente toda a colaboração nas atividades de Israel.
“Este relatório mostra uma das razões pelas quais o genocídio cometido por Israel continua: porque é lucrativo para muitos”, disse Albanese durante a apresentação do relatório. Segundo ela, as decisões do Tribunal Internacional de Justiça de 2024 e os mandados de prisão do TPI deveriam ter colocado todos os atores — incluindo as empresas — em alerta.
“A natureza grave, estrutural e sustentada dos crimes e violações de Israel desencadeou uma responsabilidade prima facie de afastamento por parte de todos os atores envolvidos — uma responsabilidade que muitas empresas ignoraram”, disse Albanese. “A fixação das empresas em subterfúgios técnicos e violações isoladas em vez de confrontarem a ilegalidade estrutural das suas relações com a ocupação por Israel, é hipócrita”.
85 mil toneladas de bombas explodiram em Gaza. Quem as vendeu?
Nestes 21 meses de genocídio cometido por Israel foram já lançadas mais de 85000 toneladas de bombas a faixa de Gaza, o que equivale a quase seis vezes o poder explosivo da bomba atómica lançada em Hiroshima. As bombas são lançadas por equipamentos que incluem aviões militares, drones e tecnologia de mira desenvolvidos e fornecidos por empresas como a Elbit Systems, a Lockheed Martin, a Palantir ou a Israel Aerospace Industries (IAI). O lucro de empresas como estas com o genocídio tem sido alimentado pelo aumento na despesa militar israelita, que mais do que duplicou (para 46,5 mil milhões de dólares) entre 2023 e 2024. Por exemplo, neste mesmo período, os lucros da Elbit (empresa de produção e exportação de tecnologia militar com sede em Haifa, Israel) aumentaram 18,7%, com um aumento de 27% nas receitas aeroespaciais devido aos lucros com drones e munições guiadas com precisão (ou “bombas inteligentes”).
Por outro lado, o relatório descreve como parcerias internacionais de fornecimento de armas e apoio técnico lucram com o genocídio em Gaza. Israel beneficia do maior programa de aquisição militar de sempre para o caça F-35, liderado pela empresa norte-americana Lockheed Martin e incluindo um total de pelo menos 1650 outras empresas. O Reino Unido está fortemente presente no consórcio Lockheed Martin F-35 e continua a permitir a exportação de componentes do caça F-35 para Israel através de um sistema de abastecimento global. Por isso Albanese afirma que “este é um ‘empreendimento criminoso conjunto’, onde os atos de um contribuem, em última instância, para toda uma economia que impulsiona, fornece e possibilita este genocídio”.
Mas as áreas empresariais vão muito para além das empresas de armamento. Por exemplo, o maior sistema de pensões do Reino Unido (o Nest), que é apoiado pelo governo britânico, investe seu fundo de pensões mais popular na Elbit. E empresas como a Maersk (empresa global de transporte marítimo, com sede na Dinamarca), estão associadas às cadeias de fornecimento de armas ou à infraestrutura de vigilância e dados usada no genocídio em Gaza.
O relatório destaca o papel da “ocupação digital” e de empresas de sistemas de vigilância, bases de dados biométricas e sistemas de mira baseados em IA. “A repressão dos palestinianos tornou-se progressivamente automatizada (…)”, permitindo às empresas de tecnologia lucrarem enormemente com “o campo de testes único para tecnologia militar oferecido pelo território palestiniano ocupado”. Por exemplo, através do Projecto Nimbus (no valor de 1,2 mil milhões de dólares), as gigantes tecnológicas Microsoft, Alphabet-Google e Amazon concedem a Israel acesso às suas tecnologias de nuvem e inteligência artificial, aumentando a capacidade do governo israelita de processar dados, tomar decisões e realizar vigilância e análise, enquanto plataformas de policiamento preditivo da Palantir ajudam à tomada de decisão sobre alvos dos ataques israelitas. Por outro lado, a Microsoft, a Amazon e a Google estabeleceram centros de investigação e desenvolvimento (I&D) e centros de dados locais em Israel, beneficiando de um “acesso sem precedentes concedido pelo governo a dados e a uma população cativa”.
Na área financeira, aparecem empresas como o banco britânico Barclays, envolvido na subscrição de títulos do Tesouro israelita internacionais e domésticos para aumentar a confiança do mercado, ou empresas de gestão de ativos, como a BlackRock, a Vanguard e a PIMCO (subsidiária da Allianz), que compraram esses títulos. A empresa de investimentos norte-americana BlackRock aparece várias vezes como um dos maiores investidores institucionais em muitas empresas que apoiam e lucram com o genocídio de Israel: é o segundo maior investidor institucional na Palantir, Microsoft, Amazon, Alphabet e IBM, e o terceiro maior na Lockheed Martin e Caterpillar – empresa de engenharia e construção norte-americana que durante décadas tem fornecido a Israel equipamentos de demolição de casas e infraestruturas palestinianas e desde outubro de 2023 tem também vendido equipamento para uso na invasão terrestre de Gaza.
