A resposta dos oceanos: já estamos condenados a curto prazo?
Um panorama da aceleração do aumento do nível do mar no Brasil e no mundo.
“À medida que o oceano se aquece e que se reduzem as camadas de gelo terrestre, o nível médio global do mar continuará a se elevar, mas a uma taxa mais rápida do que a observada nos últimos 40 anos”. Essa declaração de Qin Dahe (do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC) remonta a 2013, data do Quinto Relatório de Avaliação do IPCC.i Passados pouco mais de dez anos, eis como começa um documento da ONU, de agosto de 2024: “Em 2021, o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC concluiu com grande confiança que o nível médio global do mar está subindo a taxas sem precedentes nos últimos 3.000 anos, devido ao aquecimento global induzido pelo homem. Desde então, pesquisas emergentes sobre os "pontos de inflexão" climáticos e a dinâmica das camadas de gelo têm alarmado os cientistas de que a futura elevação do nível do mar pode ser muito maior e ocorrer mais cedo do que se pensava anteriormente”.ii
Esse documento enfatiza dois pontos:
A velocidade atual da elevação do nível do mar é a maior dos últimos três mil anos;
A velocidade futura pode ser maior do que a maioria das projeções anteriores, entre as quais as do próprio IPCC.
Vejamos dois parâmetros dessa aceleração vertiginosa do nível do mar:
(a) entre 1880 e 2022, o nível médio do mar subiu 21 a 24 cm. Mas entre 1993 e 2024, ele subiu na média global 10,2 cm (102,4 mm), ou seja, quase a metade de toda a elevação desde 1880;
(b) apenas nas últimas três décadas, entre 1993 e 2023, a velocidade dessa elevação mais que dobrou, como mostra a Figura 1.
Figura 1 - Elevação média do nível do mar entre 1993 e 2023, por décadas e por média anual em milímetros.
Fonte: State of the Global Climate 2023, Organização Meteorológica Mundial, 2024.
De fato, entre a primeira e a terceira década examinadas na Figura 1 (1993-2002 x 2014-2023), a velocidade da elevação do nível do mar aumentou 124% (de 2,13 mm/ano para 4,77 mm/ano).
1. O “Hiper-Antropoceno” e a aceleração exponencial do aumento do nível do mar
Em 2019, o nível do mar subiu 6,1 mm em relação a 2018, uma elevação tão assustadora que os cientistas a consideraram um ponto fora da curva. Mas eis que já em 2024 outro salto ocorreu de quase igual magnitude: 5,9 mm.v Isso representa um salto de 24% na velocidade do aumento do nível do mar em relação à média da década passada (2014-2023). Segundo Josh Willis, do Jet Propulsion Laboratory da NASA, “o aumento que vimos em 2024 foi maior do que esperávamos. (...) A taxa de elevação está se tornando cada vez mais rápida”. Esse novo salto foi tão imprevisto quanto o salto no aquecimento médio global em 2023, 2024 e inícios de 2025, já que em 20 dos últimos 21 meses (julho de 2023 a março de 2025), o aquecimento médio global manteve-se acima de 1,5 oC em relação ao período pré-industrial.
Em 2016, num artigo publicado na revista Nature, Robert De Conto e David Pollard afirmaram: “Hoje estamos medindo a elevação do nível do mar em milímetros por ano. Falamos de um potencial para medi-la em centímetros por ano apenas em decorrência do degelo da Antártida”. Nesse mesmo ano de 2016, James Hansen e colegas publicaram uma pesquisa, mostrando um cenário futuro totalmente diferente das projeções do IPCC:
“Nossa análise pinta uma figura muito diferente da do IPCC (2013), mantida essa fase de Hiper-Antropoceno e se as emissões de gases de efeito estufa continuarem a crescer. Nesse caso, concluímos que uma elevação de muitos metros do nível do mar torna-se praticamente inevitável, provavelmente nos próximos 50 a 150 anos”.
Isso porque, mantida a atual aceleração do aquecimento, é provável uma desintegração não linear do gelo terrestre, implicando “uma elevação do nível do mar de vários metros na escala de tempo de um século”. O trabalho de Hansen e colegas projeta uma duplicação da velocidade do degelo terrestre e da elevação do nível do mar a cada 5, 10 ou 20 anos entre 2000 e 2160, como mostra a Figura 2.
