A ideologia do capital posto em plataformas

Eleutério Prado desvenda como Peter Thiel inverte a crítica marxista para defender que “capitalismo e concorrência são opostos”, cristalizando o monopólio como virtuoso enquanto promete “cidades de liberdade” policiadas por robôs com inteligência artificial

Eleutério Prado, A terra é redonda, 12 de junho de 2025

Nesse artigo pretende-se examinar criticamente a tese sobre o atual desenvolvimento e sobre o futuro do capitalismo, apresentada por Peter Thiel em seu livro De zero a um. Formado em filosofia e direito e grande investidor em tecnologias digitais, esse intelectual engajado previu nele que o futuro desse sistema econômico, baseado que está na relação de capital, será formidável.

Além de ter se tornado um controvertido bilionário que milita como empresário no Vale do Silício, esse autor é conhecido por apoiar a criação de “cidades de liberdade”. Nelas – imagina ele – o capitalismo é extremado e se desvencilha do Estado e da política, mas não evidentemente da polícia. Eis que a segurança em tais cidades será feita por robôs munidos de inteligência artificial, os quais terão a função de expulsar ou eliminar os intrusos e os indesejados.

Segundo Marco D’Eramo, ele é um defensor do anarcocapitalismo que quer libertar “os capitalistas da carga dos impostos” e da “exploração dos trabalhadores”, eliminando até mesmo os “estados nações” e os substituindo por “paraísos libertários”.[i] Atento ao que ele diz – e ao que ele não diz –, segue-se aqui a tradição da crítica da economia política sob a luz dos ensinamentos de Ruy Fausto sobre a dialética marxiana, em seus vários livros.[ii]

Capital em plataformas

Começa-se apresentando algumas noções fundamentais desse objeto e dessa crítica. Afinal, o que são as plataformas? A definição de Srnicek é bem interessante: “No nível mais geral, as plataformas são infraestruturas digitais que permitem a interação de dois ou mais grupos de pessoas. Configuram-se como meio de intermediação que juntam diversos tipos de usuários: consumidores, propagandistas, provedores de serviços, produtores de mercadorias, fornecedores. Frequentemente tais plataformas possuem uma série de ferramentas que permitem aos usuários produzirem conteúdos, além venderem bens e serviços”.[iii]

Uma característica central das plataformas é que elas internalizam mercados, nutrem-se de economias de rede que levam a ganhos de escala. Apresentam, por isso, forte tendência a se tornarem monopólios. Mesmo se não chegaram ainda a essa situação vantajosa, mesmo se alguma concorrência possa continuar existindo, por exemplo, na forma de um duopólio ou de um oligopólio, elas estão sempre lutando para obter essa condição de empresa única na atividade em que operam.

Note-se, agora, que não se apresenta as plataformas propriamente como capitais; diz-se de modo diferente que o capital está posto em plataformas; eis que estas, enquanto tais, são meros valores de uso. Sem a posição do capital, elas não seriam nem mercadorias nem valeriam como riqueza capitalista.

Eis que a primeira formulação apresenta essas máquinas de computação imediatamente como capitais e, por isso, cai no fetiche das mercadorias. Ou seja, ela confunde a forma social (expressão de uma relação social) com o suporte da forma (o valor de uso). As plataformas se configuram, portanto, como meios de produção e/ou como meios comercialização e de consumo e/ou como meios de propaganda de mercadorias.

O modo de produção capitalista se apresenta sobretudo como um sistema mercantil generalizado. Nele não ocorrem trocas mercantis sem a contrapartida de transferência de algum valor de uso. Ora, há dois tipos de transação mercantil e ambas estão assentadas na propriedade e posse de mercadorias.

Enquanto unidades de valor de uso e valor de troca, as mercadorias foram produzidas para serem levadas ao mercado: ou aí se vende o valor de uso da mercadoria como um todo, transferindo para outrem a sua propriedade e realizando o seu valor de troca, ou aí se aluga o seu valor de uso para outrem, sem transferir essa propriedade e sem realizar o seu valor de troca total imediatamente, obtendo assim uma renda de aluguel.

