A Rússia e a sua viragem geopolítica

A Doutrina Primakov descartou a ideia de superpotências e afirmou que o desenvolvimento e integração da economia mundial tornou o sistema internacional um espaço complexo que só poderá ser gerido de forma multipolar, implicando na reconstrução dos organismos internacionais e regionais

Carlos Eduardo Martins, A terra é redonda, 11 de julho de 2025

O colapso da União Soviética e o surgimento da Rússia atlantista

Entre as razões do colapso da União Soviética podemos destacar a nova estratégia econômica e militar dos Estados Unidos adotada a partir do governo de Ronald Reagan, que reorientou o padrão de acumulação do capitalismo mundial, drenou a circulação de capital do setor produtivo para o financeiro, impulsionou nova corrida armamentista por meio da dívida pública norte-americana, rebaixou as taxas de crescimento per capita da economia mundial à metade do que exibiram nos anos dourados do pós-guerra e rebaixou drasticamente os preços do petróleo.

Essa diretriz impactou profundamente as economias socialistas da União Soviética e do Leste Europeu. O Leste Europeu havia se endividado pesadamente com a banca internacional aproveitando-se da conjuntura de taxas de juros negativas dos anos 1970 para impulsionar os seus projetos de modernização, e a União Soviética foi afetada diretamente pela queda do valor de suas exportações, fortemente atreladas aos hidrocarbonetos, e pela pressão para responder às crescentes tensões geopolíticas aumentando os seus gastos militares, enquanto os Estados Unidos financiavam os seus com empréstimos internacionais lastreados em sua própria moeda.

Além disso, o princípio de solidariedade, que a levava a redistribuir excedentes econômicos do centro às periferias para a manter a unidade política das repúblicas soviéticas, do bloco socialista no Leste Europeu e do espaço socialista internacional sob sua influência, passou a sofrer crescentes tensões sociais e políticas, à medida que Moscou não conseguia atender a essas demandas e sacrificava o bem-estar russo.

O plebiscito sobre a manutenção da União Soviética, realizado em 17 de março de 1991, com 80% de comparecimento dos eleitores registrados, evidenciou que os principais núcleos separatistas vieram dos centros e não da maior parte de suas periferias, se excluirmos as do Cáucaso e do Báltico sob influência geopolítica atlantista.

Enquanto o resultado geral foi de 77% pelo sim, este alcançou apenas 50% em Moscou e São Petesburgo e mais de 90% nas repúblicas soviéticas localizadas na Ásia. A elite política e burocrática russa decidiu responder às pressões internacionais e internas extinguindo a União Soviética, transitando para o capitalismo ocidental e se apropriando de parte significativa de seu patrimônio público, dando origem às chamadas oligarquias.

O resultado da integração da Rússia ao capitalismo neoliberal e à hegemonia estadunidense foi decepcionante: desindustrialização, decrescimento econômico, aumento da desigualdade, queda na expectativa de vida, criação de uma burguesia rentista e mafiosa, perdas de território, de população e de influência geopolítica e submissão a um apartheid velado que impedia a integração do país à Europa.

As pretensões de integração à Europa foram manipuladas e descartadas pelos Estados Unidos e o seu protetorado europeu. A Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OCSE), que Mikhail Gorbachev imaginava poder ser a casa da Europa para estabelecer a cooperação em defesa, ciência e tecnologia, meio-ambiente, comércio, indústria, transportes e cultura, foi relegada a um papel secundário e subordinada ao protagonismo do imperialismo norte-americano e da agenda neoliberal.

Essa agenda se estabeleceu com a criação da União Europeia, através do Tratado de Maastrich, muito mais excludente e assinado por apenas 12 países em 1992.

A União Europeia incorporou a Comunidade Econômica Europeia, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e a Comunidade Europeia da Energia Atômica, desenhadas para a construção de um protetorado militar dos Estados Unidos na Europa Ocidental durante a Guerra Fria, e seguiu trajetória de expansão muito similar à da OTAN para o Leste europeu após o fim da URSS, evidenciando a sua tutela.

