Contagem Regressiva

Se você pertence à parcela da humanidade preocupada com a tragédia do colapso socioambiental e luta com os meios de que dispõe para evitar que o planeta se torne inabitável, O decênio decisivo – propostas para uma política de sobrevivência, de Luiz Marques, será sem dúvida uma ajuda preciosa. Mas, caso você faça parte da maioria indiferente (ou negacionista), este livro mostrará que é hora de abrir os olhos, refletir e mudar de atitude. Dificilmente um leitor de mente aberta não se deixará convencer pela convocação do Autor de que todos os esforços são necessários para persuadir governantes e sociedades a exercerem todo tipo de pressão sobre quem toma decisões, a fim de que sejam adotadas medidas que retardem a queda no abismo. As negociações climáticas já não convencem ninguém. Elas servem apenas para manter em funcionamento um sistema econômico de expansão suicida, que usa e abusa da natureza para manter seus lucros, aumentando de forma exponencial a desigualdade entre os humanos e pondo em risco tanto o presente quanto o futuro das novas gerações.

Alarmismo, catastrofismo? Nada disso. Luiz Marques fornece dados abundantes para afastar tal suspeita, mostrando que precisamos agir, aqui e agora, antes que seja tarde demais. Para isso, opera uma sistematização rigorosa da literatura científica a respeito dos impasses ecológicos da nossa civilização, com dados indiscutíveis, como, por exemplo, no que se refere à aceleração do aquecimento dos oceanos nos últimos trinta anos, um indicador claro do aumento do aquecimento global. Numa linguagem clara e elegante, despida de retórica – de fato desnecessária, pois não é preciso exagerar nada quando a realidade já constitui o exagero absoluto – assistimos a um desfilar de gráficos, reflexões filosóficas, políticas, sociológicas, apelos de coletivos de cientistas e ecologistas, que há décadas tentam, inutilmente, fazer com que governos e sociedades prestem atenção nos relatórios científicos alertando para o iminente colapso climático e saiam de sua letargia suicida. Ninguém poderá se queixar, depois de ler este angustiante compêndio-manifesto, de não ter sido avisado.

É consenso entre os cientistas que a década em que acabamos de entrar representa uma bifurcação, um divisor de águas para a trajetória do sistema Terra nos próximos milhares de anos. Não podemos mais adiar soluções políticas para mitigar o aquecimento global em curso, sobrisco de que o planeta se torne inabitável e de que inúmeras espécies, entre elas a humana, sejam extintas. Olongo prazo depende de decisões no curto prazo.

Luiz Marques busca com seu livro eliminar as dúvidas que porventura ainda possam restar quanto às consequências do desarranjo climático. Resumindo o imbróglio: todas as previsões científicas mostram que por volta de 2030 o planeta ultrapassará a temperatura média superficial em 1,5oC acima do período pré-industrial. É crucial entender que nos últimos 50 anos a velocidade do aquecimento e do aumento de CO2 cresceu exponencialmente: “dez anos de nossa história presente equivalem agora, por assim dizer, a séculos de nossa história pregressa.” (p.48) Isso levará a desequilíbrios ecológicos que afetarão profundamente a vida humana na Terra. No caso particular do Brasil, os quatro anos do governo genocida e ecocida de Bolsonaro implicaram um grau de destruição socioambiental quase irreversível. Em resumo, vivemos uma ameaça existencial à espécie humana “mesmo na ausência de uma guerra nuclear” (p.26), caso continuemos a seguir o mesmo caminho de destruição da natureza. Hoje não podemos saber claramente quando passaremos de um planeta hostil a um planeta inabitável, só sabemos que esse processo está avançando muito rapidamente.

A aceleração do estrago começou a seguir à Segunda Guerra Mundial – ameaça de guerra nuclear no começo dos anos 1960; poluição ambiental e sociedade de consumo em ascensão – tanto que na década de 1970, nos países industrializados da metrópole, já se faziam ouvir alertas quanto à destruição ambiental, assim como dúvidas quanto à identificação entre capitalismo e progresso. Porém, enfatiza Luiz Marques, existe uma diferença qualitativa entre essa época e a nossa. Há 50 anos ainda havia a perspectiva de que o futuro seria algo melhor. Hoje o futuro já está determinado pela destruição quase irreversível do sistema Terra: “nossas opções são entre um futuro pior e um futuro terminal.” (p.41)