As plataformas permitem às vezes esses dois tipos de transação mercantil; contudo, mais frequentemente, apenas o segundo tipo de transação está disponível para elas. Por isso, elas são vistas frequentemente como fonte de rentismo ou de tecno-rentismo.

O conceito de ideologia

Havendo esclarecido os termos “plataforma” e “capital” que aparecem no título, agora é preciso mostrar como se usa aqui o termo “ideologia”. Costuma-se enfatizar muitas vezes que as ideologias que habitam a cultura da sociedade moderna se baseiam em meros entendimentos da aparência desse sistema de relações sociais, as quais se manifestam por meio das interações mercantis.

Daí, por exemplo, que o capitalismo seja visto pelo entendimento como uma economia de mercado. Contudo, para dar corpo à ideologia, a aparência bruta do funcionamento mercantil tem de ser reelaborada por meio de metáforas. E elas costumam dizer que se trata de uma ordem natural garantida por uma ordem política. De qualquer modo, um todo complexo subsiste e ele advém das ações das partes; mas elas não o projetaram e não têm nem mesmo qualquer consciência do processo que o engendra. Sendo assim pensado – note-se –, ainda resta especificar o modelo dessa ordem.[iv]

Ora, a dialética se opõe ao entendimento de dois modos: primeiro, ao contrário deste último, ela não põe afirmativamente princípios primeiros – por exemplo, o homem econômico – ao analisar o capitalismo; segundo, ela busca remover as cristalizações nocionais – por exemplo, a ordem natural – que o entendimento põe ao tentar explicar o funcionamento do sistema.

Buscando apreender as contradições em processo que moram nesse sistema, a dialética – como ensina Ruy Fausto – suprime as noções fundantes e fixadoras do mundo real, evitando assim cair em contradição (interversões não racionais). Ao mesmo tempo, ela busca interverter racionalmente essas mesmas noções para que as contradições nelas implícitas se manifestem e se tornem explícitas.

Eis como Ruy Fausto põe a questão: “Pondo os princípios ou bloqueando a interversão das determinações contraditórias, o discurso do entendimento se configura como um discurso ideológico; suprimindo os princípios, ou intervertendo as determinações contraditórias do objeto, a dialética ‘suprime’ a ideologia. O discurso não-ideológico (dialético) é o que põe e nega as noções ideológicas no nível dos princípios; ou libera o conteúdo negativo delas no nível da apresentação do objeto. O discurso ideológico é, pelo contrário, o que põe essas noções no nível dos princípios e bloqueia a interversão delas no nível da apresentação do objeto”.[v]

Em consequência, ao se falar aqui em ideologia está-se pensando nos defensores do capitalismo e nos próprios capitalistas não como sujeitos postos, mas como sujeitos negados como tais, ou seja, como suportes da relação de capital.

“Aqui, as pessoas” – diz Karl Marx abertura do segundo capítulo de O capital – “existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência do desenvolvimento, ver-se-á que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suportes das quais elas se defrontam umas com as outras”.[vi]

Ou seja, se o entendimento fixa as pessoas que atuam nos mercados como homo oeconomicus autônomos, a dialética mostra que eles, como tais, são apenas funções do sistema econômico. E, como suportes, eles fazem sentido. Mostram, assim, porque o saber corrente dos economistas do sistema parece bem sensato e se mostra tão resilente; sobrevive inalterado mesmo diante de críticas devastadoras.