A promessas informais de não ampliação da OTAN para o leste ou as alusões à inclusão da Rússia na União Europeia e na OTAN foram sistematicamente ignoradas. Mikhail Gorbachev concordou com a unificação da Alemanha, desde que a OTAN não movesse tropas para o lado oriental.

Posteriormente, Boris Yeltsin assinou a Ata Fundacional OTAN-Rússia em 1997, onde ambos os lados se declararam não-adversários e comprometidos com a cooperação, segurança e o desenvolvimento de relações mútuas. Assinou ainda, no mesmo ano, o Acordo de Parceria e Cooperação com a União Europeia que resultou na elaboração da Estratégia Comum da União Europeia em relação à Rússia (1999).

Este documento saudou o regresso de Moscou à família europeia, afirmou que o seu futuro dependia de suas próprias decisões, e definiu como objetivos o estabelecimento de uma democracia plural e estável e de uma economia de mercado no país eslavo, que beneficiassem a União Europeia e a estabilidade política regional por meio da cooperação com os russos para a promoção da segurança global.

Entretanto, a integração da Rússia à União Europeia e à OTAN esbarrou em vários obstáculos: aproximaria os eixos Berlim e Moscou fortalecendo a Europa como um espaço geoeconômico regional projetado sobre o território asiático; e desafiaria a assimetria do poder militar na OTAN em favor dos Estados Unidos, criando as condições econômicas e estratégicas para a emancipação da Europa da tutela norte-americana.

Não por outra razão, a expansão foi precedida pela retirada das ogivas nucleares do Leste Europeu por Mikhail Gorbachev, já com a poio dos Estados Unidos, e estendida por Boris Yeltsin às extintas repúblicas soviéticas.

Os indícios de que a OTAN se expandiria para o Leste Europeu e poderia excluir a Rússia foram se materializando nas discussões no Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (1991-1997), em sua intervenção nos conflitos étnicos na antiga Iugoslávia sob forte liderança dos Estados Unidos, no bombardeio às posições servias na Bósnia em 1995 e na publicação do Estudo sobre a Expansão da OTAN (1995), determinando os critérios para adesão de novos membros.

Eles foram respondidos pelo governo de Boris Yeltsin com a designação de Evgeny Primakov para o cargo de chanceler da Rússia, no lugar de Andrey Kozyrev, entusiasta das reformas de mercado, crítico do nacionalismo e acusado de exercer uma política externa colaboracionista com o atlantismo, omissa sobre os movimentos de expansão da OTAN e a sua ingerência no conflito iugoslavo, facilitando a liderança e condução dos Estados Unidos.

A doutrina Primakov

Evgeny Primakov teve um papel central na reorientação da política externa russa, criando um paradigma de política estratégica que ficou conhecido como doutrina Primakov. Este paradigma se opôs à tese de que houve vencedores e vencidos na Guerra Fria e que a Rússia deveria se associar ao mundo ocidental como um Estado de segundo nível, de forma similar à Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial.

Evgeny Primakov descartou a ideia de superpotências e afirmou que o desenvolvimento e integração da economia mundial tornou o sistema internacional um espaço complexo que só poderá ser gerido de forma multipolar, implicando na reconstrução dos organismos internacionais e regionais.

Neste contexto geopolítico haverá lugar para uma Rússia forte, lastreada em seu desenvolvimento científico, cultural e militar e recursos estratégicos, apta a articular parte das ex-repúblicas soviéticas e estabelecer relacionamentos sólidos e equidistantes não apenas com os Estados Unidos, mas também com a Europa, China, Índia, América Latina e o mundo árabe. O fim do conflito entre dois sistemas ideológicos não deve ser substituído pelo conflito entre civilizações, transformando o combate ao terrorismo numa perseguição aos muçulmanos.