Isso posto, fica evidente que precisamos desacelerar e reconstruir o que foi aniquilado. Mas o tempo é o nosso maior inimigo, constata sombriamente Luiz Marques, que rejeita de modo enérgico as tentativas gradualistas de maquiar a tragédia em curso com a conversa mole degovernos, empresas, acadêmicos e jornalistas bem intencionados sobre “economia sustentável”. De fato, o livro desmonta de maneira irretorquível as ilusões do “desenvolvimento sustentável” e/ou “capitalismo verde”, ancoradas no antropocentrismo da espécie humana, que se julga no direito de usar em seu proveito a natureza, despida de valor em si e reduzida a mero recurso econômico. Como não nos cansamos de ver, ainda que aparentemente exista boa vontade, nenhuma proposta se traduz em medidas efetivas por uma razão muito simples: os Estados nacionais não têm poder sobre as grandes corporações que visam apenas o lucro de seus acionistas. Para tanto é preciso crescimento econômico infinito, incompatível com a noção de limite ou de uma “economia da sobriedade”, a única apta a fazer a transição para outro tipo de sociedade.

Apesar desse estreitamento de horizontes, Luiz Marques acredita não só que no decênio em curso ainda é possível tomar medidas para evitar o pior – aprender com o erro já que “somos uma espécie com uma singular capacidade de aprendizado”(p.42) – mas também que poderemos agir de modo radical para reverter e mitigar o que ainda pode ser revertido e mitigado e, assim, nos adaptarmos aos impactos do aquecimento climático, da diminuição da biodiversidade e da intoxicação dos organismos pela poluição químico-industrial. Essas duas apostas assentam-se em outra, a de que seremos capazes de construir um projeto de sociedade pós-capitalista, voltado para a diminuição da desigualdade e da destruição da natureza.

Essa sociedade pós-capitalista – ecossocialismo, social-ecologia, ecodemocracia – estaria assentada em oito princípios básicos, desenvolvidos no final do livro como “propostas para uma política de sobrevivência”: redução da desigualdade; diminuição do consumo de materiais e energia; tornar a natureza sujeito de direitos; preservação e ampliação das reservas naturais, entre elas os territórios indígenas; fim da economia globalizada e transição para uma civilização descarbonizada; fim da globalização do sistema alimentar e transição para uma alimentação vegetariana; fim da soberania nacional absoluta em benefício de uma soberania nacional relativa, que permita construir um governo democrático internacional; emancipação das mulheres, a fim de que decidam livremente sobre sua função reprodutiva, o que reduziria a taxa de natalidade.

O livro é dividido em três partes que se reforçam umas às outras: a Parte I trata da biosfera; a Parte II do sistema climático; e a III da desigualdade econômico-social entre os países (levando a níveis pandêmicos de adoecimento e mortes por poluição), e propõe como alternativa a formação de uma grande frente de movimentos socioambientais e coletivos de cientistas para lutar por uma “civilização de sobrevivência” (p.424). A luta política visaria o controle sobre os investimentos das corporações e dos Estados nacionais nos sistemas energético e alimentar, o que só será possível com um poder de Estado radicalmente democrático, tendo por meta uma civilização pós-antropocêntrica, não centrada na economia. Só assim teremos chances de adaptação às mudanças inevitáveis que trarão enormes dificuldades para a vida no planeta.

Luiz Marques alterna assim entre o tom otimista, insistindo que ainda é tempo de agir, e o pessimista, em que dá notícia do encurtamento do horizonte de possibilidades, quando, entre muitos exemplos, informaque os grandes bancos continuam investindo nas corporações extratoras de combustíveis fósseis; ou quando escreve sobre a continuidade da extração de petróleo e gás num bioma tão sensível quanto o Ártico. Ou, poderíamos acrescentar, quando somos informados que a Petrobras fazestudos para abrir novos poços de petróleo na foz do rio Amazonas. A lista de descalabros é longa e não para. Além disso, como manter a esperança quando os gastos com guerras são maiores do que no combate às mudanças climáticas?

No fim de O homem unidimensional, um de seus livros mais lúcidos e desencantados com o mundo do pós-guerra, Herbert Marcuse lembrava Walter Benjamin que, no começo da era fascista, escrevia: “Apenas em nome dos desesperançados nos é dada esperança”. É assim que vejo a militância incansável de Luiz Marques.

Longe de qualquer derrotismo ou desânimo, ele continua realizando pesquisas minuciosas sobra a questão socioambiental, a fim de fornecer subsídios aos movimentos socioambientais e, assim, alimentar a esperança de que, com muita luta e muito trabalho de organização de toda a sociedade, ainda será possível proteger a frágil teia da vida do sistema Terra.

Não resta dúvida de que o governo Lula tem uma extraordinária oportunidade histórica de fazer a lição de casa e pressionar os países desenvolvidos a fazerem a sua,para que em 2025, na COP 30, em Belém, sejam assumidos compromissos imediatos em relação ao clima, à biodiversidade, à poluição e às desigualdades.

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