A concorrência como ideologia

Para apreender o ponto crítico a ser apresentado é melhor começar com um pouco de história do pensamento econômico. Adam Smith, nos primórdios do capitalismo industrial na Inglaterra, saudou a concorrência de capitais como aquilo que promovia o progresso das nações; como se sabe, ele cristalizou um entendimento dessa noção por meio da metáfora da “mão invisível”, descurando em parte de seus efeitos negativos. Eis que a concorrência é uma fonte de heteronomia que produz progresso, mas também abriga enorme potencial de destruição da natureza humana e não humana.

“Orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, [o capitalista] visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. (…) Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo”.[vii]

Já Alfred Marshall, escrevendo na metade final do século XIX, achou que deveria criticar a concorrência porque ela havia adquirido “um sentido pejorativo”. Pois, passara a “implicar um certo egoísmo e indiferença pelo bem-estar dos outros”. Ao invés de cristalizar a noção de concorrência como virtuosa, ele preferiu cristalizar a noção de deliberação: “É a deliberação e não o egoísmo a característica da era moderna”.

Segundo ele, o que caracteriza a indústria e o comércio modernos vem a ser uma “maior confiança do indivíduo em si mesmo, mais previsão e mais reflexão e livre escolha”.[viii] Ora, essa formulação ignora obviamente que a deliberação do capitalista, senão também a dos consumidores (a oferta comanda a procura), encontra-se subordinada justamente, como diria León Walras, às “forças cegas e fatais” da concorrência de capitais em busca do maior lucro possível, vistas por ele como positivas.

Alfred Marshall, diante da ascensão das grandes corporações notada no período, percebeu que, se há rendimentos crescentes em escala numa determinada indústria, assim como demanda em ascensão, é possível que o regime de concorrência aí existente, em certo momento, seja substituído, num momento posterior, por um regime de monopólio. Eis que a concorrência consiste justamente na luta para superar os concorrentes, ou seja, para negar a própria concorrência por meio de redução dos custos e dos ganhos de escala.

Convém, então, que a monopolização não vem a ser uma tendência absoluta na economia moderna e que os monopólios, quando se concretizam, tendem a estagnação: “O interesse prima facie do titular de um monopólio é claramente ajustar a oferta à demanda, não de forma que o preço pelo qual possa vender a mercadoria cubra exatamente as despesas da produção [que incluem o lucro normal], mas de sorte a deixar-lhe um rendimento total líquido o maior possível [o qual contém agora um lucro extra]. (…) Com efeito, na vida real dificilmente os monopólios são absolutos e permanentes (…). Ao contrário, há no mundo moderno uma tendência sempre crescente para o uso de objetos e métodos novos, em substituição dos velhos que não se desenvolveram no interesse dos consumidores”.[ix]

Ou seja, a concorrência suprime a concorrência, engendra uma tendência à monopolização que, por sua vez, é contestada pela própria concorrência que sempre renasce por meio de inovações. Assim, o egoísmo como atributo inerente à personificação do capital, que fora negado como um princípio primeiro do capitalismo, reaparece aqui como tal. Eis que esse afeto antissocial é a contrapartida comportamental necessária da competição mercantil.

O monopólio como ideologia

Já no começo do século XXI, quando a grande indústria (que superou a manufatura e que se caracteriza pelo uso de máquinas), passou a ser suplantada pela pós-grande indústria (que é movida por maquinas que usam as tecnologias da informação e comunicação). Agora, é a noção de monopólio que tende a ser cristalizada como essência do sistema.

Para fazer o seu elogio,[x] Peter Thiel, em seu livro De zero a um, começa pondo uma pergunta enigmática: “que verdade importante pouquíssimas pessoas concordam”? Como ela diz respeito aos negócios no mundo de hoje, a sua resposta para ela vem assim: “A concorrência perfeita é considerada o estado ideal e padrão nos compêndios de Economia. (…) Sob concorrência perfeita, no longo prazo, nenhuma empresa obtêm um lucro econômico. (…) [Os economistas] idealizam a concorrência e acham que é ela que nos salva da penúria socialista. Na verdade, capitalismo e concorrência são opostos. O capitalismo tem por premissa a acumulação de capital, mas sob concorrência perfeita todos os lucros desaparecem”.[xi]