Ele propôs um triangulo estratégico entre Rússia, Índia e China e reforçou a necessidade da presença de Moscou no Oriente Médio para buscar o diálogo, a paz e impedir o caos. Destacou que a transição para o mundo multipolar exige a cooperação e o diálogo entre todos os polos.

Prevendo cenários para o futuro apontou duas grandes possibilidades. A primeira, onde os Estados Unidos resistam ao mundo multipolar e procurem afirmar o unilateralismo, buscando exportar à força o seu modelo liberal de democracia e impor suas decisões não apenas contra os supostos terroristas, mas também contra os regimes desobedientes e situações desfavoráveis.

A segunda, onde prevaleça a cooperação entre os distintos polos de poder levando a uma real globalização do mundo, centrada na interdependência financeira, produtiva e política e no desenvolvimento de organismos regionais e multilaterais de decisão.

Para Evgeny Primakov, caso se afirme a primeira alternativa, Rússia, China e Índia deverão aproximar seus vínculos como forma de resistência resultando em um novo tipo de confrontação pós-Guerra Fria, que não necessariamente culminaria em um novo conflito global, mas que deixaria marcas no mundo todo.

A aposta de Evgeny Primakov no segundo cenário se revelou na assinatura da Ata Fundacional sobre Relações Mútuas, Cooperação e Segurança entre a OTAN e a Rússia em 1997, que estabeleceu mecanismos de consulta e cooperação, definiu assuntos militares de interesse comum, e indicou que as partes deveriam agir com moderação.

Todavia, o ataque da OTAN à República Federal da Iugoslávia em 1999, sob iniciativa dos Estados Unidos, e à revelia do Conselho de Segurança da ONU, colocou em risco a soberania dos demais países de Leste Europeu e precipitou uma onda de adesões ao Tratado do Atlântico Norte, que incluiu imediatamente Polônia, Hungria e República Tcheca. Elas se somaram à adesão da Alemanha reunificada em 1990, negociada com Gorbachev por US$ 5 bilhões e a promessa informal de não estacionar tropas na parte oriental, logo violada.

A aposta de Evgeny Primakov se manifestou também na sua posição frente a crise russa de 1998, em sua curta gestão como primeiro-ministro: contrária à moratória, mas favorável à retomada do controle do Estado sobre setores estratégicos e à reindustrialização da economia russa.

A ascensão de Vladimir Putin e do nacionalismo russo

O colapso da economia russa resultou das reformas de mercado que criaram uma oligarquia financeira. Esse grupo usou o Estado para captar recursos internacionais, privatizar ativos a preços muito inferiores ao valor, controlar setores estratégicos e enviar capitais para paraísos fiscais. A crise foi agravada pela queda dos preços do petróleo, que em 1998 atingiram seus níveis mais baixos da série histórica.

A crise russa e a ofensiva dos Estados Unidos e da OTAN sobre a Iugoslávia se saldaram com o desgaste político de Yeltsin, culminando em sua renúncia e na ascensão de Putin, resultando no crescente afastamento da orientação atlantista e liberal em favor da multilateralista, esboçado inicialmente por Evgeny Primakov.

A pretensão de criação de uma república islâmica por grupos extremistas, expulsando os russos do Caucaso, desdobrou-se na invasão do Daguestão pela milicia chechena e em atentados terroristas em Moscou, Buynaksk e Volgodonsk, resultando na 2ª guerra da Chechênia, comandada por Vladimir Putin. A guerra, iniciada em 1999, se estendeu até 2009 e foi chave para a massiva votação que alcançou na eleição de 2000, fortalecendo a chama do nacionalismo russo.

O conceito de segurança nacional e a doutrina militar, publicados em 2000, são um importante marco de virada do pensamento estratégico russo. O conceito de segurança nacional apontou a expansão da OTAN para o Leste Europeu e sua resistência à afirmação da Rússia como um dos centros de um mundo multipolar, como as principais ameaças a sua soberania.

