BRICS: “O verão está chegando”

Para além de ter transformado o BRICS em uma articulação China+10, a expansão aprovada na reunião de Johanesburgo revela-se fossilista na sua obsessão pelo petróleo. Seus governos esquecem que a principal ameaça à humanidade é que o “verão está chegando”.

Encontro dos chefes de estado dos BRICS – agora com 11 países) na Africa do Sul, em agosto de 2023. Na foto, da esquerda à direita: Presidente Lula; Xi Jinping, presidente da China; Matamela Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul e Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia.
(Ricardo Stuckert/PR)

Muitas matérias têm sido escritas pretendendo analisar o recente encontro dos BRICS na África do Sul desde um ponto de vista de “esquerda”. Vou me abster de citá-las. Mas a maioria desperta um estranhamento na forma como tratam os temas dos BRICS, da política externa brasileira e, de uma maneira mais geral, das relações internacionais. Assumem, em nome de um pretenso realismo, a “razão de estado” como móvel único do sistema internacional, desconectando-o dos dramas da crise geral de civilização em que estamos mergulhados. Instalam um “clima de torcida” em relação às iniciativas da China ou do Brasil (ao menos sob o governo Lula) entre os comentadores “progressistas” das relações internacionais, pessoas nacionalistas que se chamam de “internacionalistas”.

Essa regressão política e cognitiva remete a um horizonte que sustentaria essa “razão de estado” no vazio normativo deixado pelo colapso do que consideravam um “socialismo real”, ocupando-o com uma orientação sistematizada, há um século, por Carl Schmitt - a política definida pela soberania e pela rotulagem de amigos e inimigos. A legitimidade da “razão de estado” é articulada por dois conceitos gêmeos herdados do nacionalismo do século XX, “desenvolvimento” e “interesse nacional”. Hoje, eles não se tornaram apenas empecilhos para a recomposição de uma luta altermundialista ou socialista, mas para a sobrevivência da civilização humana na era da emergência climática.

“Desenvolvimento” é um conceito que, oitenta anos depois da Cepal, deveria suscitar uma interrogante básica.

“Desenvolvimento” de quem e para quem? Qual é o sentido da “nação” no mundo de hoje? A tradição burguesa revolucionária era cosmopolita. A tradição socialista marxista e anarquista considerava a luta de classes internacional e os estados aparatos de dominação das classes burguesas nacionais. Sabemos o abismo a que a soberania absoluta como princípio da política moderna nos conduziu em estados maduros, a Auschwitz! Sabemos também aonde nos conduziu a experiência de burocratização da revolução russa. A tradição da esquerda não estalinista era cosmopolita e internacionalista, de solidariedade entre os povos em suas lutas concretas e contra as classes dominantes e seus estados. O nacionalismo era a opção das elites para esvaziar as lutas sociais, legitimando ditaduras, regimes autoritários e fascismos. Apoiavam-se movimentos nacionalistas apenas nos processos de rebelião contra as metrópoles coloniais ou face as agressões imperialistas - sempre ressaltando o internacionalismo de todos os movimentos populares.

Hoje, depois de quarenta anos de globalização neoliberal, facções burguesas similares estão no poder nas principais potências do mundo, ligadas às finanças e à publicidade, às plataformas digitais e à big pharma, aos combustíveis fósseis e à indústria automotiva, à indústria armamentista e à aeroespacial, ao agronegócio e à mineração… Isso é válido para as burguesias nucleadas por Washington ou as que querem fazer negócios com a de Beijing. Porque as classes dominantes brasileiras seriam melhores que as indianas, chinesas ou norte-americanas? Todas procuram maximizar seus lucros e aumentar suas taxas de mais valia! E, de conjunto, conduzem o mundo para as catástrofes que assolam o presente e o futuro previsível.

A China tornou-se a principal produtora de zonas de sacrifício neoextrativistas na Ásia, África e América Latina.