Ora, concorrência e monopolização são determinações reflexivas do processo de mercado. Se os economistas hipócritas cristalizam a noção de concorrência para elogiar o sistema, se eles se esforçam para mostrar que esse sistema é bem vantajoso já que, para além do interesse próprio do capitalista, mas com base nele, cria supostamente riquezas para todos, o capitalista cínico, que quer prosperar no sistema contemporâneo, cristaliza o monopólio como virtuoso, já que ele beneficia o próprio do capitalista, parecendo, segundo ele, que sacrifica a sociedade.

Inspirando-se em Marx, mas invertendo a sua crítica, ele diz que “criar valor não é suficiente – é preciso captar parte do valor que cria”[xii], ou melhor, que é criado pelo trabalho no empreendimento lucrativo. Como obtê-lo? Eis que a lição para os empreendedores é clara: “se querem criar e conquistar valor duradouro, não desenvolvam um negócio de produto indiferenciado”, ou seja, destaquem-se da concorrência, busquem uma posição monopolista.

Mas o monopólio é bom para todos? Para responder a essa questão, Peter Thiel cria a sua própria versão da mão invisível. Os monopólios merecem reprovação apenas num mundo estático em que figuram como coletores de renda. “Mas o mundo em que se vive” – acentua – “é dinâmico: nele é possível inventar coisas novas e melhores. (…) Os monopólios criativos não são apenas bons para o resto da sociedade; são os motores poderosos para torná-la melhor”.

Ao fazer essa afirmação, ele se fia na noção de progresso, tomando-o ideologicamente como algo sempre virtuoso. Ora, Walter Benjamim em seu ensaio sobre o conceito de história interverteu essa noção que vem da aparência dinâmica do modo de produção capitalista; ao fazê-lo, ele mostra o seu contrário: eis que onde se vê “uma cadeia de acontecimentos, ele (o anjo de Paul Klee) vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”.[xiii] Segundo Walter Benjamim, o progresso é um princípio fundante que justifica a violência e até mesmo o estado de exceção.

A razão se interverte em mito

O livro De zero a Um se desenvolve seguindo um método racional de argumentação, mas termina num mito, qual seja ele, na utopia do aceleracionismo. Em seu último capítulo, Peter Thiel apresenta quatro futuros possíveis para a humanidade que não abandona o capitalismo: crises recorrentes, estase em um dado platô de desenvolvimento, a extinção e a decolagem.

Ele descarta o primeiro como improvável, rejeita o terceiro como indesejável, despreza o segundo porque seria apenas um ponto final; fica, assim, com o quarto que se basearia na criação incessante de novas tecnologias. Ao fazê-lo, ele ignora um resultado importante da teoria da complexidade, ou seja, que todo processo de realimentação positiva, ou seja, de crescimento exponencial, termina, como mostra de modo abundante a ciência natural, em catástrofe.

Ora, isso justifica a tese posta em outro artigo segundo a qual não se está na presença meramente de um neofascismo ou de um protofascismo, mas de um projeto político que insiste na lógica suicidária do sempre mais inerente ao capitalismo. Eis que esse projeto implica na morte do homem, assim como das outras espécies, e no fim da civilização. Eis que isso fica bem provado porque ele, para salvar o seu argumento em prol do capitalismo, apresenta-se ao fim e ao cabo como profeta.

Na conclusão de sua “obra”, esse escritor bilionário anuncia um futuro mágico para o desenvolvimento do capitalismo. Aqueles que chegam ao capítulo final de seu livro podem ler o seguinte: “a versão mais dramática desse desenlace chama-se singularidade, uma tentativa de nomear o resultado imaginado de tecnologias novas tão poderosas que transcendem os limites atuais de nossa compreensão”. Pois, sim!

Eleutério F. S. Prado é  professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

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