Indicou como suas principais fontes de vulnerabilidade, que colocam em risco a sua unidade como federação, a desindustrialização provocada pela abertura comercial e financeira sem o adequado planejamento nacional e o mau uso do sistema bancário.

Elegeu como prioridades a reindustrialização do país, o restabelecimento do seu sistema científico e tecnológico, a aplicação de tecnologias militares para fins civis e a diminuição da dependência da exportação de recursos naturais e matérias-primas.

A doutrina militar designou a segurança como uma estratégia defensiva e a dissuasão nuclear como central para garanti-la, aceitando como último recurso o emprego de armas nucleares contra os ataques massivos que atinjam a Rússia, os seus aliados ou as proximidades de suas fronteiras, ameaçando sua existência, mesmo se restritos ao uso de armas convencionais. As doutrinas militares publicadas em 2010 e 2014 reforçaram essas diretrizes e a última define o emprego de armamento nuclear em guerras regionais ou de larga-escala e o propósito de desescalá-las.

Para impulsionar a recuperação econômica e a redefinição do poder estatal, Putin reestruturou as relações internas. Impulsionou um capitalismo de Estado ancorado na balança de poder entre as elites econômicas (oligarquias) e da segurança (silovikis), para lhe garantir capacidade de mediação, autonomia e centralização política, e articulou a criação de um partido, a Rússia Unida, para lhe dar sustentação.

Manteve a pretensão de se engajar com o Ocidente a partir de um Estado forte, o que se manifestou na colaboração logística com a intervenção norte-americana no Afeganistão para combater o terrorismo islâmico, na reestruturação produtiva, e na reforma eleitoral que impôs distritos federais para conter os movimentos separatistas e acabou com os partidos locais e regionais e a eleição de governadores.

Decisiva foi a substituição das oligarquias vinculadas a Boris Yeltsin por uma nova aristocracia econômica para estabelecer um outro padrão de acumulação. Isso implicou em destruir os seus representantes mais resistentes e cooptar os demais para a adesão às diretrizes do planejamento estatal.

Berezovski, Gusinski e Khodorkosvski, que possuíam forte apoio estadunidense e ofereciam oposição, perderam os seus impérios econômicos que abrangiam o setor energético, de telecomunicações, automobilístico, finanças ou aviação e foram processados, presos ou exilados.

Vladimir Putin definiu como chave a reindustrialização do país para desenvolver as campeãs nacionais, tal como sustentou em sua tese doutoral em 1997. Para isso estabeleceu o controle estatal sobre setores e recursos estratégicos, elevou os impostos e promoveu a parceria e forte regulação sobre o setor privado, que apoiou a elite política modernizadora em troca de privilégios e benefícios.

Tratava-se de romper com o parasitismo, a evasão fiscal, renacionalizar setores e reverter a fuga de capitais para impulsionar uma Rússia potente, parceira do Ocidente, mas independente em um mundo plural, de cooperação e alianças complexas.

Definiu-se como chave para este objetivo o controle estatal sobre os bancos e a alta finança, o petróleo e gás, os gasodutos, a energia nuclear, a indústria naval, a maquinaria pesada, a aviação, as ferrovias, a indústria militar, e a ciência e tecnologia. Se estabeleceu a forte presença em telecomunicações e na promoção da produção de fertilizantes e a parceria com o capital estrangeiro foi estimulada para internalizar tecnologia estrangeira e este se tornou predominante na indústria automobilística, na farmacêutica, no varejo, e na comercialização de alimentos e bebidas.

A forte dependência de importações no setor de alta tecnologia ensejou a criação do projeto Skolkovo, em 2010, com a pretensão de criar um Vale do Silício russo, em associação com empresas estadunidenses e europeias, e da Parceria para Modernização entre Rússia e União Europeia, promovidos por Medvedev, para promover a transferência de tecnologia e a substituição de importações.