A transição energética impulsionada pelos capitalismos verdes do Atlântico Norte também começa a substituir o “consenso das commodities” por um novo “consenso da descarbonização”, que cria as mesmas zonas de sacrifício e desagregação social e política. O paradigma do estado miliciano - a exploração do cobalto no Congo - foi estendido para o Arco do Orenoco na Venezuela e se espalha por todas as fronteiras do neoextrativismo na América Latina.

Podemos teorizar que no passado o que o marxismo chamava de desenvolvimento das forças produtivas pela indústria representava um avanço (potencial) de prosperidade social mesmo no capitalismo. O poderio social das classes trabalhadoras industriais arrancou liberdades democráticas e avanços nos direitos sociais e humanos, embora isso não representasse nem o reconhecimento das diferenças nem o respeito ao meio-ambiente. Não é isso, todavia, que vem acontecendo nas últimas décadas, que conheceram enormes retrocessos civilizacionais, materiais e de consciência.

Cada armamento fabricado ou cada desenvolvimento tecnológico implementado, cada tonelada de soja ou de carne produzida está a serviço do mesmo propósito: acumulação de capital. Deveria ser evidente para nós, no Brasil, que todo reforço do agronegócio e da mineração representa o fortalecimento dos setores mais reacionários das classes dominantes, que se opõem aos interesses populares. Como pretender apresentá-los como “interesses nacionais” do Brasil? A “esquerda” enlouqueceu? É incapaz de localizar as raízes sociais do bolsonarismo? Só é capaz de trabalhar no mesmo horizonte econômico do mercado mundial estabelecido que ele?

Como alertou com agudeza Gustavo Petro na recente reunião de presidentes da Panamazônia, ao lado do negacionismo fascista, temos um negacionismo progressista, que ignora que estamos em meio a uma luta, travada em cada território, entre a vida e a morte.

O avanço do pragmatismo como régua de cálculo de todos os aspectos da vida humana escalou com a mercantilização da vida, o consumismo como ideal de felicidade, o individualismo e a fragmentação do tecido social, obliterando os horizontes comunitários e os universalismos alternativos ao do mercado. A esquerda regrediu do internacionalismo socialista para o progressismo nacionalista e social-liberal. O desenvolvimentismo adotou o PIB como parâmetro e esqueceu da prosperidade social. Cada barril de petróleo ou quilômetro de floresta tropical desmatado representa, na estrutura social capitalista global, estruturada pelos EUA e pela China, não a resposta de necessidades humanas fundamentais mas um prego no caixão da civilização moderna. Que sociedade organizada poderá se sustentar se o colapso da Floresta Amazônica acelerar a crise ecológica global? Se o aquecimento global fizer com que o número de migrantes fora de seus países passe dos atuais 110 milhões para 300, 500 ou, mais à frente, 800 milhões? Quantos novos Trumps ou Bolsonaros emergirão nesse mundo? Quantas novas guerras serão deflagradas?

As narrativas estadunidenses e europeias de defesa da democracia na periferia do capitalismo são hipócritas e alimentam uma espiral de ressentimentos. Nada sustenta, entretanto, os discursos de poder sobre um “Sul global” que têm a China como paradigma e ditaduras fascistas e teocráticas como representantes de seus interesses. Isso não tem relação seja com uma esquerda socialista e internacionalista, seja com o pensamento crítico. São apologias para adaptação nacionalista frente a um conjunto de problemas globais prementes que têm que ser enfrentados por um altermundialismo, são discursos que bloqueiam a possibilidade de construção de alternativas sistêmicas.

No universo ficcional de Games of Thrones, os reinos de Westeros competem pelo poder em alianças e guerras em uma luta sem propósito. Não veem que “o inverno está chegando”. Os teóricos das relações internacionais parecem ter se transformado, em sua grande maioria, em fãs de George R. R. Martin. Para além de ter transformado o BRICS em uma articulação China+10, a expansão aprovada na reunião de Johanesburgo se revelou fossilista na sua obsessão pelo petróleo (com Arábia Saudita, Irã e Emirados Árabes Unidos…) e na sua mentalidade. Seus governos esquecem que a principal ameaça à humanidade é que o “verão está chegando”.

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