Fonte: James Hansen et al., “Ice Melt, Sea Level Rise and Superstorms: Evidence from Paleoclimate Data, Climate Modeling, and Modern Observations that 2°C Global Warming is Dangerous”. Atmospheric Chemistry and Physics. An interactive open-access journal of the European Geosciences Union, 16, 22 mar. 2016, Fig 5.
Na figura 2, vemos:
(a) Fluxo de água doce adicionado aos oceanos Atlântico Norte e Sul, medido em Sverdrup (Sv), sendo 1 Sv = 106 m3 / seg. (1 milhão de metros cúbicos de água doce por segundo) ou 3 x 104 Gt/ano (3 trilhões de toneladas de água doce por ano);
(b) aumento resultante do nível do mar, em metros. A velocidade de ambos os processos pode dobrar a cada 5, 10 ou 20 anos durante o período 2000 - 2160. Linhas sólidas para 1 metro de elevação do nível do mar e linhas pontilhadas para cinco metros.
Segundo Hansen e colegas, na melhor das hipóteses (duplicação da velocidade a cada 20 anos), o nível médio do mar aumentará um metro acima do nível atingido em 2000 por volta do ano 2110. Na hipótese intermediária (duplicação a cada 10 anos), o nível médio do mar aumentará um metro já em 2070; e na pior das hipóteses, esse nível será atingido já em 2050. De seu lado, é verdade que, a cada relatório, o IPCC piora suas projeções. No Quarto Relatório de Avaliação (2007), o IPCC projetava uma elevação média do nível do mar entre 18 e 59 cm até 2100. No Quinto Relatório (2013), a elevação projetada até 2100 já era bem maior: entre 28 e 98 cm. E em seu Relatório Síntese de 2023, o IPCC aceitou a possibilidade de uma “desestabilização” do gelo terrestre, incluindo em seu gráfico (implicitamente) a projeção intermediária de James Hansen e colegas (elevação de 1 metro por volta de 2070). Isso posto, ele ainda a considera de “baixa probabilidade”, como mostra a linha pontilhada da Figura 3:
Fonte: IPCC, Climate Change 2023. Synthesis Report. Seção 3 (Long- term Climate and Development Futures), p. 75, Figura c
Na figura 3, vemos os enários de elevação do nível do mar até 2100, segundo cinco cenários (muito baixo, baixo, intermediário, alto, muito alto) desde 1900 e também em relação ao período de base 1986-2005. A linha pontilhada descreve uma trajetória de “baixa probabilidade e alto impacto”, incluindo “processos de instabilidade” dos mantos de gelo.
Em 2017, também o National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) mostrava-se muito mais pessimista do que o IPCC. Para os cientistas do IPCC, no cenário “muito alto”, a elevação média do nível do mar chega a cerca de um metro em 2100, em relação a 1900. As projeções do NOAA baseiam-se em seis cenários futuros de elevação do nível do mar acima do nível de 2000. Segundo essas projeções, em 2030, o nível médio do mar terá se elevado entre 9 cm e 24 cm; em 2040, entre 13 cm e 41 cm, em 2050, entre 16 cm e 63 cm; enfim, em 2100, entre 30 cm e 2,5 metros, sempre, repita-se, em relação aos níveis de 2000. Em 2019, Jonathan Bamber e colegas reforçam essas projeções mais alarmantes do NOAA:
“Constatamos que uma elevação total do nível do mar global superior a dois metros até 2100 se situa dentro dos limites de incerteza de 90% para um cenário de altas emissões. Isso é mais que o dobro do valor máximo apresentado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas no Quinto Relatório de Avaliação”.
2. A vulnerabilidade do Brasil
E o Brasil, como fica nesses cenários? Com mais de 10 mil km de linha costeira, nosso país é obviamente muito vulnerável à elevação do nível do mar. Mais da metade da população brasileira (54,8%), vive a uma distância máxima de 150 quilômetros do litoral e a elevação do nível do mar já está afetando muitos dos 279 municípios brasileiros defrontantes com o mar, 12 dos quais capitais de estado, sendo seis muito afetadas: Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Luís. Para os cientistas do Climate Central, se a projeção de aquecimento do IPCC, baseada em emissões médias a altas de GEE (medium-to-high emissions scenario), se confirmar, 1,3 milhão de pessoas em nosso país estarão em 2030 habitando em zonas de risco de inundação costeira “ao menos uma vez por ano”.