O expressivo crescimento entre 1999-2006 foi alavancado principalmente pelo segmento de petróleo e gás e reduziu significativamente a pobreza, ampliando as camadas médias. A Rússia buscou ampliar sua influência como exportadora de energia para a União Europeia e para Ásia e firmou o acordo para a produção dos gasodutos Nord Stream com a Alemanha, em 2005, que contornava os territórios do Leste Europeu e era uma resposta às “revoluções coloridas” e à reação comandada pelos Estados Unidos para limitar a influência geoeconômica da Rússia na Europa e no entorno asiático.

A tentativa de cooperação com os Estados Unidos para explorar as imensas reservas de hidrocarbonetos do mar Cáspio se frustrou e deu lugar à competição.

A crise de 2008 debilitou a economia russa e a ofensiva norte-americana desdobrou-se na Cúpula de Bucareste da OTAN, que sinalizou a futura adesão de Geórgia e da Ucrânia, na intervenção sobre o Norte da África e o Oriente Médio, no golpe de Estado na Ucrânia em 2014 e nas crescentes sanções aplicadas à Rússia a pretexto da garantir a soberania, estabilidade, integridade e democracia na Ucrânia, de retaliar a suposta interferência cibernética nas eleições norte-americanas, de conter a influência russa na Europa e na Eurásia, e de proteger a segurança energética da Europa.

Vladimir Putin criticou fortemente a abstenção de Medvedev no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a intervenção na Líbia e assumiu uma posição independente no Oriente Médio de sustentação do regime de Bashar Al Assad, que o garantiu até 2024, quando teve que focar seus esforços militares na Ucrânia e as forças do Hezbollah em seu confronto com Israel na fronteira do Líbano.

A economia política das sanções, a guerra e a reestruturação do poder russo

A projeto de Evgeny Primakov, de uma relação equidistante, cooperativa e multipolar com os Estados Unidos, foi se enfraquecendo à medida que a escalada de tensões com o atlantismo e a economia política das sanções aumentou.

A aproximação da Rússia à Europa além de ameaçar sua condição de protetorado estadunidense e propiciar o fortalecimento da Eurásia sobre as ilhas ultramarinas e penínsulas, coloca em risco as pretensões norte-americanas no mercado mundial de armas, serviços de defesa e de petróleo e gás.

Apesar das pressões estadunidenses e das ameaças estabelecidas a partir do Ukraine Freedom Support Act (2014), de sanções contra os projetos russos de produção e distribuição de petróleo ou às ações da Gazprom que privassem a Ucrânia e a Geórgia da oferta de gás, os investimentos russos continuaram avançando, bem como as conexões com a Europa Central e Ocidental.

As exportações russas para Alemanha, Holanda, Itália, França e Polônia saltaram de 23% para 29,7% do total entre 1998 e 2014, conservando-se em 22,3% em 2019. O Protect Europe Energy Security Act (2019) imposto por coalizão bipartidária liderada pelo republicano Ted Cruz e a democrata Jeanne Shallen tornaram os gasodutos Nord Stream 2 e TurkStream, que contornavam os territórios da Ucrânia ou da Geórgia, alvos explícitos, estabelecendo sanções obrigatórias contra empresas e indivíduos vinculados a sua construção.

Em janeiro de 2020, o TurkStream entrou em operação, seguido pela conclusão das obras do Nord Stream 2 em setembro 2021. O conflito militar entre a Rússia e a OTAN na Ucrânia tornou-se necessário para impedir a ativação do Nord Stream 2 – inicialmente através da retaliação do governo social-democrata de Olaf Scholz ao reconhecimento da independência de Lugansk e Donetsk em fevereiro de 2022, e posteriormente mediante sabotagem e explosão em setembro do mesmo ano.