Para além da morte: perigos do modelo da economia do genocídio
Francesca Albanese afirma que a economia do genocídio contribuiu para destruir completamente a vida socioeconómica em Gaza, levando a um desemprego extremo, colapso dos sistemas de saúde, escolar e abastecimento de água, deslocamentos forçados e traumas coletivos. A economia é estruturada de modo a proteger interesses israelitas na apropriação territorial, enquanto impede a reconstrução das comunidades palestinianas.
O relatório conclui que o que se apresenta como “economia da ocupação” transformou-se num modelo industrializado de genocídio, alimentado por empresas, instituições nacionais e internacionais frágeis e ações/inações por parte dos Estados nacionais e instituições internacionais. Alerta ainda para o risco deste modelo se espalhar para outros contextos de ocupação ou limpeza étnica, como é o caso de Mianmar ou do Saara Ocidental. Caso persista, a economia do genocídio poderá institucionalizar-se internacionalmente com consequências catastróficas.
A relatora especial das Nações Unidas destaca ainda o papel passivo das instituições internacionais perante a violação por parte de Israel de mais de 134 resoluções da ONU sem sofrer sanções e perante o facto de Gaza permanecer sob bloqueio e desprotegida apesar da clareza do Direito Internacional Humanitário. Por exemplo, o relatório afirma que a ONU e o seu sistema de vetos, bem como a fraqueza da União Europeia, contribuem para um sistema global onde "a força se sobrepõe ao direito."
Escalada dos EUA e exigência de destituição da Relatora Especial
Em reação ao relatório, os Estados Unidos pediram de novo ao Secretário-Geral da ONU a demissão de Francesca Albanese do cargo de relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos, acusando-a de “antissemitismo maligno”, “preconceito implacável contra Israel” e “apoio ao terrorismo”.
Numa declaração emitida pela Missão dos EUA na ONU, a administração Trump considerou “falsas e ofensivas” as afirmações de Francesca Albanese de que Israel está a cometer genocídio e a praticar apartheid e recordou que os EUA já se haviam oposto à renovação da nomeação de Albanese no início deste ano. Na declaração os Estados Unidos advertem ainda para que a continuação da falta de condenação do seu trabalho e demissão do cargo por parte do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, “exigirá ações significativas” por parte dos EUA.
Recomendações principais do relatório
Francesca Albanese termina o seu relatório com um conjunto de recomendações dirigidas aos diversos intervenientes na “economia do genocídio” (Estados nacionais, empresas e instituições internacionais).
No que respeita aos Estados-membro, a Relatora Especial insta-os a que imponham um embargo total de armas face a Israel e a suspensão de acordos comerciais e de investimento, bem como a imposição de sanções aos indivíduos envolvidos em atividades que possam pôr em perigo os palestinianos e a responsabilização das entidades empresariais pelas violações do direito internacional.
“As empresas não podem reivindicar neutralidade: ou fazem parte da máquina de deslocamento forçado de populações, ou fazem parte do seu desmantelamento”. Neste sentido, a Relatora Especial insta as entidades empresariais a cessar imediatamente todas as atividades comerciais e rescindir contratos associados que contribuam ou causem violações dos direitos humanos e crimes internacionais contra o povo palestiniano. Para além disto, recomenda que as empresas paguem reparações ao povo palestiniano, incluindo sob a forma de um imposto sobre a riqueza do apartheid, à semelhança do que aconteceu na África do Sul pós-apartheid.
O relatório insta o Tribunal Penal Internacional e os sistemas judiciais nacionais a investigar e processar administrações e/ou empresas pelo seu envolvimento na prática de crimes internacionais e na lavagem dos lucros desses crimes.
Finalmente, o relatório recomenda às Nações Unidas que cumpram o parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça de 2024 bem como que incluam todas as entidades envolvidas na ocupação ilegal israelita na base de dados do ACNUDH, recomendando ainda aos sindicatos, advogados, sociedade civil e cidadãos comuns que pressionem por boicotes, desinvestimento e sanções face a Israel, por responsabilização a nível internacional e nacional e por justiça para a Palestina.
Segundo Albanese a reconstrução humanitária não basta. É necessário restaurar o sistema legal internacional, responsabilizar os agentes, e assegurar a dignidade e direitos dos palestinianos — antes que o genocídio se assuma como precedente global irreversível. “A Palestina é um espelho que reflete as falhas morais e políticas do mundo” e representa atualmente um momento decisivo para determinar se os mercados globais podem existir sem promover e lucrar com a injustiça e a impunidade, disse a Relatora Especial. “Acabar com este genocídio requer não apenas indignação, mas ruptura, responsabilização e coragem para desmantelar o sistema que o possibilita.”