Rio de Janeiro
Na cidade do Rio de Janeiro, o nível do mar se elevou 13 cm entre 1990 e 2020. A projeção central é de que entre 2020 e 2050, ele se eleve mais 16 cm (mais 21 cm, no pior cenário).xiii A Figura 4 mostra as áreas da cidade que estarão abaixo do nível do mar nas marés altas e nas ressacas no cenário de aquecimento médio global de 3ºC acima do período pré-industrial.
Fonte: Climate Central, Coastal Risk Screening Tool (Acesso em: link)
Vemos na figura 4 áreas da cidade do Rio de Janeiro que estarão abaixo do nível do mar nas marés altas e nas ressacas quando o aquecimento médio global tiver atingido 3 oC acima do período pré-industrial (1850-1900).
A Figura 5 simula a diferença para o Rio de Janeiro de um aquecimento médio global de 1,5 oC e de 3 oC, a partir de uma foto do Copacabana Palace e da praça em frente a ele.
Fonte: Climate Central, Which Future Will We Choose? (3D Imagens)
Na figura 5, imagens do Copacabana Palace em dois cenários. À esquerda, no mundo atual com um aquecimento médio global de 1,5 oC. A imagem da direita mostra o nível que o mar tenderá a atingir nessa praça (no longo prazo) no cenário de 3 oC de aquecimento médio global.
É evidente que esse nível de aquecimento médio global (3 oC), previsto para o terceiro quarto do século XXI, corresponde estruturalmente a esse nível de elevação do nível do mar, mas não implica imediatamente esse nível de inundação, que ocorrerá em um ritmo muito mais lento.
Santos
Em Santos, entre 1945 e 1990, o nível do mar subiu, em média, 1,3 mm por ano. De 1993 a 2014, ele subiu 2,7 mm ao ano e de 2003 a 2013, 3,6 mm ao ano. Portanto, 1945-1990 e 2003-2013, a velocidade do aumento do mar quase triplicou (1,3 x 3,6 mm por ano em média). A Figura 6 mostra as áreas do sudeste e do noroeste de Santos que serão regulamente inundadas em 2050 e em 2100, com uma elevação de 23 cm e de 45 cm em 2050 e 2100, em relação a 2000.
Fonte: Marcos Pivetta, “Prevenir vale a pena”. Pesquisa Fapesp, 238, dez. 2015
Na figura 6, vemos projeções das regiões Noroeste e Sudeste da cidade de Santos que estarão abaixo do nível do mar em 2050 e 2100, nos cenários de elevação de 23 cm e de 45 cm em 2050 e 2100, respectivamente.
3. Combater as causas
Voltemos, para concluir, às projeções de curto prazo do NOAA em relação ao nível de 2000. Nesses cenários, em 2030, o nível médio do mar poderá ter se elevado em até 24 cm; e em 2050, em até 63 cm. Esses níveis de elevação média do nível do mar, previstos para este segundo quarto do século, acarretarão a diminuição ou o desaparecimento da maior parte das praias, com uma catastrófica destruição dos ecossistemas costeiros, bem como do patrimônio construído, da economia e dos modos de vida nas regiões e cidades litorâneas do mundo todo. E é exatamente isso o que está em vias de acontecer também no Brasil.
A capacidade humana de se adaptar à elevação do nível do mar, às inundações costeiras e à salinização dos deltas é muito limitada, dada inclusive sua velocidade vertiginosa. Portanto, é preciso combater a causa do aquecimento global. E no Brasil, a causa principal é o desmatamento e a pecuária bovina, em suma, o agronegócio, responsável por cerca de 75% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa. É preciso desmatamento zero, restauração florestal e diminuição do consumo de carne, vale dizer, é preciso superar o catastrófico modelo agroexportador brasileiro. E isso só será possível através de um esforço conjunto da sociedade pela democratização da propriedade rural, a única capaz de produzir uma agricultura regenerativa, próxima do consumidor, baseada em nutrientes vegetais, geradora de alimentos saudáveis e sem agrotóxicos. Esse é o maior desafio, histórico e mais que nunca atual, da sociedade brasileira.
Notas
i Cf. “Human influence on climate clear, IPCC report says”, UN and climate change, 27/IX/2013: “As the ocean warms, and glaciers and ice sheets reduce, global mean sea level will continue to rise, but at a faster rate than we have experienced over the past 40 years” (Qin Dahe, Co-Chair of the IPCC AR5).