A guerra impôs uma forte reestruturação da economia interna e geopolítica da economia russa, e impulsionou a parceria estratégica com a China, anunciada em fevereiro de 2022, por Vladimir Putin e Xi Jinping. Desvinculou-a significativamente da Europa, dos Estados Unidos e do atlantismo e aprofundou os seus vínculos com a Ásia, o BRICS e o projeto multilateral do Sul Global.

Fortaleceu o capitalismo de Estado, o poder relativo dos trabalhadores diante do capital e enfraqueceu as oligarquias. A economia de guerra elevou a tributação do Estado sobre a burguesia, ampliou o gasto público, impulsionou a indústria militar, promoveu a nacionalização de empresas por razões de segurança nacional, criou a escassez de força de trabalho e as condições para elevação dos salários acima da produtividade.

As sanções provocaram o efeito inverso ao imaginado pelos Estados Unidos, de asfixia comercial, financeira, social e política da Rússia, resultando em um grande fiasco: produziram a escassez de petróleo e gás no mercado mundial, elevando seus preços; restringiram o acesso das oligarquias russas ao sistema financeiro ocidental, impulsionando a drástica redução da fuga de capitais e a sua repatriação para evitar penalizações externas ou internas; e aumentaram a capacidade de o Estado russo planejar o desenvolvimento por formas indicativas e centralizadas, bem como o seu respaldo político e social.

A Rússia pode reorganizar o seu comércio exterior, manter significativos saldos comerciais, em conta corrente e na conta financeira, e renovar suas reservas internacionais, mantendo altos estoques, independente do confisco patrocinado pelos Estados Unidos e a União Europeia.

Em 2022, o país alcançou um superávit na conta corrente de U$ 237,7 bilhões, 90% superior ao de 2021, o segundo maior na história da Federação Russa, e obteve um superávit na conta financeira de U$ 227 bilhões, 83% maior que o do ano anterior, também o maior registrado até então.

A China elevou a sua participação nas exportações russas de 8,2% em 2014, para 13,4 em 2019 e 32,7% em 2023; a Índia saltou de 1,5% para 16,8% entre 2014 e 2023, a Turquia de 4% para 7,9% no mesmo período e o Brasil respondeu por 2,8% em 2023. Estes países em seu conjunto passaram a representar aproximadamente 60% das exportações russas.

As importações também sofreram mudança drástica concentrando-se fortemente na China, que saltou de 21,7% para 53% delas entre 2019 e 2023, respondendo pela imensa maioria das compras de eletrônica e máquinas elétricas, tratores, caminhões e automóveis, máquinas de escavação e materiais de construção enquanto Irã e Coreia do Norte complementaram o esforço de produção militar nacional.

Permanece, entretanto, o domínio europeu nas importações de produtos farmacêuticos, em particular da Alemanha, Suíça, Bélgica, Holanda, e Áustria que respondem por quase 60% delas.

A brutal economia política de sanções lançada contra a Rússia, que inclui a proibição de transações com o seu Banco Central, o congelamento e o confisco parcial de suas reservas no exterior e a exclusão dos bancos russos do sistema Swift, gerou uma enorme insegurança mundial sobre as reservas depositadas no Tesouro e em bancos norte-americanos, colocando na ordem do dia o debate sobre a desdolarização das transações internacionais e a construção de novos padrões monetários.

Um dos seus principais resultados foi a ampliação do BRICS a partir da Cúpula de Joanesburgo, ratificada sob a presidência do Kremlin, com a entrada dos Emirados Árabes, Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia como membros plenos a partir de 1º de janeiro de 2024 e de Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão como membros associados, a partir da Conferência de Kazan.

A Indonésia foi incorporada como membro pleno sob a presidência brasileira em 2025, havendo ainda outras candidaturas com expectativa de ingresso futuro, como a Venezuela, que sofreu o veto do governo Lula. Apenas em 2024, 30 países externaram a pretensão de participarem do BRICS como membros plenos ou associados.

Os BRICS vão agregando países anfíbios, com fortes dimensões territoriais, bases demográficas, recursos energéticos, localização estratégica e vocações marítimas e intercontinentais.

Expressam um movimento similar aos processos de descolonização e as bases da Conferência Afro-Asiática de Bandung, mas que ultrapassa e supera os seus limites, não apenas pela abrangência mas porque o seu foco não é apenas o de garantir a autodeterminação, a soberania e o direito dos povos, e sim o de construir um sistema mundial multipolar mais justo, equitativo, cooperativo, plural e democrático, capaz de reformar os organismos internacionais existentes e de criar outros para buscar soluções para temas como a pobreza, a desigualdade, as assimetrias de poder internacionais, o subdesenvolvimento, o acesso à saúde e sua universalização, as guerras e a segurança global, a transição energética, a criação de um novo padrão monetário, a tributação da riqueza, a cooperação tecnológica e científica, e a proteção ao emprego.

A guerra está produzindo uma redistribuição de poder na elite econômica russa e reforçando o capitalismo de Estado. As nacionalizações em curso buscam reforçar o controle estatal e as interconexões e laços de fidelidade entre a burguesia local e o Kremlin.

Empresas estrangeiras que abandonaram o país, firmas em setores estratégicos em mãos de empresários residentes no exterior, proprietários beneficiados por privatização ilegal de ativos nos anos 1990 e suspeitos de conspiração são objeto de processos de nacionalizações que implicam a transferência de seus ativos ao Estado e eventualmente a reprivatização posterior para grupos próximos ao Kremlin.

Desde 2022, os tribunais russos produziram mais de 200 sentenças de nacionalização e no total mais de 500 expropriações foram realizadas até janeiro de 2025. Aproximadamente 52% das expropriações foram baseadas nas novas regulações contrárias à presença de estrangeiros em setores estratégicos, 38% em sentenças judiciais e 10% se deveram a pressões políticas para a venda.

Cerca de 250 empresas estrangeiras foram atingidas, entre elas, a alemã Uniper, a finlandesa Fortum, as estadunidenses ExxonMobil e Glavproduckt, a dinamarquesa Baltika e a norueguesa Amedia. Empresas, em setores estratégicos, de proprietários detentores de dupla nacionalidade, também foram alvejadas pelos tribunais, como o complexo agroindustrial Rodnye Polya, que controla a distribuição de grãos, os aeroportos de Domodedovo e Sheremetvevo.

Entre as nacionalizações motivadas por violação das leis de privatização nos anos 1990, fraude fiscal ou necessidades da indústria bélica estão a produtora de margarina e massas Mafka, a imobiliária KR Proprieties, a concessionárias de carros Rolf Group of Companies, as usinas metalúrgicas de Chelyabinsk, Serov e Kuznetsk e a Solikamsk Magnesium Plant OJS.

A partir das “revoluções coloridas”, do golpe de Estado na Ucrânia e da continuidade da expansão da OTAN para o Leste, o governo Putin percebe nas ideologias neoliberais uma arma de promoção da mudança de regime cujo objetivo é o de destruir a comunidade russa, violar a soberania estatal e promover o separatismo.

Propõe-se então a defender a fortaleza russa, sitiada pela ofensiva estadunidense e europeia. Passa-se a definir a Rússia como um Estado-civilização, com especificidade única, e um dos centros de um mundo multipolar em construção.

Esse enfoque ganha dimensão estratégica e oficial com o discurso de Putin de 2022 no Club de Valdai e, principalmente, com a publicação da versão de 2023 do documento Conceito de política externa, que estabelece as diretrizes internacionais do Estado russo. O Estado-civilização possui identidade milenar, forte dimensão eurasiana, está orientado no topo da hierarquia espiritual pelos valores da igreja ortodoxa cristã, capaz de sincretismo, porque portador de um universalismo comum às demais religiões e sistemas éticos seculares, sendo capaz de assimilar diversas etnias e religiões à centralidade russa.