<https://www.ipcc.ch/news_and_events/docs/ar5/press_release_ar5_wgi_en.pdf>.
ii Cf. ONU, Surging Seas in a Warming World, 26 ago. 2024: “In 2021, the Sixth Assessment Report (AR6) of the Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) concluded with high confidence that global-mean sea level is rising at rates unprecedented in at least the last 3,000 years due to human-induced global warming. Since then, emerging research on climate ‘tipping points’ and ice-sheet dynamics is raising alarm among scientists that future sea-level rise (SLR) could be much larger and occur sooner than previously thought”.
iii Cf. Rebecca Lindsey, Climate Change: Global Sea Level. NOAA, 19 abril 2020: “Global mean sea level has risen about 8-9 inches (21-24 cm) since 1880”; Nasa, Sea level, jan. 2025: “102,4 mm since 1993”.
iv Cf. Rebecca Lindsey, Climate Change: Global Sea Level. NOAA, 14 ago. 2020: “From 2018 to 2019 golbal sea level rose 0.24 inches (6.1 millimieters)”.
<https://www.climate.gov/news-features/understanding-climate/climate-change-global-sea-level>
v Cf. Jane J. Lee, "NASA Analysis Shows Unexpected Amount of Sea Level Rise in 2024". Nasa Sea Level Change, 13 mar. 2025: “Last year’s rate of rise was 0.23 inches (0.59 centimeters) per year, compared to the expected rate of 0.17 inches (0.43 centimeters) per year”.
vi Cf. Jane J. Lee (cit.): “The rise we saw in 2024 was higher than we expected. (...) The rate of rise is getting faster and faster.” <https://sealevel.nasa.gov/news/282/nasa-analysis-shows-unexpected-amount-of-sea-level-rise-in-2024/>.
vii Cf. Robert M. DeConto, & David Pollard, “Contribution of Antarctica to past and future sea-level rise”. Nature, 531, 31/III/2016: “Today we’re measuring global sea level rise in millimetres per year. We’re talking about the potential for centimetres per year just from Antarctica.”
viii James Hansen et al., “Ice Melt, Sea Level Rise and Superstorms: Evidence from Paleoclimate Data, Climate Modeling, and Modern Observations that 2°C Global Warming is Dangerous”. Atmospheric Chemistry and Physics. An interactive open-access journal of the European Geosciences Union, 16, 22 mar. 2016, pp. 3761–3812: “Our analysis paints a very different Picture than IPCC (2013) for continuation of this Hyper-Anthropocene phase, if GHG emissions continue to Grow. In that case, we conclude that multi-meter sea level rise would become practically unavoidable, probably within 50 – 150 years. (...) Ice sheet disintegration is likely to be non-linear if climate forcings continue to grow, and that sea level rise of several meters is possible on a time scale of the order of a century”.
ix Cf. Stefan Rahmstorf, "The new IPCC climate report", Real Climate, 27 set. 2013: “This is perhaps the biggest change over the 4th IPCC report: a much more rapid sea-level rise is now projected (28-98 cm by 2100). This is more than 50% higher than the old projections (18-59 cm) when comparing the same emission scenarios and time periods”.
x Cf. NOAA, Global and Regional Sea Level Rise Scenarios for the United States, Silver Spring, Maryland Jan. 2017 (NOAA Technical Report NOS CO-OPS 083), veja-se Tabela 5.
xi Cf. Jonathan L. Bamber et al., "Ice sheet contributions to future sea-level rise from structured expert judgment". PNAS, 20 maio 2019: "We find that a global total sea level rise exceeding 2 meters by 2100 lies within the 90% uncertainty bounds for a high emission scenario. This is more than twice the upper value put forward by the Intergovernmental Panel on Climate Change in the Fifth Assessment Report".
xii Cf. Climate Central, "Rising Seas Stretch Risk Zones", 4 abril 2024. Veja-se também: “Santos e Rio de Janeiro terão partes cobertas pelo mar até 2050, diz ONU”. Diário do Grande ABC, 28 nov. 2023.
<https://www.climatecentral.org/report/rising-seas-stretch-risk-zones?lang=en>.
xiii Cf. ONU, "Surging seas in a warming world", 26 ago. 2024.