A família é definida a partir de relações heterossexuais e monogâmicas e, ainda que não se criminalize a homossexualidade, condena-se a propagação da cultura LGBTQIA+ e o consumo e a liberação de opioides e narcóticos.

O conservadorismo é retratado como essencialmente defensivo, voltado para preservar a especificidade singular de uma civilização, e a base da multipolaridade, sendo a história russa apresentada como uma curiosa longa duração, que descarta as revoluções, mas promove a combinação do neoconservadorismo com o czarismo e o bolchevismo para produzir uma extensa continuidade que minimiza seus conflitos e contradições.

A Rússia proclama seu interesse em estabelecer relações pacíficas com o Ocidente, mas nele distingue dois: um Ocidente autêntico, dos valores tradicionais, principalmente cristãos, e outro agressivo, cosmopolita, neocolonial, neoliberal e decadente.

Todavia ignora que a construção do sistema-mundo capitalista, que incluiu a conquista de territórios, subjugação de povos e a escravidão, teve o apoio e a cumplicidade do Vaticano, expresso em bulas como a Dum diversas (1452), Romanus Pontifex (1455) e Interceatera (1492) ou na propriedade por suas ordens de escravos nas colônias, e da Igreja Anglicana, que recebia doações de escravagistas e investiu pesadas somas na South Sea Company, dedicada ao tráfico negreiro no Atlântico.

Donald Trump e a tentativa de negociação com a Rússia

A economia política das sanções dirigida à Rússia, que alcançou o auge com a Guerra da Ucrânia, impulsionou a restruturação do Estado russo e de sua inserção internacional, afastando-a da segunda alternativa desenhada por Primakov, ainda que o cenário hodierno, ultrapasse em muito o de uma nova guerra fria, desenhado pelo autor, inadequado para entender a estrutura e a dinâmica dos conflitos atuais.

O fracasso da coalizão liderada pelos Estados Unidos na OTAN em produzir o colapso do Estado russo, as notórias desvantagens geopolíticas para o poder norte-americano resultantes, e os custos galopantes da guerra levaram à crise da política externa liderada pelos democratas e contribuíram para a volta de Donald Trump à Casa Branca.

Donald Trump buscou então radicalizar o giro que iniciou em seu primeiro mandato: eleger a China como o inimigo, descartar várias frentes de luta, e atrair a Rússia para uma aproximação com os Estados Unidos e distanciá-la da principal potência asiática. Ele pretende descartar as políticas de financiamento de alianças com a OTAN, manter os conflitos regionais, mas atuar como poder estabilizador para articular um consenso de contenção à China, alternativa que, todavia, o unilateralismo que imprime restringe.

Ultrapassados os cem dias do seu mandato, Donald Trump assinou um acordo com a Ucrânia para financiar a assistência militar e a reconstrução através de um fundo constituído por meio da exploração de recursos minerais e terras raras concedidos aos Estados Unidos, mas não conseguiu produzir um cessar-fogo e muito menos impedir a aproximação e o aprofundamento da parceria estratégica entre Rússia e China.

Para isso, a Rússia exige a retirada das tropas e o reconhecimento global da soberania russa sobre as regiões de Donetsk, Luhansk, Kherson y Zaporiyia, e a desistência da Ucrânia de retomá-las. Ainda que Donald Trump possa se inclinar nessa direção, as resistências das lideranças europeias, saudosas do protetorado militar das políticas de hegemonia, internas das elites nos Estados Unidos, e a incapacidade de conseguir da Rússia qualquer colaboração para a contenção da China tornam a alternativa da paz extremamente frágil e vulnerável.

*Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo) [https://amzn.to/3U76teO]

Publicado originalmente em Recortes da conjuntura mundial.

Referências

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